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VIEIRA, Antonio. Historia do futuro. Belém: Unama, [200-?]. 115 p. Disponível em: < http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=& co_obra=17328 >. Acesso em: 11 Jan. 2017
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de Padre Antônio Vieira
Declara-se a primeira parte do titulo desta História, e quão própria é da curiosidade humana a sua matéria.
Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seu maior apetite, nem mais superior a toda a sua capacidade, que a notícia dos tempos e sucessos futuros; e isto é o que oferece a Portugal, à Europa e ao Mundo esta nova e nunca vista história. As outras histórias contam as cousas passadas, esta promete dizer as que estão por vir; as outras trazem à memória aqueles sucessos públicos que viu o Mundo; esta intenta manifestar ao Mundo aqueles segredos ocultos e escuríssimos que não chega a penetrar o entendimento. Levanta-se este assunto sobre toda a esfera da capacidade humana, porque Deus, que é a fonte de toda a sabedoria, posto que repartiu os tesouros dela tão liberalmente com os homens, e muito mais com o primeiro, sempre reservou para si a ciência dos futuros, como regalia própria da divindade. Como Deus por natureza seja eterno, é excelência gloriosa, não tanto de sua sabedoria, quanto de sua eternidade, que todos os futuros lhe sejam presentes; o homem, filho do tempo, reparte com o mesmo a sua ciência ou a sua ignorância; do presente sabe pouco, do passado menos e do futuro nada.
A ciência dos futuros — disse Platão — é a que distingue os deuses dos homens, e daqui lhes veio sem dúvida aquele antiquíssimo apetite de serem como deuses. Aos primeiros homens, a quem Deus tinha infundido todas as ciências, nenhuma lhes faltava senão a dos futuros, e esta lhes prometeu o Demônio com a divindade, quando lhes disse: Eritis sicut Dii, scientes bonum et malum. Mas ainda que experimentaram o engano, não perderam o apetite. Esta foi a herança que nos ficou do Paraíso, este o fruto daquela árvore fatal, bem vedado e mal apetecido, mas por isso mais apetecido, porque vedado.
Como é inclinação natural no homem apetecer o proibido e anelar ao negado, sempre o apetite e curiosidade humana está batendo às portas deste segredo, ignorando sem moléstia muitas cousas das que são, e afetando impaciente a ciência das que hão de ser. Por este meio veio o Demônio a conseguir que o homem lhe desse falsamente a divindade, que o mesmo demônio com igual falsidade lhe tinha prometido. E senão, pergunto: Quem foi o que introduziu no Mundo, sem algum medo, mas antes com aplauso, a adoração do Demônio? Quem fez que fosse tão freqüentado e consultado o ídolo de Apolo em Delfos? O de Júpiter em Babilônia? O de Juno em Cartago? O de Vênus no Egito? O de Dafne em Antioquia? O de Orfeu em Lesbo? O de Fauno em Itália? O de Hércules em Espanha, e infinitos outros em muitas partes? Não há dúvida que o desejo insaciável que os homens sempre tiveram de saber os futuros, e a falsa opinião dos oráculos com que o Demônio respondia naquelas estátuas, foram os que todo este culto lhe granjearam, sendo certo que, se Deus, vindo ao Mundo, não emudecera (como emudeceu) os oráculos da Gentilidade, grande parte do que hoje é fé, fora ainda idolatria. Tão mal sofreram os homens que Deus
reservasse para si a ciência dos futuros, que chegaram a dar às pedras a divindade própria de Deus, só porque Deus fizera própria da divindade
esta ciência: antes queriam uma estátua que lhes dissesse os futuros, que um Deus que lhos encobria.
Mas que direi das ciências ou ignorâncias das artes ou superstições que os homens inventaram desde a terra até o céu, levados deste apetite? Sobre os quatro elementos assentaram quatro artes de adivinhar os futuros, que tomaram os nomes dos seus próprios sujeitos: agromancia, que ensina a adivinhar pelas cousas da terra; a hidromancia, pelas da água; a aeromancia, pelas do ar, e a piromancia, pelas do fogo. Tão cegos seus autores no apetite vão daquela curiosidade, que, tendo-se perdido na terra os vestígios de tantas cousas passadas, cuidaram que na água, no ar e no fogo os podiam achar das futuras.
No mesmo homem descobriram os homens dois livros sempre abertos e patentes, em que lessem ou soletrassem esta ciência. A fisionomia, nas feições do rosto; a quiromancia, nas raias da mão. Em um mapa tão pequeno, tão plano e tão liso como a palma da mão de um homem, inventaram os quiromantes não só linhas e caracteres distintos, senão montes levantados e divididos, e ali descrita a ordem e sucessão da vida e casos dela, os anos, as doenças e os perigos, os casamentos, as guerras, as dignidades, e todos os outros futuros prósperos ou adversos; arte certamente merecedora de ser verdadeira pois punha a nossa fortuna nas nossas mãos.
Deixo a astrologia judiciária, tão celebrada no nascimento dos príncipes, em que os genetlíacos, sobre o fundamento de uma só hora ou instante da vida, levantam ou figura ou testemunhos a todos os Sucessos dela. Nem quero falar na triste e funesta nicromancia, que, freqüentando os cemitérios e sepulturas no mais escuro e secreto da noite, invoca com deprecações e conjuros as almas dos mortos para saber os futuros dos vivos.
A este fim excogitaram tantos gêneros de sortilégios, como se na contingência da sorte se houvesse de achar a certeza; a este fim observaram os sonhos como se soubesse mais um homem dormindo do que sabia acordado; a este sentido consultavam as entranhas palpitantes dos animais, como se um bruto morto pudesse ensinar a tantos homens vivos. Com o mesmo apetite pediam respostas às fontes, aos rios, aos bosques e às penhas; com o mesmo inquiriam os cantos e vôos das aves, os mugidos dos animais, as folhas e movimentos das árvores, com o mesmo interpretavam os números, os nomes e as letras, os dias e os fumos, as sombras e as cores e não havia cousa tão baixa e tão miúda por onde os homens não imaginassem que podiam alcançar aquele segredo que Deus não quis que eles soubessem. O ranger da porta, o estalar do vidro, o cintilar da candeia, o topar do pé, o sacudir dos sapatos, tudo notavam como avisos da Providencia e temiam como presságios do futuro. Falo da cegueira e desatino dos tempos passados, por não envergonhar a nobreza da nossa Fé com a superstição dos presentes.
Finalmente, a investigação deste tão apetecido segredo foi o estudo e disputa dos maiores e mais sinalados filósofos, de Sócrates, de Pitágoras, de Platão, de Aristóteles e do eloqüente Túlio, nos livros mais sublimes e doutos de todas suas obras. Esta era a teologia famosa dos Caldeus; este o grande mistério
dos Egípcios; esta em Roma a religião dos áugures; esta em Judeia a seita dos Pitões e Aríolos; esta em Pérsia a ciência e profissão dos Magos; esta enfim do Céu até o Inferno, o maior desvelo dos sábios e maior ânsia e tropeço dos ignorantes; uns injuriando o Céu, e dando trato às estrelas para que digam o que não podem; outros inquietando o Inferno (como dizia Samuel), e tentando os mesmos demônios, para que revelem o que não sabem. Tanto foi em todas as idades do Mundo, e tanto é hoje, na curiosidade humana, o apetite de conhecer o futuro!
Mas o que mais que tudo encarece a tenacidade deste desejo, é considerar que, enganados tão profundamente os homens pela falsidade e mentira de todas estas artes e seus ministros, não tenha bastado nenhuma experiência, nem haja de bastar já para mais os desenganar e apartar dele: Genus hominum potentibus infidum, sperantibus fallax, quod in civitate nostra, et vetabitur semper et retinebitur, disse Tácito. O mesmo Saul, que desterrou a Pitonisa, a foi buscar e se serviu de sua má arte; e os mesmos que mais severamente negam o crédito às cousas prognosticadas, folgam de ouvir e saber que se prognosticam, sinal certo que não buscam os homens os futuros, porque os achem, senão que vão sempre após eles, porque os amam.
Para satisfazer, pois, à maior ânsia deste apetite e para correr a cortina aos maiores e mais ocultos segredos deste mistério, pomos hoje no teatro do Mundo esta nossa História, por isso chamada do Futuro. Não escrevemos com Beroso as antigüidades dos Assírios, nem com Xenofonte a dos Persas, nem com Heródoto as dos Egípcios, nem com Josofo a dos Hebreus, nem com Cúrcio a dos Macedônios, nem com Tucídides a dos Gregos, nem com Lívio a dos Romanos, nem com os escritores portugueses as nossas; mas escrevemos sem autor o que nenhum deles escreveu nem pôde escrever. Eles escreveram histórias do passado para os futuros, nós escrevamos a do futuro para os presentes. Impossível pintura parece antes dos originais retratar as cópias, mas isto é o que fará o pincel da nossa História.
Assim foram retratos de Cristo Abel, Isaac, José, David, antes do Verbo ser homem. O que ignorou o mundo antigo, o que não conheceu o moderno e o que não alcança o presente, é o que se verá com admiração neste prodigioso mapa descrito: cousas e casos que ainda lhes falta muito para terem ser quanto mais antigüidade.
A história mais antiga começa no princípio do Mundo; a mais estendida e continuada acaba nos tempos em que foi escrita. Esta nossa começa no tempo em que se escreve, continua por toda a duração do Mundo e acaba com o fim dele. Mede os tempos vindouros antes de virem, conta os sucessos futuros antes de sucederem, e descreve feitos heróicos e famosos, antes de a fama os publicar e de serem feitos.
O tempo, como o Mundo, tem dois hemisférios: um superior e visível, que é o passado, outro inferior e invisível, que é o futuro. No meio de um e outro hemisfério ficam os horizontes do tempo, que são estes instantes do presente que imos vivendo, onde o passado se termina e o futuro começa. Desde este ponto toma seu princípio a nossa História, a qual nos irá descobrindo as novas regiões e os novos habitadores deste segundo hemisfério do tempo, que são os antípodas
do passado. Oh que de cousas grandes e raras haverá que ver neste novo descobrimento!
Aqueles historiadores que nomeamos e foram os mais célebres do Mundo, escreveram os impérios, as repúblicas, as leis, os conselhos, as resoluções, as conquistas, as batalhas, as vitórias, a grandeza, a opulência e felicidade, a mudança, a declinação, a ruína ou daquelas mesmas nações, ou de outras igualmente poderosas, que com elas contendiam. Nós também havemos de falar de reinos e de impérios, de exércitos e de vitórias, de ruínas de umas nações e exaltações de outras; mas de impérios não já fundados, senão que se hão-de fundar; de vitórias não já vencidas, mas que se hão-de vencer; de nações não já domadas e rendidas, senão que se hão-de render e domar.
Hão-se de ler nesta História, para exaltação da Fé, para triunfo da Igreja, para glória de Cristo, para felicidade e paz universal do Mundo, altos conselhos, animosas resoluções, religiosas empresas, heróicas façanhas, maravilhosas vitórias, portentosas conquistas, estranhas e espantosas mudanças de estados, de tempos,
de gentes, de costumes, de governos, de leis; mas leis novas, governos novos, costumes novos, gentes novas, tempos novos, estados novos, conselhos e resoluções novas, empresas e façanhas novas, conquistas, vitórias, paz, triunfos e felicidades novas; e não só novas, porque são futuras, mas porque não terão semelhança com elas nenhumas das passadas. Ouvirá o Mundo o que nunca viu, lerá o que nunca ouviu, admirará o que nunca leu, e pasmará assombrado do que nunca imaginou. E se as histórias daqueles escritores, sendo de cousas menores antigas e passadas, se leram sempre com gosto, e depois de sabidas se tornaram a ler sem fastio, confiança nos fica para esperar que não será ingrato aos leitores este nosso trabalho, e que será tão deleitosa ao gosto e ao juízo a História do Futuro, quanto é estranho ao papel o assunto e nome dela.
