Em cirna das janelas e das portas

Põe sábias inscrições, põe grandes bustos, Que eu lhes porei, por baixo, os tristes nomes Dos pobres inocentes, que gemeram

350– Ao peso dos grilhões, porei os ossos Daqueles que os seus dias acabaram, Sem Cristo e sem remédios, no trabalho.

E nós, indigno chefe, e nós veremos

A quais destes padrões não gasta o tempo.


CARTA 5ª


Em que se contam as desordens feitas nas festas que se celebraram nos desposórios do nosso sereníssimo infante, com a sereníssima infanta de Portugal.


Tu já tens, Doroteu, ouvido histórias Que podem comover a triste pranto . Os secos olhos dos cruéis Ulisses.

Agora, Doroteu, enxuga o rosto,

5– Que eu passo a relatar-te coisas lindas.

Ouvirás uns sucessos, que te obriguem A soltar gargalhadas descompostas.


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Por mais que a boca, com a mão, apertes, Por mais que os beiços, já convulsos, mordas, 10– Eu creio, Doutor... Porém aonde

Me leva, tão errado, o meu discurso? Não esperes, amigo, não esperes, Por mais galantes casos que te conte,

Mostrar no teu semblante um ar de riso.

15– Os grandes desconcertos, que executam Os homens que governam, só motivam,

Na pessoa composta, horror e tédio.

Quem pode, Doroteu, zombar, contente, Do César dos romanos, que gastava

20– As horas, em caçar imundas moscas?

Apenas isto lemos, o discurso

Se aflige, na certeza de que um César, De espíritos tão baixos, não podia Obrar um fato bom, no seu governo.

25– Não esperes, amigo, não esperes Mostrar no teu semblante um ar de riso; Espera, quando muito, ler meus versos, Sem que molhe o papel amargo pranto, Sem que rompa a leitura alguns suspiros.

30– Chegou à nossa Chile a doce nova De que real infante recebera,

Bem digna de seu leito, casta esposa. Reveste-se o baxá de um gênio alegre E, para bem fartar os seus desejos

35– Quer que, a despesas do senado e povo, Arda em grandes festins a terra toda.

Escreve-se ao senado extensa carta Em ar de majestade, em frase moura, E nela se lhe ordena, que prepare,

40– Ao gosto das Espanhas, bravos touros; Ordena-se, também, que, nos teatros,

Os três mais belos dramas se estropiem Repetidos por bocas de mulatos;

Não esquecem, enfim, as cavalhadas. 45– Só fica, Doroteu, no livre arbítrio Dos pobres camaristas, repartirem Bilhetes de convites, pelas damas.

Amigo Doroteu, ah! tu não podes Pesar o desconcerto desta carta,

50– Enquanto não souberes a lei própria Que. aos festejos reais, prescreve a norma.

Enquanto, Doroteu, a nossa Chile Em toda parte tinha, à flor da terra,

Extensas e abundantes minas de ouro, 55– Enquanto os taberneiros ajuntavam Imenso cabedal, em poucos anos,

Sem terem, nas tabernas fedorentas,


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Outros mais sortimentos, que não fossem Os queijos, a cachaça, o negro fumo

60– E sobre as prateleiras poucos frascos, Enquanto, enfim, as negras quitandeiras,

À custa dos amigos, sô trajavam Vermelhas capas de galões cobertas, De galacés e tissos ricas saias,

65– Então, prezado amigo, em qualquer festa Tirava, liberal, o bom senado,

Dos cofres chapeados, grossas barras.

Chegaram tais despesas à notícia Do rei prudente, que a virtude preza.

70–E, vendo que estas rendas se gastavam Em touros, cavalhadas e comédias, Aplicar-se podendo a coisas santas, Ordena, providente, que os senados, Nos dias em que devem mostrar gosto

75– Pelas reais fortunas, se moderem E só façam cantar, no templo, os hinos

Com que se dão aos céus as justas graças.

Ah ! meu bom Doroteu, que feliz fora Esta vasta conquista, se os seus chefes

80– Com as leis dos monarcas se ajustaram!

Mas alguns não presumem ser vassalos, Só julgam que os decretos dos augustos Têm força de decretos, quando ligam

Os braços dos mais homens, que eles mandam. 85– Mas nunca quando ligam os seus braços.

Com esta sábia lei replica o corpo Dos pobres senadores e pondera

Que o severo juiz, que as contas toma, Lhes não há de aprovar tão grandes gastos. 90– Da sorte, Doroteu, q ue o bravo potro Quando a sela recebe a vez primeira.

