Deus é o Senhor da Terra e de todos seus habitadores. E porque é Senhor da Terra? Porque a fundou; e é Senhor de seus habitadores, porque, fazendo que fosse superior ao mar e aos rios, a fez habitável; e essa é a energia da palavra praeparavit; porque, fazendo a terra superior à água, a preparou e acomodou a que se pudesse habitar: Ratio cur Dominus Terrae, omniumque in ea rerum [...] sit Deus (diz Lorino), quoniam terram itse fecit, et supereminere aquis fecit, ut habitari posset... E não é muito que Lorino entendesse melhor este texto da terra e do mar que Procópio; porque Procópio não sabia que havia mar e terra habitada dos antípodas, e Lorino sim; mas vamos a outros lugares mais impossíveis de entender, antes do conhecimento dos antípodas.
Referem-se vários lugares dos Profetas que os expositores modernos entendem dos antípodas e conquistas de Portugal.
Começando pelo mesmo David, aquele verso do Salmo LXVII: Regna terrae, cantate Deo, psallite Domino, psallite Deo, qui ascendit super Coelum Coeli ad Orientem; ecce dabit voci suae vocem virtutis, diz Genebrardo, Viegas, Mendonça e outros autores, que fala da conversão dos reinos e terras do Oriente, convertidas à Fé por meio da pregação dos Portugueses e descobertas por eles. Donde notou advertidamente Viegas, que no mesmo Salmo tinha dito David: Cantate Deo, psalmum dicite nomini ejus; iter facite ei, qui ascendit super Occasum; Dominus nomen illi, para mostrar que a Fé e conhecimento de Deus primeiro havia de vir às terras mais ocidentais, que são as que habitamos, e depois havia de passar às do Oriente, que são aquelas que descobrimos, conquistamos, alumiamos com a luz do Evangelho; e esta é a virtude que Deus deu às vozes da sua voz, isto é, às vozes dos seus pregadores: Ecce dabit voci suae vocem virtutis
Todo o Salmo LXIV explica Basílio Ponce da nova conversão das Índias, assim Orientais como Ocidentais, e são tão próprios desta explicação muitos lugares dele, que, ainda os que não tiveram tal pensamento, não puderam deixar de dizer o mesmo. Lorino, comentando o verso IX: Turbabuntur gentes, et timebunt qui habitant terminos a signis tuis exitus matutini et vespere delectabis, entende pelos habitadores dos termos da terra as gentes orientais e ocidentais, e assim explica as palavras: «Exitus matutini et vespere>> pro hominibus qui habitant ubi exit dies et ubi exit nox, hoc est. pro Orientalibus et Occidentalibus.
De maneira que os homens de quem aqui fala David, são aqueles que estão nos dois últimos fins e extremos da Terra, onde nasce o dia e onde nasce a noite. Uns nos fins do Oriente, que são os das Índias Orientais; e outros nos fins do Ocidente, que são os das Índias Ocidentais. Esta terra, uma e outra, diz o Profeta que visitaria Deus, e que a regaria como regou com a água do baptismo: Visitasti terram et inebriasti eum. E acrescenta com grande energia que multiplicaria o Senhor o enriquecê-la: Multiplicasti locupletare eum; porque, tendo- lhe já dado as maiores riquezas temporais, que são as minas do ouro e prata, os diamantes, os rubis, as pérolas e outros tantos tesouros, sobre estes lhe havia de dar também as riquezas espirituais e a graça, com que ficasse cada uma não só rica, mas multiplicadamente rica: Multiplicasti etc. E porque para isto era necessário que o bravíssimo e indômito Oceano se sujeitasse aos homens e se deixasse arar de seus lenhos, o que até aquele tempo não consentia, também dizia David que fazia Deus
esta mudança em suas ondas: ..qui conturbas profundum maris, sonum fluctuum ejus. Ou, como lê S. Jerônimo e Teodósio: compescens sedans, mulcens sonitum, cavitatem, latitudinem aut profundumditatem maris.
Finalmente, porque não duvidássemos que mares eram estes, declara o Profeta que não haviam de ser aqueles que lavam as terras e praias vizinhas a nós, senão os mares de muito longe e de terras e gentes muito remotas: ...spes omnium finium terrae et in mari longe, ou como tem o hebreu: Maris rémotorum. E não carece de mistério e grande mistério, o proêmio com que David introduziu tudo o que até aqui temos dito, que foi com estas palavras:...sanctum est templum tuum, mirabile in aequitate. Como se dissera: antes de se pregar o Evangelho a estas terras ou a estes mundos do Oriente é do Ocidente, parece que vós, Senhor, e vossa Igreja não guardáveis igualdade com os homens, pois havendo tantos anos e tantos séculos que alumiastes a uns com a luz da Fé, permitistes até agora, por vossos ocultas juízos, que os outros estivessem às escuras (argumento que puseram os Japões a S. Francisco Xavier). Porém, depois que a Fé e o Evangelho, e o conhecimento e culto do verdadeiro Deus têm passado os mares, chegado às mais remotas nações do Oriente, agora sim, que podemos dizer que a vossa Igreja é admirável na igualdade, porque trata igualmente a todos: sanctum est templum tuum, mirabile in aequitate.
Salomão, que sucedeu a David, não só na coroa, mas também no espírito de profecia, em muitos lugares dos seus Cânticos deixou também profetizadas estas maravilhas da nossa idade: neste sentido explicam alguns modernos aquelas palavras no cap. IV: Surge, Aquilo, et veni, Auster, et perfla hortum meum, et fluent aromata illius. Como se dissesse Cristo, falando do sen jardim, que é a Igreja: que saísse dele o Norte e viesse o Sul; isto é, que saíssem da Igreja as orações do Norte, como se saíram nestes tempos por meio da heresia, e que entrassem na mesma Igreja as orações do Sul (que são as do Novo Mundo), como entraram por meio da Fé. Ao qual sentido, que é mui próprio e verdadeiro, podemos aplicar as palavras de Honório: Siquidem inauditam haeresim per malignos homines Draco mentibus fidelium infudit, qua totum ortum Ecclesiae, quasi quadam lepre vitiavit; sed Rex gloriae Chrisus suis auxilium praebuit, dum universum haeresim per sapientes destruxit, et de horto suo flagellis anathematis expulit; expulso autem Aquilone, Auster intravit... Segue-se logo no texto:. et fluent aromata illius. As quais palavras, entendidas assim como soam, que outra cousa dizem senão os interesses temporais que trazem as naus da Índia por estes espirituais que levam quando vêm carregadas dos aromas e espécies aromáticas daquelas partes?
Assim o tinha dito o mesmo Salomão no verso antecedente, com admirável propriedade e energia. Fala das missões que fazem àquelas partes os pregadores da Fé, e diz: Emissiones tuae, paradisus malorum punicorum cum pomorum fructibus As vossas missões são um paraíso de que se não colhem frutos de árvores, senão frutos de frutos. Cum pomorum fructibus. Porque pelo fruto espiritual que vão fazer os missionários, vêm de lá os frutos temporais com que Portugal se enriquece. E se vão faltando os segundos frutos, é porque também vão faltando os primeiros, de que eles nascem.
Mas que frutos são estes? Disse o mesmo Salomão: Cypri cum nardo, nardus et crocus, fistula et cinnamomum cum universis lignis Libati, myrrha, et aloe cum omnibus primi unguentis: A canela, a canafistola, o sândalo, o benjoim,
as áquilas, os calambucos, e todo o outro gênero de espécies odoríferas e aromáticas, que são as mesmas que vêm da Índia.
No cap. VII diz assim o mesmo Salomão, ou a Esposa, que é a Igreja, falando com seu Esposo Cristo: Mandragorae dederunt odorem. In portis nostris omnia poma: nova et vetera servavi tibi. As mandrigoras são os pregadores da Fé, como diz S. Gregório: Quid per mandragoram, herbam scilicet medicinalem et odoriferam, nisi virtus perfectorum intelligitur? Qui, dum imperfectorum infirmitatibus medentur in fide quam praedicant, id est. in portis Ecclesiae veri medici esse comprobantur.
Com o cheiro destas mandrágoras e com a doutrina destes pregadores, [diz a Esposa] que ajuntou para seu Esposo os frutos novos aos velhos. Assim o interpretam os Setenta: Nova et vetera servavi tibi; porque aos cristãos antigos, que eram os da Europa, ajuntou a Igreja estes novos, que são os da nova gente que se descobriu no Oriente e no Ocidente, que são as portas de que fala a Esposa: In portis nostris. Uma porta por onde o Sol sai ao nosso hemisfério, que é a do Oriente, e outra por onde entra aos antípodas, que é a do Ocidente. Assim entendem este lugar alguns autores que refere Cornélio, resumindo todo o sentido dele nestas palavras: Nonulli per nova opinantur hic notari novi orbis inventionem et conversionem ad Chrstum. Novus enim hic orbis continet Peruanos, Mexicanos, Brasilios, Chilenses etc. est dimidium totius orbis, ut patet ex globo cosmográphico [...] jam per religiosos S. Dominici, S. Francisci et Societatis Jesus totus pene subjacet Ecclesiae Sic in India Orientali hoc saeculo et praecedenti mire per eosdem propagatur Fides apud Japones, ubi plurimi pro Fide certant usque ad martyria lentorum ignium apud Sinenses, Molucenses et Ceilanos. De maneira que os frutos novos que a Igreja, por meio do cheiro destas mandrágoras medicinais e odoríferas, ajuntou aos velhos e antigos, são os do Peru e México, do Brasil e Chile, e os do Japão e China, das Malucas e Ceilão; uns nas portas do Oriente, outros nas do Ocidente: Madragorae dederunt odorem suum. Parece que estavam esquecidos, mas não estavam senão guardados para este tempo: servavi.