Mas porque não cuide alguma curiosidade crítica que o nome do futuro não concorda nem se ajusta nem com o título de história, saiba que nos pareceu chamar assim à esta nossa escritura, porque, sendo novo e inaudito o argumento dela, também lhe era devido nome novo e não ouvido.
Escreveu Moisés a história do princípio e criação do Mundo, ignorada até aquele tempo de quase todos os homens. E com que espírito a escreveu? Respondem todos os Padres e Doutores que com espírito de profecia. Se já no Mundo houve um profeta do passado, porque não haverá um historiador do futuro? Os profetas não chamaram história às suas profecias, porque não guardam nelas estilo nem leis de histórias: não distinguem os tempos, não assinalam os lugares, não individuam as pessoas, não seguem a ordem dos casos e dos sucessos, e quando tudo isto viram e tudo disseram, é envolto em metáforas, disfarçado em figuras, escurecido com enigmas e contado ou cantado em frases próprias do espírito e estilo profético, mais acomodadas à majestade e admiração dos mistérios, que à notícia e inteligência deles.
Do profeta Isaías, que falou com maior ordem e maior clareza, disseram S. Jerônimo e Santo Agostinho que mais escrevera história que profecia. A sua profecia é o Evangelho fechado; o Evangelho é a sua profecia aberta. E porque nós, em tudo o que escrevemos, determinamos observar religiosa e pontualmente
todas as leis da história, seguindo em estilo claro e que todos possam perceber, a ordem e sucessão das cousas, não nua e secamente, senão vestidas e acompanhadas das suas circunstancias; e porque havemos de distinguir tempos e anos, sinalar províncias e cidades, nomear nações e ainda pessoas, (quando o sofrer a matéria), por isso, sem ambição nem injúria de ambos os nomes, chamamos a esta narração História e História do Futuro.
Sós e solitariamente entramos nela (mais ainda que Noé no meio do dilúvio) sem companheiro nem guia, sem estrela nem farol, sem exemplar nem exemplo. O mar é imenso, as ondas confusas, as nuvens espessas, a noite escuríssima; mas esperamos no Pai dos lumes (a cuja glória e de seu Filho servimos), tirará a salvamento a frágil barquinha: ela com maior ventura que Argos, e nós com maior ousadia que Tífis.
Antes de abrir as velas ao vento (oh faça Deus que não seja tempestade!), em lugar da benevolência que se costuma pedir aos leitores, só lhes quero pedir justiça. É de direito natural que ninguém seja condenado sem ser ouvido; isto só deseja e pede a todos a nova História do Futuro, com palavras não suas, mas de
S. Jerônimo: Legant prius et postea despiciant: «Leiam primeiro, e depois condenem» — assim dizia aquele grande mestre da Igreja, defendendo a sua versão dos sagrados Livros, então perseguida e impugnada, hoje adorada e de fé.
dela.
Segunda parte do titulo desta História; convidam-se os Portugueses à lição
No capítulo passado falamos com todo o Mundo; neste só com Portugal.
Naquele prometemos grandes futuros ao desejo; neste asseguramos breves desejos ao futuro. Nem todos os futuros são para desejar, porque há muitos futuros para temer. «Amanhã serás comigo», disse Samuel a Saul, o profeta ao rei, o morto ao vivo. Oh que temeroso futuro! Caiu Saul desmaiado, e fora melhor cair em si que aos pés do Profeta. Mas era já a véspera do dia da morte; e quem busca o desengano tarde, não se desengana. Outros reis houve, que por não temer os futuros, quiseram antes ignorá-los.
...Cessant oracula Delphis,
Sed siluit postquam reges timuere futura, Et Superos vetuere loqui...
Disse sem murmuração o satírico que taparam os reis a boca aos deuses, e não queriam consultar os oráculos, por não temer os futuros prósperos e adversos, os felizes e os infelizes. Todos fora felicidade antever, os felizes para a esperança e os infelizes para a cautela.
O maior serviço que pode fazer um vassalo ao rei, é revelar-lhe os futuros; e se não há entre nós os vivos quem faça estas revelações, busque-se entre os sepultados, e achar-se-á. Saul achou a Samuel morto e Baltasar a Daniel vivo, porque um matava os profetas, outro premiava as profecias. Declarou Daniel a Baltasar a escritura fatal da parede, anunciou-lhe intrepidamente que naquela mesma noite havia de perder a vida e o império. E que lhe importou a Daniel esta tão triste interpretação? No mesmo ponto - diz o texto- mandou Baltasar que o vestissem de púrpura e que lhe dessem o anel real, e que fosse reconhecido por
Tetrarca de todo o império dos Assírios, que era faze-lo um dos quatro supremos ministros ou governadores da monarquia.
Só isto fez Baltasar nos instantes que lhe restaram de vida; e premiado assim o profeta, cumpriu-se a profecia e foi morto o rei, digno só por esta ação (se não foram as suas culpas sacrilégios) de que Deus lhe perdoara a vida.
Se tanto vale o conhecimento de um futuro, ainda que tão infeliz; se tanto prêmio se dá a uma profecia mortal e que tira impérios, que seria se os prometera?
Não faltou a este merecimento Dario Hidaspes rei dos Persas e dos Medos. Sucedeu vitorioso este príncipe na coroa de Baltasar, e confirmou sempre a Daniel na mercê e lugar em que ele o tinha posto porque assim como profetizou que havia de perder o império o rei dos Assírios, ajuntou também que o havia de ganhar o dos Persas e Medos: Divisum est regnum tuum et datum est Medis et Persis.
Eu, Portugal, (com quem só falo agora) nem espero o teu agradecimento, nem temo a tua ingratidão. Porque, se me não contas com Daniel entre os vivos, eu me conto com Samuel entre os mortos; se nas letras que interpreto achara desgraças (bem poderá ser que as tenhas), eu te dissera a má fortuna sem receio, assim como te digo a boa sem lisonja. Mas é tal a tua estrela (benignidade de Deus contigo deverá ser), que tudo o que leio de ti são grandezas, tudo que descubro melhoras, tudo o que alcanço felicidades. Isto é o que deves esperar, e isto o que te espera; por isso em nome segundo e mais declarado chamo a esta mesma escritura Esperanças de Portugal, e este é o comento breve de toda a História do Futuro.
Mas vejo que o mesmo nome de Esperanças de Portugal lhe poderá com razão suspender o gosto, assustar o desejo e embaraçar os mesmos alvoroços em que o tenho metido com estas esperanças: Spes qae differtur, affligit animam, disse a Verdade divina e o sabe e sente bem a experiência e paciência humana: ainda que seja muito segura, muito firme e muito bem fundada a esperança, é um tormento desesperado o esperar.
Muito seguras eram, e tão seguras como a mesma palavra de Deus (que não pode mentir nem faltar)`, as promessas dos antigos Profetas; mas cansava- se tanto o desejo na paciência de esperar por elas, que vinham a ser fábula do vulgo em Jerusalém as esperanças das profecias. Assim conta esta queixa Isaías no capítulo XXVIII, que pelas ruas e praças da corte se andavam cantando por riso as suas esperanças, e que a volta ou estribilho da cantiga era:
...expecta, reexpecta, Expecta, reexpecta.
Modicum ibi, Modicum ibi.
Esperavam, reesperavam e desesperavam aqueles homens, porque em muitas cousas das que lhes prometiam as profecias, primeiro se acabava a vida do que chegasse a esperança. Deixaram os pais em testamento as esperanças aos filhos, os filhos aos netos e nem estes, sendo então as vidas mais compridas, chegavam a ver o cumprimento do que tão longamente tinham esperado. As esperanças da Terra de Promissão deixou-as Abraão a Isaac, Isaac a Jacob e
Jacob aos doze Patriarcas; mas todos eles morreram e foram sepultados no Egito. A quem há-de cobrir a terra do Egito, que lhe importam as esperanças da terra de Promissão? No cativeiro de Babilônia pregavam e prometiam os Profetas que Deus havia de levantar mão do castigo e restituir o povo à sua antiga liberdade; e se lhes perguntavam quando, respondiam e afirmavam constantemente que dali a setenta anos.
Boa esperança para um cativo, ainda que não fosse muito velho. De que me serve a esperança da liberdade, se primeiro se há-de acabar a vida? O mesmo podem argüir os que hoje vivem com estas esperanças, que eu lhas prometo. Grandes são essas esperanças de Portugal; mas quando há-de ver Portugal essas esperanças?
Ponto é este que depois se há-de tratar muito de propósito, e em que a nossa História há-de empregar todo o quinto livro. Por agora só digo que me não atrevera eu a prometer esperanças, se não foram esperanças breves. Deus na Lei Escrita, como notaram grandes autores, nunca prometeu o Céu expressamente, porque o que se não pode dar logo não se há-de prometer. Prometer o Céu para ir esperar por ele ao Limbo, são promessas em que por então se dá o contrário do que se promete. Tais são as esperanças dilatadas. Se nelas se promete a vida, são morte; se nelas se promete o gosto, são tormento; se nelas se promete o Paraíso, são Inferno.
O Limbo chamava-se Inferno; e porque? Porque era um lugar onde se esperava tantos anos pelo Paraíso. Não me tenha a minha Pátria por tão cruel, que lhe houvesse de prometer martírios com nome de esperanças. Para se avaliar a esperança, há-se de medir o futuro, e não é este o futuro da minha História.
São Paulo, aquele filósofo do terceiro Céu, desafiando todas as criaturas, e entre elas os tempos, dividiu os futuros em dois futuros: Neque instantia, neque futura. Um futuro que está longe e outro futuro que está perto; um futuro que há- de
vir e outro futuro que já vem; um futuro que muito tempo há-de ser futuro — Neque futura — e outro futuro que brevemente há-de ser presente: Neque instantia.
Este segundo futuro é o da minha História, e estas as breves e deleitosas esperanças que a Portugal ofereço. Esperanças que hão-de ver os que vivem, ainda que não vivam muitos anos, mas viverão muitos anos os que as virem. Lignum vitae, desiderium veniens, disse no mesmo lugar alegado a mesma Verdade divina.
Assim como há esperanças que tardam, há esperanças que vem. As esperanças que vem são o pomo da árvore da vida: Lignum vitae desiderium veniens. A virtude maravilhosa daquele pomo era reparar e acrescentar a vida e remoçar aos que o comiam. As esperanças que tardam, tiram a vida; as esperanças que vem, não só não tiram a vida, mas acrescentam os dias e os alentos dela: Spes quae differtur, affligit animam. Lignurn vitae, desiderium veniens.
Que vida haverá em Portugal tão cansada, que idade tão decrépita, que à vista do cumprimento destas esperanças, não torne atrás os anos para lograr
tanto bem? Vivei, vivei, Portugueses, vós os que mereceis viver neste venturoso século! Esperai no Autor de tão estranhas promessas, que quem vos deu as esperanças, vos mostrará o cumprimento delas.
Não é privilégio este de qualquer profecia, mas daquelas profecias de que se compõe esta História. Sim, porque são mais que profecias. Um profeta houve no Mundo mais que profeta, que foi o grande precursor de Cristo. E por que razão mereceu a singularidade deste nome S. João entre todos os profetas deste Mundo? Porque os outros profetas prometeram a Cristo futuro, mas não o viram, nem o mostraram presente; o Batista prometeu o futuro com a vez, e mostrou o presente com o dedo — Cecinit ad futurum, et adesse monstravit.
Se houve um profeta que foi mais que profeta, porque não haverá também algumas profecias que sejam mais que profecias? Assim espero eu que o sejam aquelas em que se fundam as minhas esperanças e que, se nos prometem as felicidades futuras, também as hão-de mostrar presentes. Agora as prometem com a voz, depois as mostrarão com o dedo.
Mas este grande assunto fique para seu lugar. Só digo que quando assim suceder, perderá esta nossa História gloriosamente o nome, e que deixará de ser História do Futuro, porque o será do presente.
Mas perguntar-me-á porventura alguma emulação estrangeira (que às naturais não respondo): se o império esperado, como se diz no mesmo título, é do Mundo, as esperanças porque não serão também do Mundo, senão só de Portugal? A razão (perdoe o mesmo Mundo) é esta: porque a melhor parte dos venturosos futuros que se esperam, e a mais gloriosa deles, será não só própria da Nação portuguesa, senão única e singularmente sua. Portugal será o assunto, Portugal o centro, Portugal o teatro, Portugal o princípio e fim destas maravilhas; e os instrumentos prodigiosos delas os Portugueses.
Vê agora, ó Pátria minha, quão agradável te deve ser. e com quanto gosto deves aceitar a oferta que te faço desta nova História, e com que alvoroço e alegria pede a razão e amor natural que leias e consideres nela os seus e os teus futuros. O Grego lê com maior gosto as histórias de Grécia, o Romano as de Roma e o Bárbaro as da sua nação, porque lêem feitos seus e de seus antepassados . E Portugal que com novidade inaudita lerá nesta História os seus e os dos seus vindouros, com quanto maior gosto e contentamento, com quanto maior aplauso e alvoroço será razão que o faca?
Portentosas foram antigamente aquelas façanhas, ó Portugueses, com que descobristes novos mares e novas terras, e destes a conhecer o Mundo ao mesmo
Mundo. Assim como líeis então aquelas vossas histórias, lede agora esta minha, que também é toda vossa. Vós descobristes ao Mundo o que ele era, e eu vos descubro a vós o que haveis de ser. Em nada é segundo e menor este meu descobrimento, senão maior em tudo. Maior cabo, maior esperança, maior império.
Naqueles ditosos tempos (mas menos ditosos que os futuros) nenhuma cousa se lia no Mundo senão as navegações e conquistas de Portugueses. Esta história era o silêncio de todas as historias. Os inimigos liam nela suas ruínas, os êmulos suas invejas e só Portugal suas glórias. Tal é a História, Portugueses, que
vos presento, e por isso na língua vossa. Se há-de restituir o Mundo à sua primitiva inteireza e natural formosura, não se poderá consertar um corpo tão grande, sem dor nem sentimento dos membros, que estão fora de seu lugar. Alguns gemidos se hão-de ouvir entre vossos aplausos, mas também estes fazem harmonia. Se são dos inimigos, para os inimigos será a dor, para os êmulos a inveja, para os amigos e companheiros o gosto e para vós então a glória, e, entretanto, as esperanças.
Terceira parte do titulo e divisão de toda a História.
O que encerra a terceira parte do título desta História só se pode declarar inteiramente com o discurso de toda ela, porque toda se emprega em provar a esperança dum novo império, ao qual, pelas razões que se verão a seu tempo, chamamos quinto. Entretanto, para que a matéria de uma vez se compreenda e saiba o leitor em suma o que lhe prometemos, porei brevemente aqui sua divisão. Divide-se a História do Futuro em sete partes ou livros: no primeiro se mostra que há-de haver no Mundo um novo império; no segundo, que império há- de ser; no terceiro, suas grandezas e felicidades; no quarto, os meios por que se há-de introduzir; no quinto, em que terra; no sexto, em que tempo; no sétimo, em que pesca. Estas sete cousas são as que há-de examinar, resolver e provar a
nova História que escrevemos do Quinto Império do Mundo.
Mas porque esta palavra Mundo, nos ambiciosos títulos dos impérios e imperadores, costuma ter maior estrondo na voz que verdade na significação, será bem que digamos neste lugar o que o título da nossa História entende por Mundo.
Os Faraós do Egito, e também os Ptolemeus que lhes sucederam, de tal maneira mediam a estreiteza de suas terras pela arrogância e inchação de seus vastos pensamentos, que, dominando somente aquela parte não grande da extrema África, que jaz entre os desertos de Numídia e os do Mar Vermelho, não duvidavam intitular-se Josés do Mundo. Essa foi a desigualdade do nome que puseram os Egípcios ao seu restaurador José: Vocavit eum lingua aegyptiaca Salvatorem Mundi. Não lhe chamaram Salvador do Egito, senão do Mundo, como se não houvera mais mundo que o Egito. Imitavam a soberba de seu soberbo Nilo, que, quando sai ao mar, se espraia em sete bocas, como se foram sete rios, sendo um só rio; assim era aquele império, e os demais chamados do Mundo, maiores sempre nas vozes que no corpo e grandeza.
Do império dos Assírios temos nas divinas letras uma provisão lançada no III capítulo do Profeta Daniel e mandada expedir pelo grande Nabucodonosor, cujo exórdio é este: Nabuchodonosor, rex omnibus populis, gentibus et linguis, qui habitant in universa terra: «Nabucodonosor, rei. a todos os povos, gentes e línguas, que habitam em todo o Mundo. E o mesmo Daniel (que é mais) falando a este rei e acomodando-se aos estilos da sua corte e aos títulos magníficos de sua grandeza,
lhe diz assim no mesmo capítulo: Tu es rex qui magnificatus es et invaluisti, et magnitudo tua [...] pervenit usque ad Coelum, et potestas tua usque ad terminos universae terrae. Contudo, se lançarmos os compassos às terras que obedeciam a Nabucodonosor, acharemos que da Ásia então conhecida tinha uma boa parte, da África pouco, da Europa menos e do resto do Mundo nada. Mas bastavam estes três retalhos da terra para a soberba de Nabucodonosor revestir os títulos de seu império com o nome estrondoso de todo o Mundo. Tão grande era a significação dos nomes, e tanto menos 0 que significavam!
Do império de Assuero (que era o dos Persas) diz o Texto Sagrado no primeiro capítulo da história de Ester, que se estendia da Índia até a Etiópia, obedecendo àquela coroa 127 províncias. Esta era a demarcação das terras e estes os limites do império, mas os títulos não tinham limite. Assim nos consta por um decreto de Dario, que se refere no VI capítulo de Daniel, por estas pomposas palavras, semelhantes em tudo às de Nabuco: Tunc Darius rex scripsit omnibus populis et gentibus et linguis, qui habitant in universa terra: Pax vobis multiplicetur.
E o mesmo Assuero por outro decreto, no cap. XIII de Ester, não duvidou firmar por sua própria mão, que tinha sujeito ao seu domínio o orbe universo: Cum universum orbem meae ditioni subjugassem. De maneira que os reis persas, por serem senhores de 127 províncias, passaram provisões e decretos a todo o Mundo; mas quem desenrolasse o mapa do Mundo e pusesse sobre ele os pergaminhos destas provisões, veria facilmente que o Mundo, sem demasiado encarecimento, é cento e vinte e sete vezes maior que o império persiano: tão pouco se proporcionava a geografia dos títulos com a medida dos impérios!
Que direi do império dos Romanos? Os termos que lhe sinalam seus escritores são as raias do Mundo:
Orbem jam totum victor Romanus habebat Qua mare, qua terra, qua sidus currit utrumque
disse Petrónio; e Cícero, que professava mais verdade que os poetas: Nulla gens est. quae aut ita subacta sit ut vi non extet, aut ita domita ut quiescat, aut ita pacata ut victoria nostra imperioque laetetur. Tal era a opinião que Roma tinha de sua grandeza e tal o estilo que guardava em seus editos: ...exiit edictum à Caesare Augusto ut describeretur universus orbis.
Mandou Augusto César matricular e: alistar seu império, e dizia o edito: Aliste-se o Mundo. Mas se examinarmos este mundo romano até onde se estendia, acharemos que pelo oriente se fechava com o rio Tigres, pelo ocidente com o mar de Cádis, pelo meio-dia com o Nilo e pelo setentrião com o Danúbio e Reno. Estes limites lhe prescreveu Claudiano, ainda que lhe deu por margens os Orientes:
Subdit Oceanum sceptris, et margine coeli Clausit opes; quantum distant a Tigride Gades, Inter se Tanais quantum Nilusque relinquunt.
Deixo o Mogor, o China, o Tártaro e outros domínios bárbaros do nosso tempo, que com a mesma majestade de títulos se chamam imperadores do Mundo, seguindo a antiquíssima arrogância da Ásia, em que o Mundo andou sempre atado aos títulos da monarquia.
O Mundo do nosso prometido império não é Mundo neste sentido: não prometo mundos, nem impérios titulares, nomes tão alheios da modéstia como da verdade. Bem sei que o império de Alemanha (envelhecidas relíquias, e quase acabadas, do Romano) em muitos textos de um e outro direito se chama império
do Mundo; mas também se sabe que os textos podem dar títulos, mas não impérios. No livro sétimo examinaremos os fundamentos deste direito; entretanto, ainda que
liberalmente lho concedamos, é certo que os impérios e os reinos não os dá nem os defende a espada da justiça, senão a justiça da espada.
A Abraão prometeu Deus as terras da Palestina mas conquistou-as a espada de Josué e defendeu-as a de seus sucessores. Estes são os instrumentos humanos de que se serve (ainda quando obra divinamente) a providencia daquele supremo Senhor que o é do Mundo e dos exércitos. Os que querem o ruído e encher de algum modo o vazio destes grandes títulos, dizem que se entende por hipérbole ou exageração, e por aquela figura que os retóricos chamam sinédoque, em que se toma a parte pelo todo. O título desta História não fala por hipérboles nem sinédoques, não chama a um pigmeu gigante nem a um braço homem. O Mundo de que falo é o Mundo, aquele Mundo, e naquele sentido em que disse S. João: ...Mundus per ipsum factus est, et Mundus eum non cognovit. O Mundo que Deus criou, o Mundo que o não conheceu, e o Mundo que o há-de conhecer. Quando o não conheceu, negou-lhe o domínio; quando o conhecer, dar-lhe-á a posse . universum terraram orbem — diz Ortélio — veteres [...] in tres partes divisere: Africam, scilicet, Europam et Asiam, sed in inventa America, eam pro quarta parte nostra aetas adjecit; quintamque expectat sub meridionali cardine jacentem: O Mundo que conheceram os Antigos se dividiu em tres partes: África, Europa, Ásia; depois que se descobriu a América, acrescentou-lhe a nossa idade esta quarta parte; espera-se agora a quinta, que é aquela terra incógnita, mas já reconhecida, que chamamos Austral.»