Em quase todo o cap. VIII repete Salomão a mesma conversão das Índias, e particularmente naquelas palavras: Soror nostra parva, et ubera no habet; quid faciemus sorori nostrae in die quando alloquenda est? Si murus est. aedificemus super eum propugnacula argentea; si ostium est. compingamus illud tabulis cedrinis. Até agora foi escuríssimo este lugar, mas são admiráveis os mistérios e mais admiráveis ainda as propriedades dele. Ludovico Legionense, nos comentários sobre este livro, entende por esta irmã mais moça da Esposa a Igreja da Gentilidade novamente convertida à Fé: ...sub persona hujus sororis natu minoris, et parum forma praestantis, cu`jus de collocatione sponsa solicitari dicitur, multi significantur populi atque gentes longe a nostro orbe remotae, ad Christum adducenda; nova quadam Evangelli tradendi ratione; hoc est significatur Hispanorum navigationibus reperti orbis, ejusque incolarum ad Christi. fidem nuper facta conversio.
Ainda que a Igreja toda seja uma, como a destas novas gentilidades veio ao conhecimento de Cristo tanto depois, que não foram menos que mil e quinhentos anos, por isso lhe chama Salomão irmã menor e pequena — Soror
nostra parva est — não pela grandeza das terras e número das gentes, em que é maior ou, quando menos, igual a toda a Igreja antiga, mas pela menoridade do tempo e da idade em que se converteu. E diz com muita propriedade que não tem peitos: Et ubera non habet porque todos estes anos esteve falta do leite da verdadeira doutrina. E porque haver-se de desposar com Cristo esta nova Igreja era um negócio cheio de tantas dificuldades, assim pela distancia de tão remotas terras e navegação de tão desconhecidos mares, como principalmente pela resistência de suas nações, umas bárbaras, outras políticas e todas feras, armadas e belicosas, e tão superiores no número e multidão aos que lhes haviam de levar e introduzir a Fé, estas dificuldades
representa a Igreja antiga a seu Esposo, Cristo, com aquelas palavras: Quid faciemus sorori nostrae in die quando alloquenda est? «Que faremos Senhor, quando chegar o tempo em que se há-de desposar convosco esta minha irmã menor?:>> Ao que responde Cristo com o antiquíssimo conselho de sua providência, dizendo: Si murus est. aedificemus super eum propugnacula argentea; si ostium, compingamus illud tabulis cedrinis.
Quem não admirará nesta resposta os altíssimos conselhos da sabedoria e providência divina? Dispôs Deus desde a criação do Mundo que estas terras, assim por fora como por dentro, fossem enriquecidas de coisas preciosíssimas, para que o interesse dos homens facilitasse as dificuldades, que sem ele criam impossíveis de vencer. Como se dissera o Senhor: Ainda que a conquista da Fé tem muros que dificultem sua entrada nessas terras, também tem portas por onde poderá entrar; esses muros facilitá-los-emos com prata; essas portas abri-las- emos com cedros: Si murus, aedificemus propugnacula argentea; si ostium, compingamus illud tabulis cedrinis. Pela prata se entendem as minas e pelos cedros odoríferos as plantas preciosas; e as minas que essas terras têm em suas entranhas, e as plantas odoríferas e preciosas que nelas nascem, são os meios e incentivos que obrigaram o interesse humano a que se disponha a vencer todas essas dificuldades e abrir e franquear essas portas. E assim foi porque a prata, o ouro, os rubis, os diamantes, as esmeraldas, que aquelas terras criam e escondem em suas entranhas; as áquilas, os calambucos, o pau-brasil, o violeta, o ébano, a canela, o cravo e a pimenta, que nelas nascem, foram os incentivos do interesse tão poderoso com os homens, que grandemente facilitaram os perigos e os trabalhos da navegação e conquista de umas e outras Índias. Sendo certo que, se Deus com suma providência não enriquecera de todos estes tesouros aquelas terras, não bastaria só o zelo e amor da religião para introduzir nelas a Fé.
O profeta Isaías, como profeta singularmente escolhido para historiar as maravilhas da lei evangélica, foi o que mais falou de nós e delas: no cap. XLIX diz assim: Ecce isti de longe venient, et ecce illi ab aquilone et mari, et isti de terra australi. Laudate, caeli, et exulta, terra, jubilate, montes, laudem, quia consolatus est Dominus populum suum, et pauperum quorum miserebitur. O qual lugar entende Cornélio à Lápide e Árias Montano da conversão da China, e o provam do original hebreu, o qual lêem de terra Senim, como verts S. Jerónimo, Símaco, Áquila, Teodósio, o Siro, o Arábio, e todos, e é o mesmo que de terra Sinorum, por ser este o modo de falar da língua hebréia, na qual os Galileus se chamam Gelilim, e os Judeus Jehudim, e os Assírios Assurim, e assim também os Chinas
ou Sinas Sinim. E se replicarmos a este sentido que a China não é terra austral, senão oriental, e que se não pode verificar dela o termo de terra australi, respondem os mesmos autores que aludiu o Espírito Santo, que governava a pena de S. Jerónimo, à navegação dos Portugueses, os quais, quando vão para o Oriente, fazem a sua viagem direita ao Austro, navegando ao cabo da Boa Esperança: Sinae enim (dizem eles), qui proprie hic significantur, licet sint ad Orientem, dici tamen possum ad Austrum, quia Lusitani in Sinas navigaturi, initio longo flexu, navigant ad Austrum, scilicet ex Lusitania usque ad promontorium Bonae Spei, quod uItimum est in continente et directe oppositum Austro.
De maneira que, como os Portugueses eram os que haviam de levar a Fé à China, navegando ao Austro ou Sul, por isso o Espírito Santo chamou Austral à China, não pelo sítio, senão pelo rumo da navegação. Da mesma conversão dos Chinas fez outra vez menção Isaías no cap. XI, v. I4, o qual explica larga e
eruditamente Malvenda, seguindo a Foreiro, ambos varões mui doutos da família dominicana.
O mesmo Profeta Isaías no cap. LX:
Nestas palavras está profetizada admiravelmente a conversão das Índias Ocidentais; assim as explicam o mesmo Cornélio, Bózio, Aldrovando e outros, com bem notáveis propriedades. Chama o Profeta às Índias Ocidentais, ilhas: Me enim insulae expectant. Porque todas aquelas vastíssimas terras, em quanto se têm descoberto, estão rodeadas de mar, e bastava para se chamarem assim a imensidade de mares que as dividem do Mundo amigo; além de que estes terras no princípio eram chamadas com o nome de Antilhas, como se lê na história de seu descobrimento. As nuvens que voam a estes terras para as fertilizer—Qui sunt isti, qui ut nubes volant— são os pregadores do Evangelho, levados do vento pelo mar como nuvens; e chamam-se também pombas: Et sunt columbae ad fenestras suas; porque levam estes nuvens a água do baptismo sobre que desceu o Espírito Santo em figure de pomba, que são os dois termos que desde o princípio do Mundo andaram sempre juntos na significação do batismo.
No I cap. do Gênesis:
Mas o mesmo Bózio e Aldrovando, ainda advertiram no nome e semelhança de pomba outra propriedade mais aguda, tirada do descobrimento das mesmas Índias, de cujas terras e navegação foi o primeiro descobridor Cristóvão Colombo;
e dizem que a isto aludiu o profeta, chamando Columbas ou Columbos a todos os que seguem a mesma derrota e navegação das Índias: Nomine columbae alludit ad Christophorum Columbum, qui nobis iter ad illas oras primus aperuit. Bem assim, ou muito melhor, e com mais verdade do que disseram os Gentios que os Argonautas, quando foram conquistar o velo de ouro a Colcos, levaram por guia uma pomba:
Et qui movistis duo littora, cum rudis Argus Dux erat, ignoto missa columba mari.
Os Potosis e outras minas de prata e ouro, que juntamente com as almas para a Igreja haviam de conquistar estes argonautas, também as não esqueceu o Profeta: Et adducam filios tuos de longe, argentum eorum et aurum eorum cum eis. Muito ouro, muita prata e muitos filhos para a Igreja, e tudo de muito longe; e porque não ficassem em silêncio as frotas das Índias: Et navis maris in principio; ou como lê Foreiro do hebreu: Et naves maris cum primaria, seu praetoria, que faziam esta navegação muitas naus, não divididas, senão em frota, com sua capitaina; finalmente, que homens peregrinos edificariam os muros da Igreja naquelas terras: Et aedificabunt filii peregrinorum muros tuos; e que os ministros de tudo isto seriam os mesmos reis, como fazem com tanta piedade os reis católicos: Et reges eorum ministrabunt tibi.
É também ilustre lugar em Isaías aquele do cap. XLI: Egeni et pauperes quaerunt aquas, et non sunt: lingua eorum siti aruit. Ego Dominus exaudiam eos [...] non derelinquam eos. Aperiam in supinis collibus flumina, et in medio camporum fortes: ponam desertum in stagna aquarum, et terram inviam in rivos aquarum. Dabo in solitudinem cedrum, et spinam, et myrtum, et lignum olivae; ponam in deserto abietem, ulmum et buxum simul; ut videant et sciant, et recogitent, et intelligant pariter, quia manus Domini fecit hoc...