Este foi o Mundo passado, e este é o Mundo presente, e este será o Mundo futuro; e destes três mundos unidos se formará (que assim o formou Deus) um Mundo inteiro. Este é o sujeito da nossa História, e este o império que prometemos do Mundo. Tudo o que abraça o mar, tudo o que alumia o Sol, tudo o que cobre e rodeia o Sol, será sujeito a este Quinto Império; não por nome ou título fantástico, como todos os que até agora se chamaram impérios do Mundo, senão por domínio e sujeição verdadeira. Todos os reinos se unirão em um centro, todas as cabeças obedecerão a uma suprema cabeça, todas as coroas se rematarão em uma só diadema, e esta será a peanha da cruz de Cristo.
Resolveu Augusto com o senado pôr limites à grandeza do Império Romano. Duvida Tácito se foi filha esta resolução do receio ou da inveja: Incertum metu, an per invidiam. Temeu César (se foi receio) que um corpo tão enormemente grande não se pudesse animar com um só espírito, não se pudesse governar com uma só cabeça, não se pudesse defender com um só braço; ou não quis (se foi inveja) que viesse depois outro imperador mais venturoso, que trespassasse as balizas do que ele até então conquistara e fosse ou se chamasse maior que Augusto. Tal foi, dizem, o pensamento de Alexandre, o qual, vizinho à morte, repartiu em diferentes sucessores o seu império, para que nenhum lhe pudesse herdar o nome de Magno. Não é nem poderá ser assim no império do Mundo que prometemos; a paz lhe tirará o receio, a união lhe desfará a inveja, e Deus (que é fortuna sem inconstância) lhe conservará a grandeza.
Aqui acaba o título desta História, e mais claramente do que o dissemos agora o provaremos depois. Entretanto, se aos doutos ocorrem instancias e aos escrupulosos dúvidas, damos por solução de todas a mão omnipotente: Ut videant, sciant et recogitent, et intelligant pariter quia manus Domini fecit hoc...
Utilidades da Historia do Futuro
Se o fim desta escritura fora só a satisfação da curiosidade humana, e o gosto ou lisonja daquele apetite com que a impaciência do nosso desejo se adianta em querer saber as cousas futuras; e se as esperanças que temos prometido foram só flores sem outro fruto mais que o alvoroço e alegria com que as felicidades grandes e próprias se costumam esperar, certamente eu suspendera logo a pena e a lançara da mão, tendo este meu trabalho por inútil, impertinente e ocioso, e por indigno não só de o comunicar ao Mundo, mas de gastar nele o tempo e o cuidado.
Mas se a história das cousas passadas (a que os sábios chamaram mestra da vida) tem esta e tantas. outras utilidades necessárias ao governo e bem comum do gênero humano e ao particular de todos os homens, e se como tal empregaram nela sua indústria tantos sujeitos em ciência, engenho e juízo eminentes, como foram os que em todos os tempos imortalizaram a memória deles com seus escritos; porque não será igualmente útil e proveitosa, e ainda com vantagem, esta nossa História do Futuro, quanto é mais poderosa e eficaz para mover os ânimos dos. homens a esperança das cousas próprias, que a memória das alheias?
Se em todos os Livros Sagrados contarmos os escritores de cousas passadas (como foram, na Lei da Graça, os quatro Evangelistas, e na Escrita, Moisés, Josué, Samuel, Esdras e alguns outros, cujos nomes ;e não sabem com tão averiguada certeza), acharemos que são em muito maior número os que escreveram das futuras: diferença que de nenhum modo fizera Deus, que é o verdadeiro Autor de todas as .Escrituras (sendo todas elas como diz S. Paulo escritas para nossa doutrina, se não fora igual e ainda maior a utilidade que podemos e devemos tirar do conhecimento das cousas futuras, que da noticiaria das passadas. E verdadeiramente que se os bens da ciência se colhem e conhecem melhor pelos males da ignorância, achará facilmente quem discorrer pelos sucessos do Mundo, desde seu princípio até hoje, que foram muito menos os danos em que caíam os homens por lhes faltar a notícia do passado, que aqueles que cegamente se precipitaram pela ignorância do futuro.
Em conseqüência desta verdade e em consideração das cousas que tenho disposto escrever, digo, leitor cristão, que todos aqueles fins que sabemos teve a Providência Divina em diversos tempos, lugares e nações para lhes revelar antecedentemente o sucesso das cousas que estavam por vir, concorrem com particular influxo nesta nossa História e se acham juntos nela. Esta é não só a principal razão, nas a única e total, por que nos sujeitamos ao trabalho de tão molesto gênero de escritura, esperando que será grato e aceito a Deus, a quem só pretende nos servir; e entendendo que foram vontade, inspiração e ainda força
suave da mesma Providência os impulsos que a isto (não sem alguma violência) nos levaram, para que estes secretos de seu oculto juízo e conselho se descobrissem e publicassem ao Mundo e em todo ele produzissem proporcionadamente os efeitos de mudança, melhoria e reformação a que são encaminhados e dirigidos. A mesma Majestade divina, humildemente prostrados diante de seu infinito acatamento, pedimos com todo o afeto de coração, agora que entramos na maior importância desta matéria, se sirva de nos comunicar aquela luz, graça e espírito que para negócio tão árduo nos é necessário, conhecendo e confessando que sem assistência deste soberano auxílio, nem nós saberemos explicar a outros o pouco que por mercê do Céu temos alcançado e conhecido, nem menos poderemos descobrir e alcançar ao diante o muito que nos resta por conhecer.
Primeira utilidade.
O primeiro motivo e mui principal por que Deus costuma revelar as cousas futuras (ou sejam benefícios ou castigos) muito tempo antes de sucederem, é para que conheçam clara e firmemente os homens, que todas vêm dispensadas por sua mão. Arma-se assim a sabedoria eterna contra a natureza humana, sempre soberba, rebelde e ingrata, ou porque se não levante a maiores com os benefícios divinos, e se beije as mãos a si mesma, como dizia Job, ou porque não atribua a cousas naturais (e muito menos ao caso) os efeitos que vêm sentenciados como castigo por sua justiça, ou ordenados para mais altos e ocultos fins por sua providência.
Foram mostradas a Faraó em sonhos .as sete espigas gradas e as sete falidas, as sete vacas fracas e as sete robustas, e logo ordenou a Providência divina que estivesse em Egito um José (posto que vendido e desterrado), que lhe declarasse o mistério dos sete anos da fartura e sete de fome, para que conhecesse o bárbaro que Deus, e não o seu adorado Nilo, era o autor da abundância e da esterilidade, e que a ele havia de agradecer no benefício dos sete anos o remédio dos catorze. Como na terra do Egito não chove jamais e se regam e fertilizam os campos com as inundações do rio Nilo, disse discretamente Plínio que só os Egípcios não olhavam para o céu, porque não esperavam de lá o sustento, como as outras nações.
Oh quantos cristãos há egípcios, que nem esperando, nem temendo, levantam os olhos ao Céu, e em lugar de reverenciarem em ,todos os sucessos a primeira causa, só adoram as segundas! Por isso mostra Deus a Faraó, tantos anos antes, quais hão-de ser os da fome e quais os da fartura; para que conheça a ignorante sabedoria do Egito que os meios da conservação ou ruína dos reinos, a mão onipotente de Deus é a que os distribui, quando são, pois só ele os pode determinar antes que sejam.
Quis a mesma Providência, como acima dizíamos tirar o império a Baltasar e dá-lo a Dario; mas apareceu primeiro a sentença escrita no paço de Babilônia, e houve logo um Daniel (também cativo e desterrado), que interpretasse ao rei os mistérios dela, para que Baltasar, que perdia o reino, conhecesse que o perdia, porque Deus lho tirava; e para que Dario, que o havia de receber, entendesse que o recebia, porque Deus lho dava. Deus é o que dá e tira os reinos e os impérios, quando e a quem é servido. E não bastam, se Deus dispõe outra cousa, nem as
armas de Dario para os adquirir, nem o direito e herança de Baltasar para os conservar; por isso quer a mesma Providência Divina que as sentenças estejam escritas antes da execução, e que haja quem as interprete antes do sucesso.
Os futuros portentosos do Mundo e Portugal, de que há-de tratar a nossa História, muitos anos há que estão sonhados como os de Faraó e escritos como os de Baltasar; mas não houve até agora nem José que interpretasse os sonhos, nem Daniel que construísse as escrituras; e isto é o que eu começo a fazer (com a graça daquele Senhor que sempre se serve de instrumentos pequenos em cousas grandes), para que conheça o Mundo e Portugal, com os olhos sempre no Céu e em Deus, que tudo são efeitos de seu poder e conselhos da sua providência; e para que não haja ignorância tão cega nem ambição tão presumida, que tire a Deus o que é de Deus, por dar a César o que não é de César, atribuindo à fortuna ou indústria humana o que se deve só à disposição divina.
Estilo foi este que sempre Deus usou com Portugal, receoso porventura de que uma nação tão amiga da honra e da glória lhe quisesse roubar a sua. Quem considerar o Reino de Portugal no tempo passado, no presente e no futuro, no
passado o verá vencido, no presente ressuscitado e no futuro glorioso; e em todas estas três diferenças de tempos e estilos lhe revelou e mandou primeiro interpretar o. favores e as mercês tão notáveis com que o determinava enobrecer: na primeira, fazendo-o, na segunda restituindo-o, na terceira, sublimando-o.
Antes do nascimento de Portugal, apareceu o mesmo Cristo a El-Rei (que ainda o não era) D. Afonso Henriques, e lhe revelou como era servido de o fazei rei, e a Portugal reino; a vitória que lhe havia de dar em batalha tão duvidosa e as armas de tanta glória com que o queria singularizar entre todos os reinos do Mundo. E o embaixador e intérprete deste e de outros futuros, que depois se viram cumpridos, foi aquele velho, desconhecido e retirado do Mundo o ermitão do campo de Ourique; para que conhecesse e não pudesse negar Portugal que devia a Deus a vitória e a coroa, e que era todo seu desde seu nascimento. Antes da sua ressurreição, que todos vimos também, foi revelado o sucesso dela com todas suas circunstancias, não havendo quem ignorasse ou quem não tivesse lido que no ano de quarenta se havia de levantar em Portugal um rei novo e que se havia de chamar João. E o intérprete deste futuro que parecia tão impossível, e de tantos outros que logo se cumpriram e vão cumprindo, foi a nossa experiência, para que conhecesse outra vez Portugal que a Deus e não a outrem devia a restituição da coroa que havia sessenta anos lhe caíra da cabeça ou lhe fora arrancada dela.
Antes das glórias de Portugal, que é o tempo futuro, e muitos centos e ainda milhares de anos antes (como depois mostraremos), também está prometido este terceiro e mais feliz estado do nosso Reino, e prometidos juntamente os meios e instrumentos prodigiosos por onde há-de subir e ser levantado ao cume mais alto e sublime de toda a felicidade humana; e o intérprete deste último e glorioso estado de Portugal já tenho dito quem é, e quão indigno de o ser. e por isso mui proporcionado (segundo o estilo de Deus) para tão grande e dificultosa empresa; para que até por esta circunstancia conheçam os Portugueses que a mesma mão onipotente que há vinte e quatro anos conserva e
defende tão constante e vitoriosamente o Reino de Portugal, é a que há-de levantar e sublimar ao estado felicíssimo e glorioso que lhe está prometido.
Considerem agora os Portugueses, e leiam tudo o que daqui por diante formos escrevendo com este pressuposto e importantíssima advertência: que, se alguma cousa lhes poderia retardar o cumprimento destas promessas, seria só o esquecimento ou desconhecimento do soberano Autor delas, quando por nossa desgraça fôssemos tão injuriosamente ingratos a Deus, que ou referíssemos os benefícios passados, ou esperássemos os futuros de outra mão que a sua.
Prometeu Deus de livrar os filhos de Israel do cativeiro do Egito, como tinha jurado aos seus maiores, e de os levar e meter de posse da terra da Promissão; e posto que todas viram o cumprimento da primeira promessa, conseguindo milagrosamente a liberdade, e sacudiram sem sangue nem golpe de espada a sujeição de tão poderoso domínio, sendo contudo mais de seiscentos mil homens os que triunfaram de Faraó e passaram da outra parte do mar Vermelho, de todos eles não entraram na Terra da Promissão nem chegaram a lograr a felicidade e descanso da segunda promessa mais que Josué e Calef, dois daqueles aventureiros que, escolhidos pelos Doze Tribos, foram diante a explorar a terra. Raro exemplo de severidade na misericórdia de Deus , mas bem merecido castigo; porque, se buscarmos no Texto Sagrado as causas deste desvio e dilação (a qual durou quarenta anos inteiros, sendo a distancia do caminho breve, e que se podia vencer em poucos dias) acharemos que foram ,três. Agora nos servem as duas, depois diremos a terceira.
A primeira causa foi atribuírem a liberdade do cativeiro a Moisés; assim o disseram no cap. XXXII. Moysi enim huic viro, qui nos eduxit de terra Aegypti, ignoramus quid acciderit. A segunda, e ainda mais ignorante (sobre ímpia e blasfema), foi atribuírem a mesma liberdade ao ídolo que de seu ouro tinham fundido no deserto. Assim o disseram também no mesmo capítulo e o apregoaram impiamente a altas vozes: Hi sunt dii tui, Israel, qui te eduxerunt de terra AEgypti.
Basta, povo descortês, ingrato e blasfemo! Que Moisés e o vosso ídolo foram os que vos livraram do cativeiro do Egito?! Por certo que o não disse assim Deus ao mesmo Moisés, quando lhe deu o ofício e a vara, e o fez com ,tanta repugnância sua instrumento de seus poderes: Vidi afflictionem populi mei in AEgypto et clamorem ejus audivi; et sciens dolorem ejus, descendi ut liberem eum de manibus AEgyptorum, et deducam de terra illa in terram bonam et spatiosam, in terram quae fluit lacte et melle: «Vi — diz Deus — a aflição do meu povo, e ouvi os seus clamores; e porque sei com quão justa razão se queixam, desci em pessoa a livrá-lo das mãos dos Egípcios e tirá-lo daquela terra para outra, que lhe hei-de dar, boa, espaçosa, abundante e cheia de todos os regalos e delícias». De maneira que quem tirou os filhos de Israel do Egito foi Deus, e quem fez os portentos e maravilhas foi Deus, e quem abriu o Mar Vermelho e afogou nele Faraó e seus exércitos foi Deus; e os que atribuem as obras de Deus e os benefícios (de que só a Ele se devem as graças) a Moisés e ao ídolo não merecem ter vida nem olhos para chegar a ver a Terra de Promissão; sendo muito justo e muito justificado castigo que morram e acabem todos antes de
chegar o prazo das felicidades, e que, pois tão ingrata e impiamente interpretaram o benefício da primeira promessa, sejam privados de gozar a segunda.
Eu não nego que em bom sentido se podia chamar Moisés libertador do cativeiro, como também Deus pelo honrar lhe dava esse nome; mas nos homens que deviam dar a Deus toda a glória (pois toda era sua), referirem-se a Moisés, era descortesia; atribuírem-na ao ídolo, era blasfêmia, e não a darem a Deus toda, era ingratidão suma.
Já Deus, Portugueses, nos livrou do cativeiro, já por mercê de Deus triunfamos de Faraó e do poder de seus exércitos; já os vimos, não uma, mas muitas vezes, afogados no Mar Vermelho de seu próprio sangue. Imos caminhando pelo deserto para a Terra da Promissão, e pode ser que estejamos já muito perto dela, e do último cumprimento das prometidas felicidades. Se há algum tão invejoso dos bens da Pátria e tão inimigo de si mesmo, que queira retardar o curso de tão próspera e feliz jornada e acabar infelizmente, ainda antes de ver o fim desejado dela, negue a Deus o que é de Deus e atribua à liberdade as vitórias e o cumprimento das primeiras promessas que temos visto, ou a Moisés ou ao ídolo. Quem refere a glória dos bons sucessos ao seu valor, à sua ciência militar, ao seu braço, ao seu talento, dá a glória de Deus ao ídolo; por isso se vos escrevem aqui essa mesma liberdade, essas mesmas vitórias e esses mesmos sucessos, assim os que já se viram, como os que restam para se ver, tantos anos antes revelados por Deus. Para que conheça por nossa confissão todo o Mundo que são misericórdias suas e não obras do nosso poder; e para que nós, como efeitos da providência, da bondade e omnipotência divina, a Deus só as refiramos todas, e a Deus só louvemos e demos as graças.
Os inimigos que mais temo a Portugal são soberba e ingratidão, vícios tão naturais da próspera fortuna, que, como filhos da víbora, juntamente nascem dela e a corrompem. A humildade e agradecimento, a desconfiança de nós, a confiança em Deus e o zelo e desejo puríssimo de sua glória, dando-lha em tudo e por tudo,
sempre são os meios seguros que nos hão-de sustentar, levar e meter de posse daquelas segundas promessas. E este conhecimento tão grato a Deus, que aprendemos nas noticias de seus futuros, é o primeiro fruto e utilidade que da lição desta nossa História se pode tirar, tão importantemente para a vida como para a vista.
BREVE ADVERTÊNCIA AOS INCRÉDULOS
Mas antes que passemos às outras utilidades, que ficarão para os capítulos seguintes, justo será que fechemos este com a terceira causa do castigo que ponderávamos, a qual refere o Texto Sagrado no cap. XIV dos Números, e pode ser de grande exemplo para outra casta de gente, que são os que a Escritura chama filhos da desconfiança.
Chegados os doze exploradores da Terra da Promissão, concordaram todos na largueza, bondade e fertilidade da terra; mas exceto Josué e Calef, que - facilitaram a conquista e animavam o povo a ela, os outros, conformemente, instavam que era impossível, assim pela fortaleza e sitio das cidades, como pela valentia, forças e corpulências dos homens, que, comparados com os Hebreus (diziam eles) pareciam gigantes. Enfim, prevaleceu o número contra a razão)
(como as mais vezes sucede). Deliberou o povo eleger capitão e voltar-se com ele ao cativeiro do Egito, não bastando a experiência de tantas vitórias passadas e de tantos sucessos e prodígios inauditos, e sobre tudo as promessas divinas tão repetidamente inculcadas, de que Deus os havia de meter de posse daquela terra, para crerem e confiarem que assim havia de ser.
Esta tão covarde incredulidade foi a última ou a última sem-razão com que acabou de se apurar a paciência divina. E resoluto Deus a não sofrer mais tal gente, nem os perdoar ou dissimular como até ali tinha feito, resolveu que fosse executada neles a sentença de sua própria incredulidade; e pois criam que Deus os não havia de meter de posse da Terra da Promissão, que nenhum deles entrasse nela nem a visse, e que todos morressem primeiro e fossem sepultados naquele deserto. Assim o disse e assim se executou.
As palavras da queixa de Deus e da sentença, foram estas: Usque quo detrahet mibi populus iste? Quosque non credent mihi in omnibus signis, qae feci coram eis? [...] Vivo ego, ait Dominus, sicut locuti estis, audiente me, sic faciam vobis. In solitudine hac jacebunt cadavera vestra; [...] non intrabitis terram, super quam levavi manum meam, ut habitare vos facerem...
Leiam e pesem bem estas palavras de Deus os incrédulos e desanimados (vícios ambos, não sei se de pouco, se de mau coração) e vejam o perigo em que os pode meter ou tem metido a sua incredulidade:
Sicut locuti estis, sic faciam vobis. Os que pela experiência do que têm visto crêem o que está prometido, vê-lo-ão, porque são dignos de o verem; os que não crêem, ou não querem crer, a sua mesma incredulidade será a sua sentenc: já que o não creram, não o verão. Diz Santo Agostinho (cujas excelentes palavras adiante citaremos) que, depois de cumprida uma parte das promessas, não crer que se hão-de cumprir as outras, é não só pertinácia de incredulidade racional, senão crime de ingratidão grande contra o divino Autor dos mesmos benefícios; e a estes incrédulos e ingratos castiga justissimamente sua Providência, com que não cheguem a ver nem gozar o que não querem crer de sua bondade:
Quo usque non credent mihi in omnibus signis, quae feci coram eis?
Antes da experiência das primeiras maravilhas, alguma desculpa parece que podia ter a incredulidade na fraqueza do receio e desconfiança humana; mas depois de cumpridas e vistas com os olhos tantas cousas, tão grandes, tão maravilhosas e
tão raras, não crer ainda as que estão por vir, é rebeldia de ingratidão e dureza da incredulidade, merecedoras ambas de que Deus as castigue com se conformar com elas: Sicut locuti estis, sic faciam vobis.
Quem quiser saber (segundo o estilo ordinário da justiça e providência divina) se há-de chegar a ver as felicidades que debaixo de sua palavra aqui lhe prometemos, examine o seu coração e consulte a sua fé; do nosso próprio coração nos conta Deus a sentença e de nossas próprias palavras a forma: Ex ore tuo te judico. Aos que crêem, como ao Centurião, diz Cristo: Sicut credidisti, fiat tibi. E aos que não creem como os Israelitas do deserto, diz Deus: Sicut locuti estis. Quem crê que se hão-de cumprir aquelas ,tão felizes promessas, para ele será o vê-las e gozá-las: Sicut creditisti, fiat tibi. E quem não crê que se hão-de cumprir, será também para ele não gozá-las, nem vê-las. É lei da liberalidade de
Deus pagar a fé com a vista, por isso havemos de ver no Céu os mistérios que vemos na Terra. E este estilo que Deus costuma guardar na glória da outra vida, guarda também ordinariamente nas felicidades desta, quando as tem prometido: os que as crêem, terão vida para as verem; os que as não crerem, morrerão, para que as não vejam. Assim o sentenciou o mesmo Deus outra vez em semelhante caso por boca do profeta Habacuc: Ecce qui incredulus est, non erit recta anima ejus in semetipso, justus autem in fide sua vivet. <O incrédulo - diz Deus - nem terá a vida segura; e ao que crê, a sua mesma fé lhe conservará a vida > Assim sucedeu, porque na guerra que Nabucodonosor fez a Jerusalém, os que creram aos profetas com el-rei Iconias viveram; e os que não quiseram crer, com el-rei Sedecias pereceram. Quem não crê, desmerece a vista; e para que não chegue a ver, tira-lhe Deus a vida. Olhem por si os incrédulos, e se não crêem que havemos de ver, creiam que não hão-de viver: Si non credideritis, non permanebitis — diz o profeta Isaías.
Segunda utilidade.
A segunda utilidade desta História, e mais necessária aos tempos próximos e presentes, é a paciência, constância e consolação nos trabalhos, perigos e calamidades com que há-de ser allito e purificado o Mundo, antes que chegue a esperada felicidade.