Quantos pobres e miseráveis estão morrendo à sede por falta de água, isto é, vivendo na gentilidade sem água do batismo? Mas eu (diz Deus) que também sou Senhor destes, os ouvirei e não me esquecerei deles: Ego Dominus exaudiam eos. Nestes seus montes e desertos secos e estéreis abrirei fontes e rios mui copiosos; e por mais que essas terras sejam sem caminho, eu abrirei caminho por onde a elas cheguem as águas, de que tanto necessitam: Et terram inviam in rivos aquarum; e de once atègora se não colheu fruto, eu farei que se colha muito copioso e de todo o género: Dabo in solitudinem cedrum et spinam et myrtum, etc. Para que entenda e conheça o Mundo quão poderoso sou, e que esta obra é de minha mão: Ut videant et sciant quia manus Domini fecit hoc.
São Cirilo, São Jerônimo, Procópio e Teodoreto entendem este texto da conversão das gentilidades, que Deus havia de converter por meio da pregação do Evangelho, mas não nos disseram que gentes estes fossem ou houvessem de ser, porque as não conheciam; porém os Doutores modernos nos dizem quais elas são. O P.e. Cornélio, depois do reverendíssimo Cláudio Aquaviva, geral da sua religião, diz assim: Hoc etiam hodie in Japone, Brasilia, China, aliisque Indiarum provinciis impleri magna laetitia conspicimus: que se cumpriu e está cumprindo esta profecia no Japão, no Brasil, na China.
Atèqui andamos com Isaías pelas terras firmes; vamos agora às ilhas, que são as primeiras por onde os nossos descobrimentos começaram.
No cap. LVIII fala Isaías das obras grandes que fará o homem misericordioso; e como a major obra e a major misericórdia de sodas é tirar almas do Inferno, como se tiram as dos Gentios, quando por meio da luz da Fé se lhes mostra o caminho da salvação, diz umas palavras o Profeta, que, bem ponderadas, de nenhum outro homem se podem entender à letra senão do nosso Infante santo (sic) D. Henrique, primeiro autor dos descobrimentos portugueses, cujo principal intento naquela empresa, como dizem sodas as nossas histórias, foi o puro e piedoso zelo da dilatação da Fé e conversão da gentilidade. As palavras de Isaías são estas: Et aedificabuntur in te deserta saeculorum, fundamenta generationis, et generationis suscitabis, et vocaberis aedificator septum, avertens semitas in quietem: «Em vós se povoarão os desertos dos séculos; vós lançareis os fundamentos de uma e outra geração; vós sereis chamado edificador das cercas e fareis que os que sempre andam, tenham assento.»
Tais foram em tudo as obras do Infante D. Henrique, continuadas depois pelos reis de Portugal, que levaram adiante o que ele começou. Primeiramente nele e por ele se povoaram os desertos dos séculos! porque muitas ilhas, que desde o princípio do Mundo, por tantos séculos estiveram desertas e incógnitas e despovoadas, como era a ilha da Madeira, as Terceiras ou dos Açores, ele as descobriu, povoou e edificou, e de ilhas desertas que antigamente eram, estão hoje tão povoadas e populosas, e tão enobrecidas de famosas cidades e sumptuosos edifícios: AEdificabuntur in te deserta saeculorum. E assim como nestas ilhas ermas e desertas lançou este glorioso príncipe os primeiros fundamentos da geração humana, fazendo que fossem povoadas de homens, assim em outras ilhas, que estavam povoadas de bárbaros, como eram as Canárias e de Cabo Verde, lançou também os fundamentos da geração divina, fazendo por meio da pregação e luz do Evangelho que esses bárbaros gentios conhecessem a Deus e fossem gerados em Cristo: Fundamenta generationis et generationis suscitabis.
O meio que para esta segunda e mais importante geração tomaram os religiosíssimos príncipes de Portugal, foi mandarem religiosos por sodas as conquistas, de grande virtude e letras, fundando e edificando conventos de diversas
ordens; e por isso diz o Profeta que seria chamado o primeiro autor desta obra, edificador de cercas, que são, como aqui notam alguns expositores, as cercas e claustros das religiões: Et vocaberis aedificator septum
Finalmente, não cala o Profeta o fruto que desta santa indústria se seguiu em sodas estes gentilidades de bárbaros, e foi que, andando de antes vagamente pelas brenhas, como animais silvestres, se aquietassem e tomassem assento, e vivessem como homens, que isso quer dizer—Avertens semitas in quietem. Neste sentido tão próprio e literal explica Bózio este texto de Isaías; mas antes que escreva as suas palavras, quero pôr aqui as do nosso João de Barros, referindo o que desta empresa do Infante sentiam e murmuravam os que lhes parecia inútil e infrutuosa:
<...os reis passados deste Reino (diziam eles) sempre dos reinos alheios para o seu trouxeram gente a este a fazer novas povoações, e ele quer levar os naturals portugueses a povoar terras ermas por tantos perigos do mar, de fome e sedes, como vemos que passam os que lá vão. Certo que outro exemplo Ihe deu seu padre poucos dias há, dando os maninhos de Lavre, junto a Caruche, a Lambert de Orches, alemão, que os rompesse e povoasse, com obrigação de trazer a ele moradores estrangeiros de Alemanha, e não mando?` seus vassalos passar além-mar, romper terras, que Deus deu por pasto dos brutos. E bem se viu quanto mais naturais são para eles que para nós, pois em tão poucos dias uma coelha multiplicou tanto, que os lançou fora da primeira ilha, quase como admoestação de Deus, que há por bem ser aquela terra pastada de alimárias, e não habitada por nós. E quando quer que nestas terras de Guiné se achasse tanta gente como o Infante diz, não sabemos que gente é, nem o modo de sua peleja; e quando fosse tão bárbara, como sabemos que é a das Canárias, a qual anda de penedo em penedo como cabras às pedradas contra quem os quer ofender, nós que proveito podemos ter de terra tão estéril e áspera, e cativar gente tão mesquinha? Certo nós não sabemos outro, senão virem eles encarentar o mantimento da terra e comerem nossos trabalhos; e por cobrarmos um comedor destes, perdermos os amigos e parentes!»
Isto é o que filosofavam e diziam os prudentes e políticos daquele tempo, que sempre são os instrumentos mais aparelhados que o Mundo e o Demônio têm para impedir as obras de Deus; mas estes terras ermas foram as que pelo zelo e constância daquele príncipe se vêem hoje tão povoadas, cultivadas e ricas. E estes bárbaros, que como animais andavam saltando de penedo em penedo, são os que hoje vivem com tanto assento, humanidade, ordem e política cristã, e não só eles, senão infinitos outros.
As palavras prometidas de Bózio são as que se seguem: ...idem perfectum videinus in insults quas Tertieras vocant, Hispaniae in Oceano adjacentibus Occidentem versus; similiter in Canariis, quas no mine Promontorii Viridis appellant, Sancti Laurentii, Ascensionis, et omnibus quae Africae littora respiciunt: amplius cunctis quas Oceanus aluit, latissimis etiam regionibus Indiarum, sive orientem, sive occidentem Solem, vel Austrum, Boreamvel spectantibus idem contingit. Neque finis illus hucusque apparet. Oppida innumera et civitates pulcherrimae passim condutur in quibus constituuntur caetus hominum, excitantur fundamenta generationis, et generationis eorum, qui bestiarum modo prius incertis sedibus vagabantur, et in stabulis ipsis habitabant.
Atèqui este autor doutíssimo, o qual no mesmo liv. II cap. III explica muitos outros lugares de Isaías, das ilhas que os Portugueses conquistaram para Cristo, e nomeadamente de Ceilão, Maldivas Socotorá, Japão, Java, Malucas e outras. Chama a estes ilhas o Profeta, ilhas de longe, como no cap. XLIX: Audite, insulin, et attendite, populi de longe, e no cap. LXVI: ...ad insulas longe ad illos, qui non
audierunt de me; pelas quais ilhas entendiam todos antigamente Itália e Espanha, por estarem quase cercadas uma do Mediterrâneo, outra do Oceano; mas verdadeiramente nem são ilhas, senão terra firme; nem se podem chamar de Longe em comparação das que depois descobrimos, e com toda a propriedade são ilhas, e ilhas de muito longe.
Ponhamos fim a Isaías com um celebradíssimo texto do cap. XVIII, o qual foi sempre julgado por um dos mais dificultosos e escuros de todos os Profetas, e é este: Vae terrae cymbalo alarum, quae est trans flumina AEthiopiae, quae mittit in mare legatos, et in vasis papyri super aquas! Ite, angeli veloces, ad gentem convulsam et dilaceratam; ad populum terribilem, post quem non est alius; ad gentem expectantem et conculcatam, cujus diripuerunt flumina terram ejus.
Trabalharam sempre muito os intérpretes antigos por acharem a verdadeira explicação e aplicação deste texto; mas nem atinaram nem podiam atinar com ela porque não tiveram notícia nem da terra, nem das gentes de que falava o Profeta. Os comentadores modernos acertaram em comum com o entendimento da profecia, dizendo que se entende da nova conversão à Fé daquelas terras e gentes também novas, que ultimamente se conheceram no Mundo com o descobrimento dos antípodas; e notaram alguns com agudeza e propriedade, que isso quer dizer a energia da palavra: Ad gentem conculcatam: gente pisada dos pés, porque os antípodas, que ficaram debaixo de nós, parece que os trazemos debaixo dos pés e que os pisamos; mas chegando mais de perto à gente e terra ou província de que se entende a profecia, também os modernos não acertaram atègora com o sentido próprio, germano e natural dela, e este é o que nós havemos de descobrir ou escrever aqui, pelo havermos recebido de pessoa douta e versada nas Escrituras, que, havendo visto as gentes, pisado as terras e navegado as águas de que fala este texto, acabou de o entender, e verdadeiramente o entendeu, como veremos e verão melhor os que tiverem lido as exposições antigas e modernas dele.