Quando o lavrador quer plantar de novo em mata brava, mete primeiro o machado, corta, derriba, queima, arranca, alimpa, cava, e depois planta e semeia. Quando o arquiteto quer fabricar de novo sobre edifício velho e arruinado, também começa derribando, desfazendo, arrasando e arrancando até os fundamentos, e depois sobre o novo alicerce levanta nova traça e novo edifício. Assim o faz e fez sempre o supremo Criador e Artífice do Mundo, quando quis plantar e edificar de novo. Assim o disse e mandou notificar a todo o Mundo pelo profeta Jeremias: Ecce constitui te hodie super gentes et super regna, ut evellas, et destruas, et disperdas, et dissites, et aedifices, et plantes.
Ó gentes, ó reis, ó reinos! Quanto arrancar, quanto destruir, quanto perder, quanto dissipar se verá em vossas terras, campos e cidades, antes que Deus vos replante e reedifique, e se veja restaurado o Universo! Maravilha é que há muitos anos está prometida para esta última idade do Mundo por aquele supremo Monarca, que tem por assento o trono de todo ele: Et dixit qui sedebut in throno: Ecce nova
facio omnia. E porque ninguém o duvidasse como cousa tão nova e desusada, acrescenta logo o Evangelista Profeta: Haec verba fidelissima sunt et vera.
Se deste trabalho e castigo pode também caber alguma parte a Portugal, e se é ele um dos reinos da Cristandade que merece ser mui renovado e reformado, o mesmo Portugal o examine, e ele mesmo, se conhece, o julgue, lembrando-lhe que está escrito que o juízo e exemplo de Deus há-de começar por sua casa: Judicium incipiet a domo Dei. Mas, ou sejam para Portugal, ou para o resto do Mundo, ou para todos (como é mais certo) nenhuma cousa poderão ter
os homens de maior consolação, alívio, nem remédio para o sofrimento e constante firmeza de tão fortes calamidades, do que a lição e condição desta História do Futuro, não pelo que ela tem de nossa, mas pelas escrituras originais de que foi tirada. Este é o fim, diz S. Paulo, e o fruto muito principal .para que elas se escreveram: Quae cumque scripta sunt, ad nostram doctrinam scripta sunt, ut per patientiam et consolationem Scrip turarum spem habeamus.
A lição das Escrituras, do conhecimento e fé das cousas futuras, é a que mais que tudo nos pode consolar nos trabalhos, porque a paciência tem a sua consolação na esperança, a esperança tem o seu fundamento na fé e a fé nas Escrituras.
Que maior trabalho ou perigo pode sobrevir a uma república, que ver-se cercada e combatida por todas as partes de poderosíssimos inimigos, só e desamparada, e sem amigo nem aliado que a socorra? Neste estado se viram muitas vezes no tempo de seu governo os Macabeus, de que Deus . sempre os livrou com maravilhosas vitórias e assistências do Céu, pelas quais lhes não foi necessário valerem-se da confederação que naquele tempo tinham com os Romanos e Esparcíatas; e dando conta disso aos mesmos Esparcíatas, Jónatas, que então governava o povo, diz assim em uma epístola: Nos. cum nullo horum indigeremus, habentes solatio sanctos libros qui sunt in manibus nostris, maluimus mittere ad vos renovare fraternitatem et amicitiam: «Mandamos renovar por este nosso embaixador (diz Jónatas) a antiga amizade e confederação» que convosco fizeram nossos maiores, não porque tenhamos necessidade dela e dos vossos socorros, posto que não nos faltam inimigos, guerras, opressões e trabalhos, mas temos sempre em nossas mãos os Livros Santos, em que lemos as promessas divinas, e com eles e com elas nos consolamos e animamos a resistir, pelejar e vencer, como temos vencido e vencemos a todos nossos inimigos.
No cap. VIII se verá que sem atrevimento ou demasiada confiança podemos chamar a esta nossa História do Futuro livro santo, se houver (como há- de haver primeiro) trabalhos, perigos, opressões, tribulações, assolações, e todo o gênero de calamidades, misérias e açoutes, com que Deus costuma castigar, emendar e domar a rebeldia dos corações humanos.
Para esta ocasião, e tão apertada sai a luz e se oferece ao Mundo este livro santo, no qual acharão os aflitos alívio, os tristes consolação, os atribulados esperança, paciência, constância e fortaleza, tudo por meio da lição e fé das divinas promessas e consolação dos felicíssimos fins a que todos estes trabalhos e tribulações pela providência do Altíssimo são ordenadas.
É cousa muito digna de notar, que nunca no povo de Israel concorreram tantos Profetas juntos como antes do cativeiro de Babilônia e no mesmo cativeiro. Antes do cativeiro profetizaram por sua ordem Oseas, Isaías, Joel e Amos; no cativeiro profetizou Miqueas, Habacuç Jeremias, Ezequiel, Daniel e Solonias. De maneira que, sendo só doze os Profetas canônicos, os dez deles tiveram por assunto e matéria muito principal de todas suas profecias o cativeiro de Babilônia. Os quatro primeiros, que escreveram mais de seis anos antes daquele tempo,
profetizaram que o povo por seus pecados havia de ir cativo, mas que por misericórdia de Deus seria depois restituído à sua pátria. Os outros seis, que
profetizaram no tempo do cativeiro, insistiram constantemente em que ele havia de ter fim, determinando sinaladamente o ano da liberdade.
A razão deste concurso tão extraordinário de Profetas e profecias (nunca antes, nem depois visto) foi porque nunca o povo e reino de Judá padeceu tão grande trabalho e calamidade como o cativeiro ou transmigração de Babilônia, sendo cativos, presos e. despojados de seus bens, arrancados da pátria e levados a terras de bárbaros, e lá oprimidos e tratados como escravos em duríssima servidão.
Ordenou pois a providência e misericórdia divina, que naquele tempo e estado tão calamitoso, houvesse muitos Profetas e muitas profecias, uns que as tivessem escrito no tempo passado, e outros que as pregassem no presente, para que o povo não desmaiasse com o peso da aflição, e animado com a esperança da liberdade, pudesse com o trabalho do cativeiro. O cativeiro e o tirano os oprimiam; os Profetas e as profecias os alentavam. Cantavam-se as profecias ao som das cadeias, e com a brandura deste som os ferros se tornavam menos duros e os corações mais fortes.
Foi mui particular neste caso entre todos os outros Profetas o zelo e diligência de Jeremias, porque, tendo ficado em Jerusalém, onde padeceu grandes trabalhos, prisões e perigos da vida por pregar e profetizar a verdade (pela qual finalmente morreu apedrejado), no meio destas opressões e perigos próprios, não esquecido dos alheios, antes mui lembrado do que padeciam os desterrados de Babilônia, escreveu um livro das suas profecias, em que por termos muito claros e palavras de grande consolação lhes anunciava a liberdade e o tempo dela, como se pode ver no cap. XXIX do mesmo Profeta. Levou este livro a Babilônia o Profeta Baruch, companheiro de Jeremias, leu-se em presença de El-Rei Iconias e publicamente de todo o povo, que com ele vivia no cativeiro, e nota o mesmo Baruch que todos com grande alvoroço corriam ao livro. Assim o diz no primeiro capítulo da relação que fez desta jornada, e anda no Texto Sagrado junta com as obras de Jeremias: Et legit Baruch verba libri hujus ad aures Jechoniae, filii Joachim, regis Juda, et ad aures universi populi venientis ad librum.
Não sei se terá a mesma fortuna, e se será recebido e lido com o mesmo animo e afecto este nosso livro da História do Futuro; mas sei que nos trabalhos calamidades e aflições que há-de padecer o Mundo e pode ser cheguem também a Portugal, nem Portugal nem o Mundo poderá ter outro alívio nem outra consolação maior que a freqüente lição e consideração deste livro e das profecias e promessas do futuro que nele se verão escritas. Ao menos não negará Portugal que, no tempo da sua Babilônia e do cativeiro e opressões com que tantas vezes se viu tão maltratado e apertado, nenhuma outra apelação tinha a sua dor, nem outro alívio ou consolação a sua miséria, mais que a lição e interpretação das profecias, e a esperança da liberdade e do ano dela, e do termo e fim do cativeiro que nelas se lia.
Lia-se na carta e tradição de S. Bernardo que quando Deus alguma hora permitisse que o reino viesse a mãos e poder de rei estranho, não seria por espaço mais que de sessenta anos. Lia-se no juramento de El-Rei D. Afonso Henriques e na promessa do santo ermitão, que, na décima sexta geração atenuada, poria Deus os olhos de sua misericórdia no Reino. Lia-se nas célebres tradições de Gregório de Almeida no seu Portugal Restaurado, que o tempo desejado havia de chegar, e as esperanças dele se haviam de cumprir no ano
sinalado de quarenta; e no concurso de todas estas profecias se consolava e animava Portugal a ir vivendo ou durando até ver o cumprimento delas.
Falando no mesmo cativeiro de Babilônia o mesmo profeta Isaías, e do alívio e consolação que com suas profecias haviam de ter em seus trabalhos aqueles cativos, diz com igual brandura e eloquência estas notáveis palavras: Spiritus Domini super me [...] ut mederer contritis corde et praedicarem captivis indulgentiam [...] ut praedicarem annum placabilem Domino [...] ut consolarem omnes 1ugentes [...] et darem eis coronam pro cinere, oleum gaudii pro luctu...
«Desceu sobre mim o Senhor, e ungiu-me com seu espírito, diz Isaías, para que como médico dos aflitos cativos de Babilônia, curasse com o talento de minhas promessas e profecias, a tristeza e desmaio de seus corações». E declarando mais em particular os remédios cordiais que lhes aplicava, aponta nomeadamente dois que mais parecem receitados para o nosso cativeiro que para o de Babilônia: o primeiro, era um ano de indulgência e redenção, em que o cativeiro se havia de acabar: Et praedicarem captivis indulgentiam, annum placabilem Domino; o segundo, era uma coroa trocada pelas antigas cinzas, com que os lutos e tristezas passadas se convertessem em festas e alegrias: Et darem eis coronam pro cinere, oleum gauudii pro luctu.
Assim o liam os cativos de Babilônia; a nas suas profecias, e assim o líamos nós também nas nossas. E assim como eles não tinham outro remédio na sua dor senão a esperança daquele desejado ano e a mudança daquela prometida coroa, assim nós, com os olhos longos no suspirado ano de quarenta e na esperada coroa do novo rei português, aliviávamos o peso do nosso jugo e consolávamos a pena do nosso cativeiro. E pois este remédio das profecias foi tão presente e eficaz para os trabalhos passados, razão tenho eu (e razão sobre a experiência) para esperar e confirmar que o será também para os futuros.
Eu não prometo nem espero infortúnios a Portugal; mas ou sejam de Portugal, ou da Cristandade, ou do Mundo os que pode causar nele a necessidade ou a adversidade dos tempos, para todos lhes prometo este remédio: melhor é que sobejem os remédios à cautela, do que faltem à providência.
E porque não pareça que argumento só de casos e profecias de tempos antigos, sejam os casos e profecias próprias dos nossos tempos e escritas só para eles.
Ninguém ignora que as profecias do Apocalipse e mais ainda as que estão por cumprir) são próprias dos tempos que hoje correm e hão-de parar no fim do Mundo. Assim o dizem Padres e expositores, e nós o mostraremos em seu próprio lugar. Mas a que fim, pergunto, ordenou a Providência Divina que S. João tivesse aquelas revelações e escrevesse aquelas profecias?