Cornélio teve para si que fala o profeta de Etiópia e do Preste João; mas Etiópia não está além de Etiópia, como diz o texto. Malvenda, com os outros que cita, entente dos Chinas e Japões, e aplica à navegação dos Portugueses o parafraste caldeu, por estas palavras: Chaldeus interpres haec verba Isaiae in hunc modum reddidit: <<Vae terrae, ad quam veniunt cum navibus a terra longinqua, et vela sua extendunt, ut aquila, volans alis suis.» Aptosite in Indiam, quae quondam remotarum gentium frequentibus navigationibus petebutur, et nunc ab extremo Occidente Lusitanorum victricibus classibus aditur; quae etiam itsas sinarum oras praetervectae Japoniorum insulas tenent.
Mas esta exposição e a de Mendonça e Rebelo (que entendem o texto geralmente da Índia Oriental), têm contra si tudo o que logo diremos. José da Costa, tão versado nas Escrituras como na geografia e na história natural das Índias Ocidentais, Ludovico Legionense, Tomás Bózio, Arias Alontano, Frederico Lúmnio, Alartim del Rio e outros dizem (e bem), que falou Isaías da América e Novo Mundo, e se prova fácil e claramente. Porque esta terra que descreve o Profeta está além da Etiópia trans flumina AEtiopiae; e é terra depois da qual não há outra: ad populum post quem non est alius. Estes dois sinais tão manifestos só se podem verificar da América, que é a terra que fica da outra banda da Etiópia, e que não tem depois de si outra terra senão o vastíssimo mar do Sul. Mas porque Isaías nesta sua descrição põe tantos sinais particulares e tantas diferenças individuantes, que claramente estão mostrando que não fala de toda a América ou Mundo Novo em comum, senão de alguma província particular dele; e os autores alegados nos não dizem que
província esta seja, será necessário que nós o digamos, e isto é o que agora hei- de mostrar.
Digo primeiramente, que o texto de Isaías se entende do Brasil, porque o Brasil é a terra que direitamente está além e da outra banda da Etiópia como diz o Profeta: quae est trans flumina AEthiopiae, ou como verte e comenta Vatablo: terra, quae est sita u1tra AEthiopiam (quae AEthiopia scatet fluminibus) e o hebreu ao pé da letra tem de trans flumina AEthiopiae. A qual palavra—de trans— como notou Malvenda, é hebraísmo, semelhante ao da nossa língua. Os Hebreus dizem—de trans— e nós dizemos, detrás; e assim é na geografia destas terras, que em respeito de Jerusalém, considerado o círculo que faz o globo terrestre, o Brasil fica imediatamente detrás de Etiópia.
Diz mais o Profeta que a gente desta terra é terrível: ad populum terribilem; e não pode haver gente mais terrível entre todas as que têm figura humana, que aquela (quais são os Brasis) que não só matam seus inimigos, mas depois de mortos os despedaçam e os comem e os assam, e os cozem a este fim, sendo as próprias mulheres as que guisam e convidam hóspedes a se regalarem com estas inumanas iguarias; e assim se viu muitas vezes naquelas guerras, que estando cercados os Bárbaros, subiam as mulheres às trincheiras ou paliçadas, de que fazem os seus muros, e mostravam aos nossos as panelas em que os haviam de cozinhar. Fazem depois suas frautas dos mesmos ossos humanos, que tangem e trazem na boca, sem nenhum horror, e é estilo e nobreza entre eles não poderem tomar nome senão depois de quebraram a cabeça a algum inimigo, ainda que seja a alguma caveira desenterrada com outras cerimônias cruéis, bárbaras e verdadeiramente terríveis. Em lugar de gentem conculcatam, lê o Sírio—gentem depilatam: gente sem pêlo; e tais são também os Brasis, que pela maior parte não têm barba, e no peito e pelo corpo têm a pele lisa e sem cabelo, com grande diferença dos Europeus.
Estes são os sinais comuns que nos aponta o Profeta daquela terra e gente; mas porque assinala mindamente outros mais particulares e que não convêm a toda a gente e terra do Brasil, é outra vez necessário que nós também declaremos a província e gente em que eles todos se verificam; e esta gente e esta província mostraremos agora que é a que com toda a propriedade chamamos Maranhão, que por ser tão pouco conhecida e menos nomeada nos escritores, não é muito que a falta de suas notícias lhe tivesse atègora escurecido e divertido a honra deste famoso oráculo do mais ilustre profeta, que tão expressamente tinha falado nesta gente.
Diz pois o Profeta, que são estes homens uma gente a quem os rios lhe roubaram a sua terra: Cujus diripuerant flumina terram ejus. E é admirável a propriedade desta diferença, porque em toda aquela terra, em que os rios são infinitos e os maiores e mais caudalosos do Mundo, quase todos os campos estão alagados e cobertos de água doce, não se vendo em muitas jornadas mais que bosques, palmares e arvoredos altíssimos, todos com as raízes e troncos metidos na água, sendo raríssimos os lugares por espaço de cento, duzentas e mais léguas, em que se possa tomar porto, navegando-se sempre por entre árvores espessíssimas de uma e outra parte, por ruas, travessas e praças de água que a natureza deixou descobertas e desimpedidas do arvoredo, e posto que estes alagadiços sejam ordinários em toda aquela costa, vê-se este destroço e roubo que os rios fizeram à terra, muito mais particularmente naquele vastíssimo arquipélago do rio chamado Orelhana, e agora das Amazonas, cujas terras estão
todas senhoreadas e afogadas das águas, sendo muito contados e muito estreitos os sítios mais altos que eles, e
muito distantes uns dos outros, em que os Índios possam assentar suas povoações, vivendo por esta causa não imediatamente sobre a terra, senão em casas levantadas sobre esteios a que chamam juraus para que nas maiores enchentes passem as águas por baixo; bem assim como as mesmas árvores, que tendo as raízes e troncos escondidos na água, por cima dela se conservam e aparecem, diferindo só as árvores das casas em que umas são de ramos verdes outras de palmas secas.
Desta sorte vivem os Nheengaíbas, Goianás, Maianás e outras antigamente populosas gentes, de quem se diz com propriedade que andam mais com as mãos que com os pés, porque apenas dão passo que não seja com o remo na mão, restituindo-lhes os rios a terra que lhes roubaram, nos frutos agrestes das árvores de que se sustentam, cuja colheita é muito 1impa, porque caem todos na água, e em muita quantidade de tartarugas e peixes-bois, que são os gados que pastam naqueles campos, além de outro pescado menor, e alguma caça de aves e montaria de porcos, que nos mesmos lugares sobre-aguados, entre os lodos e raízes das árvores, se ceva nos frutos delas. E nota o Profeta que não é rio, senão rios, os que isto fazem; porque, ainda que o rio das Amazonas tenha fama de tão enorme grandeza, toda esta se compõe do concurso de muitos outros rios, que todos desembocam nele, ou juntamente com ele, comunicando e confundindo em si as águas e como unindo e conjurando as forças para este roubo que fizeram àquela terra: Cujus diripuerunt flumina terram ejus.
Continua Isaías a sua descrição, e diz que os habitadores desta província são gente arrancada e despedaçada, e só o Espírito Santo poderá recopilar em duas palavras a história e última fortuna daquela gente.
Quando os Portugueses conquistaram as terras de Pernambuco, desenganados os Índios (que eram mui valentes e resistiram por muitos anos) que não podiam prevalecer contra as nossas armas, uns deles se sujeitaram, ficando em suas próprias terras; outros, com mais generosa resolução e determinados a não servir, se meteram pelo sertão, onde ficaram muitos; outros, caindo para a parte do mar, vieram sair às terras do Maranhão, e ali como soldados tão exercitados com o mais poderoso inimigo, fizeram facilmente a seus habitadores o que nós lhes tínhamos feito a eles.
Desta peregrinação e desta guerra se seguiram naquela gente os dois efeitos que sinala Isaías, ficando uma e outra gente arrancada e despedaçada: os vencedores arrancados, porque os tinham lançado de suas terras os Portugueses; e também despedaçados, assim porque foram ficando a pedaços em vários sítios como porque depois da vitória lhes foi necessário para conservarem o violento domínio, dividirem-se em colônias mui distantes uns dos outros, os vencidos também ficaram arrancados, porque os Tutinambás, (que assim se chamavam os Pernambucanos) os arrancaram de suas pátrias; e também e com muito maior razão despedaçados porque, não podendo resistir, muitos deles fugiram em magotes pelos matos e pelos rios tomando diferentes caminhos, onde fizeram assento, não sem novos inimigos que ainda mais os
despedaçassem; assim que uns e outros ficaram gente arrancada, e uns e outros gente despedaçada: gentem conculcatam et dilaceratam.