É pergunta esta de que foi respondida Santa Brígida, como se lê no Livro VI de suas Revelações. Querendo Cristo, por particular favor, que a santa ouvisse a resposta da boca do mesmo Profeta, apareceu ali S. João e disse desta maneira: Tu, Domine, inspirasti mihi mysteria ejus, et ego scrpsi ad consolationem futurorum, ne fideles tui propter futuros casus everterentur: «Vós, Senhor, me revelastes aqueles mistérios, e eu escrevi as profecias deles para consolação dos
vindouros e para que os vossos fiéis com os casos futuros se não perturbassem», antes confirmados com as mesmas profecias, estejam neles constantes.
Este é o fim (posto que não só este) por que Deus revela as cousas futuras, e por que os Profetas antigos, e o último de todos, que foi S. João, as escreveram: para que se veja quão justa e quão útil é, e quão conforme com a vontade e intento de Deus, a diligência com que eu me disponho, e o trabalho de escolher entre todas as profecias que pertencem a nossos tempos, e de as ajuntar, ordenar e tirar à luz para o benefício público. E porque o fruto deste benefício se pode colher nas novidades que promete este mesmo ano em que. somos entrados, aplicando o
remédio à ferida ou aos ameaços dela, digo assim com o profeta Amos: Leo rugiet; quis non timebit? Dominus Deus locutus est quis non prophetabit ? Está o leão bramindo? Sim, está; pois agora é o tempo de se ouvirem as profecias e de se saber e publicar o que Deus tem dito: Dominus Deus locutus est. quis non prophetabit? Falem todos nas profecias e entendam-nas todos, pratiquem-nas todos, que agora é o tempo.
Quando as bramidos do leão se ouvirem em suas caixas e trombetas, soe também em nossos ouvidos por cima de todas elas, o trovão de nossas profecias. Assim lhes chamei, porque são voz do Céu. Leo rugiet, quis non timebit?
«Quando bramir o leão, quem não tremerá?»
Responderão com razão os nossos soldados que não temerão aqueles que tantas vezes os têm vencido; que não temerá Portugal, que é o Sansão que tantas vezes o tem desqueixado. que não temerá Portugal, que é o Hércules que tantas vezes se tem vestido de seus despojos; que não temerá Portugal que é o David que tantas vezes lhe tem tirado das garras os seus cordeiros. Esta é a resposta do valor, e esta pode ser também a da arrogância, de que Deus se não agrada.
Não confie Portugal em si, porque se não ofenda Deus; confie só no mesmo Deus e em suas promessas, e pelejará seguro. Oh! que bem armados esperarão o leão na campanha os nossos soldados, se tiverem nas mãos as armas e no coração as profecias! Leo rugiet, quis non prophetabit?
Estas são as trombetas do Céu, de cujo som tremem os muros de Jericó e a cuja bateria nenhuma fortaleza resiste.
Mas se acaso (que pode ser) houver algum sucesso adverso (que também depois do milagre de Jericó houve nos campos de Hai), não perca Josué nem seus soldados o animo; recorram a Deus e a suas promessas, que por isso nos tem prevenido com elas.
Costuma a Providência Divina começar suas maravilhas por efeitos contrários, ou para provar nossa fé, ou para mais exaltar sua omnipotência. Ele pode mais que todos os poderes humanos, e só uma cousa não pode, que é faltar ao que tem prometido. Deixou Cristo aos discípulos lutar com a tempestade na primeira vigia, na segunda não lhos acudiu, nem na terceira; e quando na quarta, depois de os atemorizar com fantasmas, os socorreu com sua presença, ainda então os repreendeu de pouca confiança. Escureça-se a noite, brame o mar, rompa-se o céu, enfureçam-se os ventos, que Deus há-de acudir por sua palavra; seguro está o Reino em que ele e a palavra de Deus correm o mesmo perigo.
Terceira utilidade.
Finalmente (e é a terceira e não menor utilidade desta História), lendo os príncipes da Cristandade, e mais particularmente aqueles que foram ou estão já escolhidas por Deus para instrumentos gloriosos de ,tão singulares maravilhas e maravilhosas felicidades, lendo, digo, no discurso da História do Futuro, as vitórias, os triunfos, as conquistas, os reinos, as coroas e o domínio e sujeição de nações tantas e tão dilatadas, que lhes estão prometidas, na fé e confiança das mesmas promessas se atreverão animosamente a empreendê-las, sendo certo que, medidas só as forças da potência humana, sem ter por fiador a palavra divina, nenhuma razão haveria no Mundo que se atrevesse a aconselhar, nem ainda temeridade que
se arrojasse a empreender a desigualdade de tamanhas guerras e a desproporção de tão imensas conquistas. Mas as promessas e as disposições divinas, antecedentemente conhecidas na previsão do futuro, tudo facilitam e a tudo animam.
Para testemunho desta tão importante verdade e alento dos que a lerem, porei aqui um só exemplo de guerras, outro de conquistas, mas um e outro os maiores que até hoje se viram no Mundo.
Tinham vindo sobre o povo de Israel os exércitos dos Filisteus com trinta mil carros de guerra e tanta multidão de soldados, que não só compara a Escritura Sagrada q número deles com o da areia do mar, senão com a areia muita: ...sicut arena, quae est in littore maris, plurima. Os Israelitas, reconhecendo sua desigualdade para resistir a tão superior e excessivo poder, diz o mesmo texto que se tinham escondido pelas brenhas, pelas montanhas, pelas covas, pelas grutas, pelas cisternas e por todos os outros lugares mais ocultos e secretos que .sabe inventar o medo e a necessidade.
Neste estado de horror e miséria sai de noite o príncipe Jónatas, filho de el- rei Saul, trata de consultar a Deus por um modo de oráculo ou sorte, a que os Hebreus chamavam Phurim, pela qual a Providência divina naquele tempo costumava responder e significar os sucessos futuros; e encaminhando para os alojamentos do inimigo, disse assim ao seu pajem da lança, que só o acompanhava:
Se quando formos sentidos do exército dos Filisteus, disserem as sentinelas: — Esperai por nós — é sinal que responde Deus que paremos, e que não convém acometer; mas se as sentinelas disserem: — Vinde para cá — é sinal que responde Deus que acometamos, porque os tem entregues em nossas mãos, e que havemos de prevalecer contra eles.
Ajustados os sinais nesta forma, prosseguiram seu caminho, chegaram perto e foram sentidos. As sentinelas que deram fé dos dois voltos, falaram entre si, concordando em que eram hebreus dos que estavam metidos pelas covas; levantaram a voz e disseram para eles:
Vinde cá, que temos certa cousa que vos dizer. Não foi necessário mais, para que Jónatas entendesse a resposta do divino oráculo, interpretando-a (como verdadeiramente era) conforme o sinal que tinha posto; e na fé e confiança desta profecia, tendo por sem dúvida que havia de vencer, avança animosamente às tendas dos Filisteus, começa ele e o companheiro a matar nos inimigos, toca-se arma, cresce a confusão, perturbam-se os arraiais, trava-se uma brava peleja dos mesmos Filisteus uns contra os outros, cuidando que eram os soldados de Saul. Fogem, atropelam-se, matam-se. Saem das covas os Israelitas, seguem os Filisteus fugitivos, e voltam carregados de despojos. Conhecem-se enfim com imortal glória de Jónatas os autores de tão estupenda façanha, bastando só dois homens armados da confiança de uma profecia, para porem em fugida o mais poderoso exército e alcançarem a mais desigual e prodigiosa vitória.
A maior e mais nobre conquista que até hoje se intentou e conseguiu no Mundo, foi a famosa de Alexandre Magno. O homem que a empreendeu era o maior capitão que criou a natureza, formou o valor, aperfeiçoou a arte e acompanhou a fortuna. mas se não fora ajudado da profecia, nem ele se atrevera ao que se atreveu, nem obrara e levara ao cabo o que obrou. Bem sei que no dia em que nasceu Alexandre, ardeu o famosíssimo templo de Diana Efesina, onde
prognosticaram os Magos que naquele dia entrara no Mundo quem havia de ser o incêndio de toda Ásia.
Também sei que a quem desatasse o nó gordiano que Alexandre cortou com a espada, estava prometido pelos oráculos de Apolo Délfico o império de todo o Oriente; mas não chamo eu a isto profecias, nem assento considerações e verdades tão sérias sobre fundamentos de tão pouca subsistência, como são os vaticínios da Gentilidade.
Conta Josefo, no liv. XI de suas Antigüidades, que entrando Alexandre em Jerusalém, saiu a o receber fora do templo o sumo sacerdote Jado, revestido dos ornamentos pontificais, e que Alexandre, vendo-o, se lançara a seus pés e o adorara; e perguntado pela causa de tão desusada reverência, tão alheia de sua grandeza e majestade, respondeu que ele não adorara aquele homem senão nele a Deus, porque reconhecera que aquele era o hábito, o ornato e a representação em que Deus lhe tinha aparecido em Dio, cidade de Macedônia, e exortando-o a que empreendesse a conquista da Pérsia, que naquele tempo meditava, lhe segurara a vitória.
As palavras de Alexandre (que é bem se veja a sua formalidade) são as seguintes:
— Non hunc adoravi, sed Deum, cujus principa desse a resposta do divino oráculo, interpretando-a (como verdadeiramente era) conforme o sinal que tinha posto; e na fé e confiança desta profecia, tendo por sem dúvida que havia de vencer, avança animosamente às tendas dos Filisteus, começa ele e o: companheiro a matar nos inimigos, toca-se arma cresce a confusão, perturbam-se os arraiais, trava-se uma brava peleja dos mesmos Filisteus uns contra os outros, cuidando que eram GS soldados de Saul. Fogem, atropelam-se, matam-se. Saem
das covas os Israelitas, seguem GS Filisteus fugitivos, e voltam carregados de despojos. Conhecem-se enfim com imortal glória de Jónatas os autores de tão estupenda façanha' bastando só dois homens armados da confiança de uma profecia, para porem em fugida o mais poderoso exército e alcançarem a mais desigual e prodigiosa vitória.
A maior e mais nobre conquista que até hoje se intentou e conseguiu no Mundo, foi a famosa de Alexandre Magno. o homem que a empreendeu era o maior capitão que criou a natureza, formou o valor, aperfeiçoou a arte e acompanhou a fortuna. mas se não fora ajudado da profecia, nem ele se atrevera ao que se atreveu, nem obrara e levara ao cabo o que obrou. Bem sei que no dia em que nasceu Alexandre, ardeu o famosíssimo templo de Diana Efesina, onde prognosticaram os Magos que naquele dia entrara no Mundo quem havia de ser o incêndio de toda Ásia.
Também sei que a quem desatasse o nó gordiano que Alexandre cortou com a espada, estava prometido pelos oráculos de Apolo Délfico o império de todo o Oriente; mas não chamo eu a isto profecias, nem assento considerações e verdades tão sérias sobre fundamentos de tão pouca subsistência, como são os vaticínios da Gentilidade.
Conta Josefo, no liv. XI de suas Antigüidades, que, entrando Alexandre em Jerusalém, saiu a o receber fora do templo D sumo sacerdote Jado, revestido dos ornamentos pontificais, e que Alexandre, vendo-o, se lançara a seus pés e o adorara; e perguntado pela causa de tão desusada reverência, tão alheia de sua grandeza e majestade, respondeu que ele não adorara aquele homem, senão nele a
Deus, porque reconhecera que aquele era o hábito, o ornato e a representação em que Deus lhe tinha aparecido em Dio, cidade de Macedônia, e exortando-o a que empreendesse a conquista da Pérsia, que naquele tempo meditava, lhe segurara a vitória.
As palavras de Alexandre (que é bem se veja a sua formalidade) são as seguintes:
— Non hunc adoravi, sed Deum, cujus principatus sacerdotii functus est. Nam per somnium in hujus modi eum habitu conspexi, adhuc in Dio civitate Macedoniae constitutus. Dumque mecum cogitassem posse Asiam vincere, incitavit me ut nequaqm negligerem, sed confidenter transirem. Nam per se ducturum meum exercitum dicebat, et Persarum traditurum potentiam: ideoque neminem alium in tali stola videns, cum huc advertissem, habens visionis et probutionis nocturnae memoriam, salutavi. [...] Exinde arbitrar Divino iuvamine me directum Dariumque vixisse, virtutemque solvisse Persarum. Propterea et omnia quae meo.corde sperantur, pro ventura confido.
No mesmo templo de Jerusalém, refere também Josefo que foram mostradas a Alexandre as profecias de Daniel, particularmente aquela do cap.
VIII. Conta ali o profeta que viu dois animais do campo: um, o maioral das ovelhas, com dois cornos muito fortes; outro, o maioral das cabras, com um só
corno entre os olhos (o qual depois de quebrado se dividiu em quatro), e que este segundo animal, correndo da parte do Ocidente contra o primeiro, sem pôr os pés na terra, o investira e derribara e metera debaixo dos pés.
Nestas duas figuras é certo que estava profetizado, na primeira, o império dos Persas e Medos (como explicou o anjo a Daniel), por isso tinha a testa dividida em dois cornos; na segunda, o império dos Gregos, que no princípio esteve unido em uma só pesca, que foi Alexandre, e depois de sua morte se dividiu em quatro, que foram os quatro reinos em que ele o repartiu entre seus capitães. Saiu pois Alexandre da parte ocidental, que é a Macedônia, e sem pôr os pés na terra, pela velocidade com que vencia e sujeitava tudo, investiu, derribou e meteu debaixo dos pés o império dos Persas e Medos, acabando de se cumprir a profecia na última batalha do Tigranes, em que venceu e desbaratou de todo os exércitos de Dario e tomou ou se deixou saudar com o nome de Imperador da Ásia.
Não parou aqui Alexandre; porque não pararam aqui as profecias de Daniel na visão dos quatro animais referidos no cap. VII. O terceiro era Alexandre, significado no leopardo com quatro asas. Na visão da estátua de Nabuco, referida no cap. II, o terceiro dos metais, que era o bronze, significava também o império de Alexandre; e diz ali o Profeta que reinaria e se faria obedecer de todo o Mundo: Et regnum tertium aliud aereum, quod imperabit universae terrae.
Em seguimento e confiança destas profecias, partiu Alexandre vitorioso para a conquista que lhe restava do mundo oriental, o qual sujeitou e uniu todo ao seu império, passando o Tauro e o Cáucaso e chegando até os fins do Ganges e praias do mar Índico, que eram então os últimos da terra de onde Hércules e o padre Líbero os tinham colocado.
Mas foram ainda mais em número e grandeza as nações que venceu e sujeitou Alexandre com a fama mais que com a espada; porque, entrando da volta desta jornada em Babilônia, achou nela os embaixadores de África, de Cartago Espanha, Gália, Itália, Sicília, Sardenha, as quais províncias, em obséquio e
reconhecimento de sua potência, se lhe mandaram sujeitar e entregar espontaneamente e entre elas os mesmos Romanos (nome já naquele: tempo famoso no Mundo), como é autor Clitarco, referido e louvado por Plínio no liv. III da História Natural. Tudo certifica ainda com palavras maiores o mesmo Texto Sagrado no exórdio do I Liv. dos Macabeus, dizendo: ...percussit Alexander [...] qui primus regnavit in Graecia, et Darium regem Persarum et Medorum, constituit et praelia multa et oblinuit omnium munitiones, et interfecit reges terrae, pertransiit usque ad fines terrae, et accepit spolia mulitudinis gentium, et siluil terra in conspectu ejus.
Porém o que mais admira nas conquistas e vitórias de Alexandre, é a desigualdade do poder e o limitado aparato de guerra com que entrou em tão imensa empresa; porque, como refere Plutarco e o prova com graves autores, saiu de Macedônia com menos de quarenta mil homens, bastimentos só para trinta dias, e com setenta talentos para estipêndios, que fazem da nossa moeda quarenta e dois mil cruzados.
Mas como Alexandre, antes de obrar todas estas maravilhas, com que mereceu o nome e se fez verdadeiramente magno, se tivesse visto a si mesmo melhor retratado nas profecias de Daniel, do que depois se viu nas estátuas de Lisipo nem nas pinturas de Apeles, não é muito que, animado e soprado do espirito das mesmas profecias e cheio da majestade delas, se atrevesse a tão árduas e dificultosas empresas, das quais justamente se duvida (como pôs em questão Justino) se foi maior façanha o intentá-las, ou vencê-las.
E de aqui se pode desculpar (cousa que não soube nem pôde advertir nenhum dos historiadores de Alexandre, sendo tantos e tão excelentes), de aqui, digo, se pode desculpar aquela mais temeridade que audácia (qualidade, posto que honrosa, indigna de um general prudente e muito mais de um rei, quando conquista o alheio e não defende o próprio), com que Alexandre empenhava sua pessoa e vida e se precipitava muitas vezes aos perigos por cousas leves, sendo a confiança ou o seguro de todos estes arrojamentos, não o domínio que ele tivesse sobre a fortuna — Quam solus omnium mortalium sub potestate habuit — como com discrição gentílica disse dele Cúrcio, mas a previsão e presciência de suas futuras vitórias e do império que lhe estava prometido, e havia necessariamente de conquistar, conforme as profecias de Daniel. E como tinha a vida e as empresas firmadas por uma escritura de Deus ou por três escrituras, e ao mesmo Deus por fiador de sua palavra e promessas, fé era e não audácia, confiança e não temeridade empenhar-se Alexandre nos perigos para conseguir as empresas, e dar exemplo de desprezo da vida a seus soldados para os animar às vitórias. Tanta parte teve a profecia nas ações deste grande capitão e no império deste grande monarca, o qual, se deve a Filipe o ser Alexandre, deve a Daniel o ser Magno!
Os exemplos que temos domésticos desta mesma utilidade, não são menos admiráveis que os estranhos, assim nas batalhas, como nas conquistas. Era tão inumerável a multidão de Sarracenos que debaixo das luas de Ismael, e dos outros quatro reis mouros, inundaram os campos de Guadiana com intento de tomar Portugal naquele dia fatalíssimo, o primeiro de nossa maior fortuna, que justamente estavam temerosos os poucos portugueses, e seu valoroso príncipe duvidoso se aceitaria ou não a batalha; mas como o velho ermitão, intérprete da Divina Providência, visto primeiro em sonhos e depois realmente ouvido e conhecido, lhe assegurou da parte de Deus a vitória, com aquelas tão expressas e animosas palavras Vinces, Alphonse, et non vinceris — socorrido o animoso capitão e fortalecido o pequeno exército com esta promessa do Céu, sem reparar em que era
tão desigual o partido, que para cada lança cristã havia no campo cem mouros, resolveu intrepidamente dar a batalha.
Na manhã, pois, da mesma noite em que tinha recebido a profecia, acomete de fronte a fronte ao inimigo, sustenta quatro vezes o peso imenso de todo seu poder, rompe os esquadrões, desbarata o exército, mata, cativa, rende, despoja, triunfa; e alcançada na mesma hora a vitória, e libertada a Pátria, pisa glorioso as cinco coroas mauritanas e põe na cabeça, já rei, a portuguesa.
Isto obraram as profecias daquela noite na guerra, mas ainda mostraram mais os poderes de sua influência na conquista. Quem duvida que foram mais
estendidas e gloriosas as conquistas dos Portugueses que as de Alexandre Magno na mesma Índia? Desta conquista de Alexandre disse o seu grande historiador ...Oriente perdomito, aditoque Oceano, quidquid mortalitas cutiebut, impleret. «Domado o Oriente e navegado o Oceano, cumpriu e encheu Alexandre tudo o que cabia na mortalidade.:> Que dissera, se vira as navegações dos Portugueses no mesmo Oceano e suas conquistas no mesmo Oriente? Obrigação tinha em boa consequência de lhes chamar imortais. Não chegaram os Portugueses só às ribeiras do Ganges, como Alexandre; mas passaram e penetraram adiante muito maior comprimento e terras do que há do mesmo Ganges a Macedônia, donde Alexandre tinha saído.
Não venceram só a Poro, rei da Índia, e seus exércitos; mas sujeitaram e fizeram tributárias mais coroas e mais reinos do que Poro tinha cidades. Não navegaram só o mar Indico ou Eritreu, que é um seio ou braço do Oceano, mas domaram o mesmo Oceano na sua maior largueza e profundidade, aonde ele é mais bravo e mais pujante, mais poderoso e mais indômito: o Atlântico, o Etiópico, o Pérsico, o Malabárico, e, sobre todos, o Sínico, tão temeroso por seus tulões e tão infame por seus naufrágios. Que perigos não desprezaram? Que dificuldades não venceram? Que terras, que céus, que mares, que climas, que ventos, que tormentas, que promontórios não contrastaram? Que gentes feras e belicosas não domaram? Que cidades e castelos fortes na terra? Que armadas poderosíssimas no mar não renderam? Que trabalhos, que vigias, que fomes, que sedes, que frios, que calores, que doenças, que mortes não sofreram e suportaram, sem ceder, sem parar, sem tornar atrás, insistindo sempre e indo avante, com mais pertinácia que com instancia?
Mas não obraram todas estas proezas aqueles portugueses famosos por benefício só de seu valor, senão pela confiança e seguro de suas profecias. Sabiam que tinha Cristo prometido a seu primeiro rei que os escolhera para argonautas apostólicos de seu Evangelho e para levarem seu nome e fundarem seu império entre gentes remotas e não conhecidas; e esta fé os animava nos trabalhos; esta confiança os sustentava nos perigos; esta luz do futuro era o norte que os guiava; e esta esperança a âncora e amarra firme, que nas mais desfeitas tempestades os tinha seguros.
Maiores contrastes tiveram ainda as conquistas de Portugal na nossa terra que nas estranhas, e mais fortes guerras experimentaram nos naturais que resistência nos inimigos. Quem quiser ver com admiração a tormenta de contradições populares , e de todo o Reino, que por espaço de dez anos padeceram os primeiros descobrimentos das conquistas, leia o grande cronista da Ásia, no IV cap. do I liv., e conhecerá quantas obrigações deve Portugal e o Mundo ao sofrimento, valor e constância do Infante D. Henrique, filho de El-Rei D. João I, autor desta heróica empresa, o qual, como religiosíssimo príncipe que era, e nela principalmente pretendia a glória de Deus, dilatação da Fé e conversão da
Gentilidade, mereceu que o mesmo Deus com uma voz do Céu o exortasse a levar por diante o começado, com promessa de seu favor e luz dos gloriosíssimos fins, que por meio de tão dura porfia se haviam de alcançar.
Assim se conta e escreve por fama e tradição daquele tempo. Com este oráculo divino mais fortalecido o espírito do Infante, não só pôde romper e abrir as