Conhecidos já pela fortuna os descreve o Profeta, e muito particularmente pelo exercício e arte da navegação, em que eram e são os Maranhões mui sinalados entre os índios, por serem eles, ou os primeiros inventores da sua náutica, como gente nascida e mais criada na água que na terra, ou certamente porque com sua indústria adiantaram muito a rudeza das embarcações bárbaras, de que os primeiros
usavam. Tanto assim que a principal nação daquela terra, tomando o nome da mesma arte de navegar e das mesmas embarcações em que lá navegavam, se chamam Igaruanas, porque as suas embarcações, que são as canoas, se chamam na sua língua igara, e deste nome igara derivaram a denominação de Igaruanas, como se disséssemos os náuticos, os artífices ou os senhores das naus
Diz pois Isaías que esta gente de que fala é um povo: Quae mittit in mare legatos et in vasis papyri super aquas: «Que manda de uma parte para outra seus negociantes em vasos de cascas de árvores sobre as águas.>>
As palavras do Profeta todas têm mistério e todas declaram muito a propriedade da gente de que fala. Diz que as manda o povo, com quem concorda o relativo quae, porque é gente que não tem reis, mas o mesmo povo e a mesma nação é a que elege aqueles que lhes parecem de melhor talento, assim para os negócios da paz, como para os da guerra, que tudo isso quer dizer a palavra legatos, como se pode ver nos autores da língua latina. Diz mais que vão sobre as águas em vasos de cascas de árvores, porque esta era a matéria e fábrica de suas embarcações. Depois que tiveram uso do ferro, cavam os troncos das árvores e fazem de um só madeiro muito grandes canoas, de que o autor desta explicação viu alguma que tinha dezassete palmos de boca e cento de comprimento; mas antes de terem ferro despiam estes mesmos madeiros, cujos troncos são muito altos e direitos, e, tirando-lhes as cascas assim inteiras, delas formavam as suas embarcações. E não faz dúvida dizer o profeta que estas embarcações iam ao mar: Qui mittit in mare; porque, além de entrarem com elas pelo mar Oceano, o mesmo arquipélago que dizemos, de água doce, se chama na sua língua, por sua grandeza, mar, e de aqui veio o nome que os Portugueses lhe puseram de Grão-Pará ou Maranhão, o que tudo quer dizer mar grande, porque Pará significa mar.
Do que temos dito atèqui ficará mais fácil de entender aquele grande enigma do Profeta, que está nas primeiras palavras deste texto: Vae terrae cymbalo alarum; o qual foi sempre o que maior trabalho deu aos intérpretes e os obrigou a dizerem cousas mui violentas e impróprias, como aqueles que falavam a adivinhar, e não adivinhavam nem podiam. Os Setenta Intérpretes, em lugar de terrae cvmbalo alarum, leram terrae navium alis; e uma e outra cousa significam as palavras de Isaías; porque os nomes hebreus de que estas versões foram tiradas, têm ambas as significações e querem dizer: Ai da terra que tem navios com asas; ou, ai da terra que tem sinos com asas. Se são sinos, como são navios? e se são navios, como são sinos?
Esta dificuldade foi atègora o torcedor de todos os entendimentos dos expositores sagrados, de 1600 anos a esta parte; mas como podia ser que entendessem o enigma da terra, senão tinham as notícias nem a língua dela? Para inteligência do verdadeiro entendimento deste texto ou enigma, se há-de supor que a palavra latina cymbalum, com que significamos os nossos sinos de metal, significa também qualquer instrumento com que se faz som e estrondo e tais eram os címbalos de que usavam antigamente os Gentios, que se chamavam por nomes particulares sistros crotalos, ou cretitáculos, e por nome geral cimbalos. Assim o explicou eruditamente Carpenteio, vertendo em verso este mesmo lugar de Isaías:
Vae tibi, quae reducem sistris cretitantibus apim Concelebras, crotalos et inania cymbala pulsas...
Também se há-de supor que os Maranhões usavam de uns instrumentos a que chamavam maracás não de metal, porque o não tinham, senão de cabaços ou cocos grandes, dentro dos quais metiam seixos ou caroços de várias frutas, duros e acomodados a fazer muito estrondo e ruído, servindo-se dos menores nas festas e
nos bailes e dos maiores nas guerras. Estes maracás eram propriamente os seus címbalos ou sinos, tanto assim que, depois que viram os sinos de que nós usamos, lhes chamam itamaracás, que quer dizer, maracás ou sinos de metal.
Isto suposto, o expositor que mais foi rastejando o sentido verdadeiro que podia ter este enigma, foi Gabriel Palácio, o qual, no comentário literal deste lugar de Isaías, diz assim: Fortasse indicus usus nominis cymbali antiquitas inolevit apud Hebraeos tempore Isaiae: «Porventura—diz ele—que no tempo de Isaías as embarcações dos Índios se chamariam entre os Hebreus sinos.» E porque não seria antes, digo eu, que se chamassem sinos, ou tomassem nome de sinos as embarcações dos índios, de que Isaías falava, não porque este nome fosse usado entre os Hebreus, senão entre os mesmos Índios? Assim era e assim é, e deste modo fica decifrado e entendido o antiquíssimo e escuríssimo lugar e enigma de Isaías.
As maiores embarcações dos Maranhões chamam-se maracàtim, derivado o nome da palavra mararacá, que, como dissemos, significa entre eles sino; e a razão de darem este nome às suas maiores embarcações era porque, quando iam às batalhas navais, quais eram ordinariamente as suas, punham na proa um destes maracás muito grandes, atados aos gorupezes ou paus compridos; e bolindo de indústria com eles, além do movimento natural das canoas e dos remeiros, faziam um estrondo barbaramente bélico e horrível; e porque a proa da canoa se chama tim, tirada a metáfora do nariz dos homens ou do bico das aves, que têm o mesmo nome, e juntando a palavra tim com a palavra maracá, chamavam àquelas canoas ou embarcações maiores maracàtim; e este nome usam ainda hoje, e com ele nomeiam os nossos navios.
Nem mais nem menos que os Romanos às suas galés de guerra deram nomes de rostratas, pelas pontas de ferro agudas que levavam nas proas, tirado também o nome ou metáfora dos bicos das aves, que chamam rostros. Assim que vem a dizer Isaías que a terra de que fala é terra que usa embarcações que têm nomes de sinos; e estas são pontualmente os maracàtins dos Maranhões.
Mas não está ainda explicada toda a dificuldade ou propriedade do enigma, porque diz o Profeta que estas embarcações ou estes sinos eram sinos e embarcações com asas: cymbalo alarum, navium alis. Os expositores todos dizem que estas asas eram as velas das embarcações e que são as asas dos navios, conforme o poeta: Velorun pandimus alas. A qual explicação pudera ser bem admitida, se não tivera a própria e verdadeira; sendo certo que o Profeta não havia de dar por sinal e divisa daquelas embarcações uma cousa tão comum e universal em todas.
Digo pois que fala o texto de verdadeiras asas de aves. Como aqueles gentios não tecem, nem têm panos, é grande entre eles o uso das penas pela formosura das cores com que a natureza vestiu os pássaros, e particularmente o chamado guarás, de que há infinita quantidade, grandes e todos vermelhos, sem mistura de outra cor; destas penas se enfeitam quando se querem pôr bizarros, e principalmente quando vão à guerra, ornando com elas todo o gênero de armas, porque não só levam empenadas as setas, senão também os arcos e rodelas, e as partaz anas de pau e pedra que chamam fanga-penas; e quando a guerra era naval, empavezavam-se as canoas com asas vermelhas dos guarás. e as mesmas levavam penduradas dos gorupezes e maracás das proas; e por isso o Profeta diz que todas estas cousas via e notava como tão novas: chamam as lanças sinos e sinos com asas: Navius alis, cymbalo alarum.
E porque não faltasse a esta terra a demarcação ou arrumação, como dizem os geógrafos, da sua altura, onde a Vulgata leu gentem expectantem expectantem, a propriedade da letra hebréia, como diz Foreiro, Pagnino, Vatablo, Sanchez e outros muitos tão geralmente, é gentem lineae linea:, gente da linha de linha; porque os Maranhões são aqueles que, além da Etiópia, ficam pontual e perpendiculannente bem debaixo da Linha Equinocial, que é propriedade por todos os títulos admirável; e assim como a palavra lineae se repete, está também repetida no mesmo texto a palavra expectantem; com que vem a concluir o Profeta o seu principal e total intento, que é exortar os pregadores evangélicos a que vão ser anjos da guarda daquela triste gente, que tanto há mister quem a encaminhe como quem a defenda: Ite, angeli ve1oces, ad gentem expectantem, expectantem: gente que está esperando, esperando. Porque entre todas as gentes do Brasil os Maranhões foram os últimos a quem chegararn as novas do Evangelho e o conhecimento do verdadeiro Deus, esperando por este bem, que tanto tardou a todos os Americanos, mais que todos eles. No Brasil se começou a pregar a Fé no ano de 1550, em que o descobriu Pedro Álvares Cabral; e no Maranhão no ano de 1615, em que o conquistou Alexandre de Moura, esperando mais que todos os outros Brasis sessenta e cinco anos. Mas hoje estão ainda em pior fortuna, padecendo aquele vae do Profeta: Vae terra: cymbalo alarum; porque o estado da esperança se Lhes tem trocado no de desesperação. E esperam de se salvar os que de tantos danos e danos são causa?
Muito largos temos sido na exposição deste texto, mas foi assim necessário por sua dificuldade e por não estar até hoje entendido. Deixo muitos outros lugares do Profeta Isaías, o qual verdadeiramente se pode contar entre os cronistas de Portugal, segundo fala muitas vezes nas espirituais conquistas dos Portugueses e nas gentes e nações que por seus pregadores se converteram à
Fé; que o primeiro e principal intento que neles tiveram nossos piedosíssimos reis, como se pode ver do que de El-Rei Dom Manuel, de El-Rei Dom João o II, do Infante Dom Henrique, de El-Rei Dom João o III e de El-Rei Dom Sebastião escrevem seus historiadores.
O Profeta Abdias em um só capítulo que escreveu também falou das conquistas de Portugal: El transmigratio Hierusalem, quae in Bosphoro est, possidebit civitates Austri. A palavra hebreia Sepharad, de que São Jerônimo verteu Bosphoro, significa termo, limite e fim. Esta mesma palavra Sepharad é nome com que os Hebreus chamam a Espanha, porque em Espanha está o estreito que divide a Europa de África e Espanha era o termo, limite e fim que os Antigos conheciam no Mundo, como testemunham de uma parte as Colunas de Hércules e de outra o cabo de Finis Terrae, que são as duas balizas que têm no meio a Portugal. Toda a explicação é comum e certa entre todos os autores mais peritos da língua hebraica—Vatablo, Pagnino, Burgense, Arias, Lirano, Isidoro Clário e os demais. Diz agora o profeta Abdias que a transmigração de Jerusalém, que passou a Espanha, viria tempo em que possuísse as cidades do Austro.
Mas sobre a transmigração de Jerusalém de que Abdias fala, há duas opiniões entre os autores. Árias Montano, Frei Luís de Leon, Malvenda e outros têm para si que fala da transmigração de Nabucodonosor o qual, tendo conquistado a Jerusalém e passado seus habitadores para Babilônia, de ali mandou parte deles para Espanha, por ser parte desta província conquista sua, como refere Josefo, Estrabo e outros graves autores, e que veio o mesmo Nabuco em pessoa a fazer esta guerra. Destes hebreus, ou desterrados ou trazidos por Nabuco, ficaram muitos em Espanha, pela qual fortuna (como notou Santo Agostinho na morte dos infantes de Belém) não tiveram parte na morte de Cristo e conservaram sua antiga nobreza,
e deles, como escrevem muitas histórias de Espanha, foi fundação a insigne cidade de Toledo, Maqueda, Escalona e outras. Assim querem também que de Nabuco traga seu apelido a ilustre família dos Osórios. Desta transmigração pois (diz Montano e os mais acima alegados) se há-de entender o texto de Abdias; e como o Profeta própria e literalmente falava neste lugar do mesmo cativeiro de Babilônia, é conseqüência muito ajustada que da profecia do desterro passou, para consolação dos mesmos desterrados, a uma felicidade tão estranha, que delas havia de ter princípio, qual é a que logo diremos.
Nicolau de Lira, Vatablo, Fevardêncio e outros entendem por esta transmigração de Jerusalém a que fez Cristo, mandando daquela cidade e espalhando por todo o Mundo seus Apóstolos, entre os quais coube Espanha a Sant' Iago, e ele por meio de seus discípulos a converteu toda à Fé e desterrou dela a Gentilidade: Et transmigratio Hierusalem, quae in Bosphoro est (diz Lirano) in hebraeo habetur in Cepharad, id est in Hispania, ubi dicit Rabbi Sa... quod fuit impletum per Jacobum apostolum, et ejus discipulos, ibi fidem Christi primitus praedicantes, et colla gentium subjugantes, etc. E cumprida em Sant'Iago a transmigração de Jerusalém, que é a primeira parte da profecia, em seus discípulos, que são os que em Espanha receberam e conservaram sempre a Fé que ele lhes tinha pregado, se cumpriu a segunda parte dela; sendo estes os que
depois de tantos séculos vieram a dominar e possuir as regiões do Austro: Possidebunt civitates Austri. Assim o entendem também, seguindo esta segunda exposição, Cornélio, José da Costa, Antônio Caracciolo e outros. De maneira que todos estes autores concordam em que a profecia da conquista das regiões do Austro se entende de Espanha; e discordam só na inteligência da transmigração de Jerusalém, entendendo uns que é a de Nabuco pelos Judeus passados à Espanha, e outros que é a de Cristo pelos Apóstolos, quando vieram pregar a ela; mas eu, conciliando facilmente estas duas opiniões e mostrando que a profecia se entende mais particularmente de Portugal, digo que falou o Profeta de uma e outra transmigração, porque de ambas as transmigrações foram os primeiros ministros da Fé que a plantaram em Portugal, de onde ela depois tão felizmente se transplantou às regiões do Austro.
O fundamento que tenho para assim o dizer, porei aqui com as palavras do arcebispo D. Rodrigo da Cunha, o qual, na primeira parte da Historia Ecclesiastica Bracharense, falando do Apóstolo Sant'Iago, diz desta maneira:
Entrou em Braga o santo Apóstolo, e para entrar com estrondo de trovão (cujo filho o chamara Cristo, Nosso Senhor, se foi a uma sepultura célebre, onde jacia enterrado de seiscentos anos um santo profeta, judeu de nação, e que ali viera dar com outros cativos mandados de Babilônia por Nabucodonosor, chamado Malaquias, o velho, ou Samuel, o moço e em presença de infinito povo, chamando por ele o ressuscitou em nome de Jesus Cristo, a quem vinha pregar e publicar por verdadeiro Deus; bautizou-o pouco depois, e dando-lhe o nome de Pedro, o escolheu e tomou por primeiro e principal de todos seus discípulos.
Até aqui esta maravilhosa história, tirada de autores e memórias mui antigas, e particularmente de uma carta de Hugo, bispo do Porto, e dos fragmentos de Santo Atanásio, bispo de Saragoça, o qual conheceu ao mesmo Pedro ressuscitado e escreveu o caso quase pelas mesmas palavras, que por isso não traduzimos, e são as seguintes: Ego novi sanctum Petrum, Bracharensem Episcopum, quem antiquum prophetam suscitavit Sanctus Jacobus Zebeduei filius, magister meus. Hic venerat cum duodecim tributus missis a Nabuchodonosore in Hispaniam Hierosolymis duce Nabucho-Cerdan, vel Pyrrho, Hispaniarum praefecto.
De sorte que ambas as transmigrações de Jerusalém concorrem para a fé de Portugal: a de Cristo com o Apóstolo Santiago, e a de Nabuco com o Apóstolo Malaquias, depois chamado vulgarmente S. Pedro de Rates, que foi a pedra fundamental depois do sagrado Apóstolo da Igreja de Portugal. Os filhos desta Igreja e herdeiros desta Fé foram os que dali a tantos anos dominaram com os estandartes dela as cidades e regiões do Austro, que são propriissimamente as que correm de uma e outra parte do Oceano Austral, à parte direita pela costa da América ou Brasil, e à esquerda pela costa de África à Etiópia, cuja rainha Sabá chamou Cristo Regina Austri; e estas são as terras de que no comento deste texto faz menção Cornélio: Americam, Brasilicam, Africam, AEthiopiam.
Assim se cumpriu nos Portugueses a profecia de Abdias: Transmigratio, quae est in Hispania, possidebit civitates Austri. E esperamos que seja novo complemento dela o domínio da terra indômita, geralmente chamada Terra Austral.
O Cântico de Habacuc, que é a matéria de todo o III cap. e último deste Profeta, tem por assunto o triunfo de Cristo, com que por meio da sua cruz triunfou um dia da morte, do demônio e do pecado, e depois em vários tempos foi triunfando da idolatria e da gentilidade, conforme a disposição da sua providência. A parte marítima deste triunfo, que também foi naval, pertence principalmente aos Portugueses, por meio de cuja navegação e pregação sujeitou Cristo à obediência de seu império tantas gentes de ambos os mundos. Isto quer dizer 0 Profeta no v. 8.° ...ascendes super equos tuos: et quadrigae tuae salvatio. E no v. 15.°: Viam fecisti in mari equis tuis, in luto aquarum multarum. Que abriu Cristo caminho pelo mar à sua cavalaria, para que pisasse as ondas, e que a guerra que com esta cavalaria havia de fazer, não era para matar os homens, senão para os salvar, e salvando-os, triunfar deles: Equitatio tua salus; hoc est, evangelistae tui portabunt te, diz Santo Agostinho, e verdadeiramente não se podia dizer cousa mais apropriada aos Portugueses.
Os Portugueses foram aqueles cavaleiros a quem Cristo abriu o primeiro caminho pelo mar: Viam fecisti in mari equis tuis. Os Portugueses, aqueles cavaleiros que pisaram as ondas do mar, como os cavalos pisam o lodo da terra: In Iuto aquarum multarum; e as naus dos Portugueses, aquelas carroças que levavam pelo mar a Fé, a salvação: Et quadrigae tuae salvatio. E a primeira empresa e vitória desta cavalaria de Cristo foi a sujeição do mesmo mar bravo, soberbo, furioso e indignado, que ou Cristo lhe sujeitou a eles, ou eles o sujeitaram também a Cristo, para que o reconhecesse e adorasse. O mesmo Profeta o disse assim: Numquid in mari indignatio tua?» «Porventura, ó Senhor, há-de ser eterna a vossa indignação no mar?» E responde a esta sua pergunta, que o mar submeteria suas ondas: Gurges aquarum transiit: que os abismos confessariam a potência de Cristo as vozes: Dedit abyssus vocem suam; (Ibid.) e que as suas alturas ou profundidades, com as mãos levantadas o adorariam e reconheceriam por Senhor: Altitudo manus suas levavit; e esta foi a primeira vitória de Cristo, e este da sua cavalaria o primeiro triunfo.
Mas para que se veja o grande mistério desta metáfora de cavalaria de Cristo, de que usou o Profeta (deixando à parte haver sido esta empresa dos primeiros descobrimentos e conquistas dos Portugueses), por si mesma e na opinião do Mundo tem [esta] cavalaria [tanto valimento,] que não só os mesmos Portugueses, senão ainda os estrangeiros, faziam grande apreço de se armarem nela cavaleiros, como lemos que o fizeram alguns de Alemanha e Dinamarca.
Faz muito ao caso advertir o que escreve o nosso insigne historiador destas conquistas, que quero pôr aqui por suas próprias palavras): Mas ainda foi acerca dele (fala do Infante D. Henrique) outra cousa muito mais eficaz, que era a obrigação
do cargo e administração que tinha de governador da Ordem da Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo, que El-Rei D. Dinis, seu tresavo, para esta guerra dos Infiéis ordenou e novamente constituiu. E mais abaixo no mesmo cap., que é o 2° do liv. I.°, Década I.a: Assentou em mudar esta conquista para outras partes mais remotas de Espanha, do que eram os reinos de Fez e Marrocos, com que a despesa deste caso fosse própria dele e não taxada por outrem; e os méritos de seu trabalho ficassem metidos na Ordem e Cavalaria de Cristo que ele
governava; de cujo tesouro podia pretender. De sorte que dizer o Profeta que Cristo havia de abrir carmino no mar à sua cavalaria, e que a empresa havia de ser a salvação das almas, não só tem a formosura da metáfora, senão a propriedade do caso, e a verdade da história e cumprimento da profecia; pois verdadeiramente esta admirável empresa foi obra, não de outro príncipe, senão de um que era propriamente administrador e governador da Ordem da Cavalaria de Cristo, e feita, não com outras despesas, senão com as rendas e tesouros da mesma cavalaria e serviços e merecimentos próprios dela.
E porque o maior ministro do Evangelho que se embarcou nas carroças desta cavalaria, para levar a salvação às terras e gentes que ela descobriu e conquistou, foi o grande Apóstolo da Índia S. Francisco Xavier, cujos primeiros trabalhos foram os da navegação da costa de África e pregação da Fé em Moçambique, é cousa memorável e muito digna de se referir neste lugar, que também ele foi cavaleiro da mesma Ordem.
Na História do P.e Marcelo Mastrilli, a quem S. Francisco Xavier restituiu milagrosamente a vida, para que a fosse dar por Cristo no Japão, onde padeceu glorioso martírio, se conta uma visão em que o mesmo santo apóstolo apareceu vestido com o manto branco da Ordem de Cristo e com cruz vermelha no peito, como insigne cavaleiro desta santa cavalaria, e que tanto adiantou em nossas Conquistas a glória de sua empresa. Singular prerrogativa, por certo, da Ordem dos Cavaleiros de Cristo de Portugal, não havendo outra entre todas as da Cristandade, que se possa gloriar de ter tão ilustre cavaleiro, nem de que sobre os dotes da glória se vestisse o seu manto e a sua cruz; mas todo este favor do Céu merece uma cavalaria que tanto mar, tanto mundo e tantas almas conquistou para o mesmo Céu.
Para confirmação de tudo isto, e para que os Portugueses conheçam quanto devem a Deus, pelos escolher para instrumentos de obras tão admiráveis, e para que se não admirem quando lhes dissermos que os tem escolhido para outras maiores, não pode haver melhor testemunho que o proêmio do mesmo Profeta, com que deu princípio a este cântico triunfal das vitórias de Cristo: Domine, (começa ele) audivi auditionem tuam et timui. Domine, opus tuum in medio annoram vivifica illud. In medio annorum notum facies: cum iratus fueris, misericordiae recordaberis. Quando Deus revelou ao Profeta e quando ouviu de sua boca o que havia de fazer aos vindouros, diz que ficou cheio de temor e assombro ( assim o interpretaram os Setenta , acrescentando por modo de glosa no mesmo texto: Consideravi opera tua, et expavi). Porque não houve obra de Deus, depois do princípio e criação do Mundo, que mais assombrasse e fizesse pasmar aos homens que o descobrimento do mesmo Mundo que tantos mil anos tinha estado incógnito e ignorado; nem que maior nem mais justo temor deva causar aos que bem ponderarem esta obra, que a consideração dos ocultos juízos de Deus, com que por tantos séculos permitiu que tão grande parte do Mundo, tantas gentes e tanta s almas vivessem nas trevas da infidelidade, sem lhes amanhecerem as luzes da Fé, tão breve noite para os corpos e tão comprida noite para as almas. Mas no meio desses compridíssimos anos, diz o Profeta que faria Deus que se descobrisse e conhecesse o que até então estava
oculto: In medio annorum notum facies; e que tendo durado tantos séculos sua ira contra aquelas gentes idólatras, em fim se lembraria de sua misericórdia: Cum iratus fueris, misericordiae recordaberis; e que então tornaria o Senhor a vivificar e ressuscitar a sua obra: Opus tuum, in medio annorum vivifica illud.
Os Setenta, traduzindo juntamente e explicando leram: Cum appropinquaverint anni, cognosceris. «Quando chegarem os anos determinados por vossa providência, então sereis conhecido.:>> E este novo conhecimento que Deus deu àquelas nações por meio dos nossos apóstolos e pregadores da sua Fé foi tornar a ressuscitar a mesma obra, que tinha começado pelos primeiros apóstolos que naquelas mesmas terras a pregaram, e com o tempo estava em algumas partes amortecida e em outras totalmente morta. Isto quer dizer: Opus tuum vivifica illud: ou, como traslada Símaco: Reviviscere fac ipsum. E o mesmo profeta mais abaixo se comenta a si mesmo, dizendo: Suscitans suscitatis arcum; tuum. «Vós, Senhor, tornareis a ressuscitar o vosso arco» (que é a sua cruz), por meio de cuja pregação ressuscitaria também a Fé e as vitórias dela naquelas nações.
Assim o profetizou na Índia seu primeiro Apostolo, S. Tomé, quando na cidade de Meliapor, então famosíssima, levantando uma cruz de pedra em lugar distante das praias, não menos que doze léguas. Lhes disse e mandou esculpir no pé dela, que quando o mar ali chegasse, chegariam também de partes remotíssimas do Ocidente outros homens da sua cor. que pregassem a mesma Cruz, a mesma Fé e o mesmo Cristo que ele pregava.
Cumpriu-se pontualmente a profecia, porque o mar, comendo pouco a pouco a terra, chegou ao lugar sinalado, e no mesmo tempo chegaram os Portugueses. Igual glória (e não sei se maior de Portugal) a da Índia, que ainda tivesse a S. Tomé por seu apóstolo e Portugal não era de todo cristão, e já os Apóstolos plantavam as balizas da fé em seu nome e conheciam e pregavam que ele era o que havia de fazer cristão ao Mundo. Lembre-se outra vez Portugal destas obrigações, e de quanto lhe merece Cristo.
O Profeta Sofonias, no cap. III, também falou mui particularmente neste glorioso assunto: Ultra flumina AEthiopiae (diz ele, ou por ele Deus) inde supplices mei, filii dispersorum meorum deferent munus mihi. As quais palavras entendem Árias, Vatablo, Castro e Cornélio das nações que estão além do Tigres e do Eufrates, isto é, dos Chinas, Japões e outras gentes da Índia menos remotas, que por meio das pregações dos Portugueses se haviam de ajoelhar diante dos altares de Cristo e lhe haviam de levar e oferecer seus dons em testemunho de o reconhecerem por seu Deus; mas contra esta explicação parece que se opõem as primeiras palavras do texto, que verdadeiramente falam das gentes que estão além do rio da Etiópia: Ultra flumina AEthiopiae inde supplices mei. Logo, segundo o que acima deixamos dito, não se pode entender este texto das gentes orientais. Por este argumento há outros autores que o entendem do Brasil e da América, e posto de um e outro modo, sempre o oráculo ou elogio deste Profeta nos fica em casa. Digo que de uma e outra terra, e de uma e outra gente se pode entender.
E a razão é porque, segundo Estrabo, Éforo, Heródoto e outros, debaixo do mesmo nome de Etiópia se compreendiam antigamente duas Etiópias: uma oriental, que estava na Ásia além do Tigres e Eufrates, donde era a mulher de Moisés, chamada por isso Etiópia; e outra ocidental, na África, que são todas aquelas terras que cerca o mar Oceano, desde Guiné até o mar Roxo.
As palavras de Heródoto são estas: Hi AEthiopes, qui sunt ab ortu Solis, sub Pharnarzatre, censebantur cum Indiis specie nihil admodum a caeteris differentes, sed sono vocis dumtaxat, atque capillatura. Nam AEthiopes qui ab ortu Solis sunt,
permixtos crines; qui ex Africa, crespissimos inter homines habent. De sorte que também havia Etíopes na Ásia, como são hoje os que se conservam com o mesmo nome na África, e só se distinguiam uns dos outros no som da voz e no cabelo; porque os da .Ásia tinham o cabelo solto e corredio e os da África crespo e retorcido; a qual distinção não não só é necessária para o entendimento de muitos lugares das Escrituras, senão ainda dos historiadores e poetas antigos, que de outro modo se não podem bem entender.
Nem faça dúvida a esta distinção a palavra Chus, de que usa indistintamente o original hebreu, donde nós lemos AEthiopae; porque Membrot, filho de Chus e neto de Cham, deu o nome de seu pai às terras orientais, onde habitou e povoou. Os descendentes deste mesmo Membrot e deste mesmo Chus, como diz Éforo, referido por Estrabo, e os que depois passaram à África e a povoaram, levaram consigo o nome que tinham herdado de seu pai e de seu avô; e assim como uns e outros na língua latina se chamam AEthiopes, e a sua terra Ethiopia, assim uns e outros na língua hebréia se chamam Chuteos e a sua terra Chus. Donde se segue que quando na Escritura se acha este nome sem outra diferença, (como neste lugar de Sofonias) se pode entender de qualquer das Etiópias; porém quando se ajuntem na história ou narração algumas diferenças que o determinem, então se há-de entender determinadamente ou só da Etiópia Oriental ou só da Ocidental, como nós fizemos no texto de Isaías ultimamente referido.
No cap. XVI, 12, do Apocalipse, diz S. João:
S. João que se lhes havia tirar, de modo que se pudesse passar o Eufrates a pé enxuto. Mas debaixo das figuras deste enigma se significava outra melhor Jerusalém, que é Roma, cabeça da Igreja, e outro melhor Eufrates, que é o mar Oceano, pelo qual se abriu caminho aos reis do Oriente, para que pudessem vir à Igreja. (Fim da citação)
Assim como o Profeta Jeremias chamou ao Eufrates mar, não é muito que
S. João chamasse ao mar Eufrates, principalmente acompanhado daqueles dois epítetos de alusão a grandeza: Illud magnum Euphatem. E este grande Eufrates é aquele grande mar, pelo qual os Portugueses (maior façanha e ventura que a do
outro Ciro) fizeram passagem a pé enxuto nas suas grandes naus da Índia, para levarem nelas a Fé ao Oriente e trazerem tantos reis orientais à obediência e sujeição da Igreja. Não sou eu nem autor português (como quase todos os que até agora tenho alegado) o que isto digo, senão o doutíssimo Genebrardo, insigne professor parisiense das Letras Sagradas. falando em geral dos Espanhóis e em particular dos Portugueses, a quem só pertence a conversão dos reis do Oriente, 0 diz assim sobre este mesmo lugar do Apocacalipse.
O mesmo Evangelista Profeta S João, no cap. X, diz que viu descer do Céu um anjo forte, cujas insígnias descreve largamente , que nós pode ser expliquemos em outro lugar. Neste basta dizer que tinha na mão um livro aberto: Et habebut in manu sua libellum apertum, e que pôs o pé esquerdo sobre a terra e o direito sobre o mar: Et posuit pedem suum dextrum super mare et sinistrum super terram.
Este anjo forte (diz Pedro Bulêngero) é Cristo; o livro, o Evangelho explicado; e os pés de seu corpo místico, que é a Igreja, os pregadores apostólicos que levam pelo Mundo ao mesmo Cristo e seu Evangelho, entre os quais o pé esquerdo, que
está sobre a terra, são aqueles que, sem saírem da terra firme pregaram nela; o pé direito, que está sobre o mar, os que, navegando às regiões apartadas e remotas do nosso hemisfério, levam a elas a Fé de Cristo e a luz de seu Evangelho; donde se segue que o pé direito que Cristo pôs sobre o mar para esta gloriosa e evangélica empresa, são, entre todas as nações do Mundo, por excelência os Portugueses. Não os nomeou por seu nome este autor, mas nomeou-os por suas obras, e é o mais honrado nome e de maior estimação que lhes podia dar, explicando-se com as palavras seguintes: Istud nostra memoria factum videmus, quae quidem regna a nobis longe dissita el incognitae regiones teterrimo daemonum cultui additae sunt, opera patrum Societatis nominis Jesu ad Christi religionem traducta sunt. Sinenses enim, qui populi ad veteres Índias expectant, et infideles sunt, (relicto daemonum cultu, ad octo millia primum) et in his reges et princites, permultique proceres et optimates sub anno Domini I564, Christi Jesu fidem susceperunt; deinde multa Indorum insulae et regiones christianam, catholicamque amplexerunt doctrinam, et integrae civitates sacro sunt ablutae baptismate.
«Em cumprimento desta profecia (diz Bulêngero, alegando a Súrio). vemos que os reinos e regiões muito apartadas de nós, que adoravam nos ídolos aos demônios, pela indústria dos padres da Companhia de Jesus, se têm passado à verdadeira religião; porque os Chinas, que pertencem às antigas Índias, e são infiéis e gentios, deixando o culto da idolatria no ano de I564, receberam a Fé de Cristo em número de 8.ooo, em que entraram os príncipes e reis e muitos grandes senhores; e em outras muitas ilhas e terras, de tal maneira os Índios abraçaram a doutrina cristã e católica, que as cidades se batizaram.>> Tão facilmente triunfa Cristo pela voz e espada dos Portugueses, com o pé direito no mar e o livro na mão direita!
No capítulo seguinte se verão muitos lugares de vários Profetas, explicados por autores que escreveram de cem anos a esta parte, depois que por meio da navegação do mar Oceano se quebrou o fabuloso encantamento dos negados
antípodas e se descobriram tantas terras e gentes, não só incógnitas aos Antigos, mas nem ainda presumidas ou imaginadas deles. Ali veremos as admiráveis propriedades e miudíssimas circunstâncias com que os mesmos Profetas falaram dos mares, das ilhas, das navegações, das terras, dos sítios, dos rios, das minas, das árvores, dos frutos, das gentes, dos costumes, da cegueira e infelicidade em que viviam, e sobre tudo da Fé e luz do Evangelho, com que por meio dos pregadores de Cristo o haviam finalmente de conhecer, adorar e servir, como hoje, com tanta glória da Igreja, conhecem, adoram e servem.
Agora só pergunto: Como era possível que aqueles antigos e antiquíssimos autores explicassem neste sentido aos Profetas? Ou como podiam entender nem perceber que destas gentes, e destas terras, e destes mares, falavam os seus oráculos e profecias? Se criam tão firme e assentadamente que não havia nem podia haver antípodas, como podiam explicar as profecias dos antípodas? Se criam que a imensidade do mar Oceano não era navegável e tinham este pensamento por absurdo, como haviam de entender as profecias destas navegações e destes mares? Se queriam que a zona tórrida era um perpétuo incêndio, e totalmente abrasada e inabitável, como haviam de interpretar as profecias dos habitadores da zona tórrida? Como haviam de cuidar, nem lhes havia de vir ao pensamento que os Profetas falavam dos Americanos, se não sabiam que havia América? Como dos Brasis, se não havia Brasil? Como dos Peruanos e Chiles, se não sabiam que havia Peru nem Chile? Como haviam de interpretar os Profetas das ilhas desertas ou povoadas do Oceano, se não sabiam que havia no Mundo tais ilhas? Como dos Etíopes ocidentais, se não sabiam que havia tal Etiópia? Como dos Japões, se não
sabiam que havia Japões? Como dos Chinas, se não sabiam que havia China? Se os Profetas nas figuras enigmáticas dos seus oráculos se declaram pela natureza, propriedade, costumes, exercícios e histórias das gentes e reinos de que falam, como haviam de vir em conhecimento dessas gentes e desses reinos os que não podiam saber sua natureza, suas propriedades, seus exercícios e seus costumes, nem suas histórias? Se declaram as terras pelos sítios, pelos rios, pelas árvores, pelos frutos, pelas minas e seus metais, como podiam conhecer nem atinar com as terras os que não tinham notícia de tais sítios, de tais rios, de tais minas, de tais árvores, nem de tais frutos? E se ainda hoje, depois de descobertas e conhecidas estas terras e estas gentes, e se terem escrito tantos livros de sua história natural e política, ainda por falta de notícias mais particulares e miúdas, se não acerta mais que em comum e individualmente com algumas das terras e gentes de que os profetas falaram, que seriam na confusão escuríssima da Antigüidade, em que nenhuma destas cousas se sabia nem se imaginava, antes as contrárias delas se tinham por averiguadas e certas?
Frei João de la Puente, naquele seu erudito livro da Conveniência das duas monarquias, romana e espanhola, trabalhando por explicar de Espanha certo lugar de Isaías, diz assim dos teólogos, sendo ele mestre em Teologia: La falta de Geographia v la de otras artes liberales es causa que los teologos non atinem con el sentido de la divina Escritura. E isto que se não pode dizer dos teólogos do nosso tempo sem grande nota de sua ciência e diligência, depois do Mundo estar tão descoberto e conhecido, é obrigação e força que digamos ou suponhamos
dos teólogos antigos, por doutíssimos e sapientíssimos que fossem, como verdadeiramente eram, sem agravo, nem menos decoro de sua erudição e grande sabedoria, porque sabiam a geografia do seu mundo e não podiam saber nem adivinhar a do nosso. Só por nova revelação e luz sobrenatural podiam conhecer os autores daquele tempo o que nós tão fácil e naturalmente conhecemos hoje; mas esta revelação, esta luz e posto que fossem varões santíssimos e tão favorecidos de Deus, não quis o mesmo Deus que eles então a tivessem, porque era disposição mui assentada da sua providência que estas cousas se não soubessem, e estivessem ocultas até àqueles tempos medidos e taxados por ele, em que tinha decretado que se soubessem e descobrissem.
Diz o Apóstolo S. Paulo que acomodou Deus e repartiu os séculos conforme os decretos da sua palavra, para que cousas invisíveis se fizessem visíveis: Fide intelligimus aptata esse saecula verbo Dei, ut ex invisibilibus, visibilia fiant; por onde não é muito que tanta parte do Mundo, e as gentes que o habitavam, estivessem ignoradas e invisíveis por tantos séculos, e que depois chegasse um século em que se descobrissem e fossem visíveis; e assim como, corrida esta cortina, se descobriram e manifestaram as terras e gentes de que tinham falado os Profetas, assim se entenderam e descobriram também os segredos e mistérios de suas profecias.
Destas terras ultramarinas, encobertas e incógnitas, falava Isaías, quando disse no cap. XXIV: ...in doctrinis glorificate Dominum; in insulis maris nomen Domini, Dei Israel. E logo acrescentou: Secretum meum mihi, secretum meum mihi: «Este segredo é só para mim; este segredo é só para mim.» E se na mesma profecia estavam profetizadas as cousas, e mais o segredo delas, como podia ser que contra a verdade infalível da profecia soubessem os Antigos deste segredo, antes de chegar o tempo em que Deus tinha determinado de o revelar?
O cântico do profeta Habacuc, que também trata destes novos descobrimentos ou triunfos da Fé e da conversão destas gentes, tem por título Pro ignorantiis. E se o
conselho de Deus foi que o entendimento ou de todas ou de muitas cousas que ali contou o Profeta, se ignorasse; que agravos ou descréditos é ou pode ser dos antigos sábios, que para eles fossem ocultas, incógnitas ou ignoradas? Podem os homens ocultar os seus segredos, e Deus não será senhor de reservar os seus, sendo logo certo que estes segredos da Providência Divina se não podiam alcançar por ciência humana, e que a mesma Providência tinha decretado que se não soubessem por revelação?
LAUS DEO