Enquanto não sacode a sela fora E faz em dois pedaços cilha e rédea. Mete entre os duros braços a cabeça

95– E dá, saltando aos ares, mil corcovos.

Assim o irado chefe não atura O freio desta lei, espuma brama, Arrepela o cabelo, a barba torce

E, enquanto entende que o senado zela 100– Mais as leis, que o seu gosto, não descansa

Aos tristes senadores não responde, Mas manda-lhes dizer que, a não fazerem

Os pomposos festejos, se preparem Para serem os guardas dos forçados,

105– Trocando as varas em chicote e relho.

Já viste, Doroteu, que o grande chefe, O defensor das leis, o mesmo seja


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Que insulte, que ameace ao bom vassalo Que intenta obedecer ao seu monarca ? 110– Pois ainda, Doroteu, não viste nada.

Um monstro, um monstro destes não conhece Que exista algum maior que, ousado, possa Ou na terra ou no céu, tomar-lhe conta.

Infeliz, Doroteu, de quem habita

115– Conquistas do seu dono tão remotas!

Aqui o povo geme e os seus gemidos Não podem, Doroteu, chegar ao trono. E se chegam, sucede quase sempre O mesmo que sucede nas tormentas,

120– Aonde o leve barco se soçobra Aonde a grande nau resiste ao vento. Que peito, Doroteu, que peito pode Constante, persistir nos sãos projetos, Ouvindo as ameaças do tirano

125– E, junto já de si, o som dos ferros? Somente, Doroteu, os homens santos Que a sua lei defendem, vêem os potros, Vêem cruzes, cadafalsos e cutelos

Com rosto sossegado, os outros homens 130– Não podem, Doroteu, não podem tanto.

À força de temor o bom senado Constância já não tem; afrouxa e cede.

Somente se disputa sobre o modo De ajuntar-se o dinheiro, com que possa

135– Suprir tamanho gasto o grande Alberga.

Uns dizem que, das rendas do senado, Tiradas as despesas, nada sobra.

Os outros acrescentam, que se devem Parcelas numerosas, impagáveis

140– Às consternadas amas dos expostos. Uns ralham, outros ralham, mas que importa?

Todos arbítrios dão, nenhum acerta. Então o grande Alberga, que preside, Vendo esta confusão, na mesma bate

145– E, levantando a voz, pausada e forte, A importante questão assim decide: "Há dinheiro, senhores, há dinheiro;

Vendam-se os castiçais, tinteiro e bancos, Venda-se o próprio pano e mesa velha,

150– Quando isto não baste, há bom remédio, As fazendas se tomem, não se paguem

E, para autorizardes esta indústria, Eu vos dou, cidadãos, o meu exemplo".

Intentam replicar-lhe os camaristas, 155– A tão baixos calotes nunca afeitos. Mas ele, que não sofre mais instâncias,

As grossas sobrancelhas arqueando,


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Desta sorte prossegue, em tom azedo: "Se os meus santos conselhos se desprezam, 160– Depressa vou dar parte ao nosso chefe.

Ah! pobres cidadãos, se assim o faço!

Já se me representa que vos sinto Gemer, debaixo dos pesados ferros."

Só tu, maroto Alberga, só tu podes

165– Desta sorte falar aos teus colegas! Que importa que os acuses e que importa Que os prenda, com grilhões, o duro chefe? São ferros estes, ferros muito honrados, Que a honra só consiste na inocência.

170– Apenas, Doroteu, o vil Alberga Fala em queixa fazer ao nosso chefe, De susto os camaristas nem respiram,

Quais chorosos meninos, que emudecem Quando as amas lhes dizem: cala, cala, 175– Que lá vem o tutu que papa a gente.

Mandam-se apregoar as grandes festas, Acompanha ao pregão luzida tropa De velhos senadores. Estes trajam,

Ao modo cortesão, chapéus de plumas, 180– Capas com bandas de vistosas sedas.

Chega enfim o dia suspirado, O dia do festejo. Todos correm

Com rostos de alegria ao santo templo. Celebra o velho bispo a grande missa, 185– Porém o sábio chefe não lhe assiste Debaixo do espaldar, ao lado esquerdo: Para a tribuna sobe e ali se assenta.

Uns dizem, Doroteu, fugiu prudente, Por não ver assentados os padrecos 190– Na capela maior, acima dele.

Os outros sabichões, que a causa indagam, Discorrem que o senado lhe devia

Erguer, no presbitério, dossel branco, Em honra dele ser Lugar Tenente.

195– Mas eu com estes votos não concordo, E julgo, afoito, que a razão foi esta:

Porque estando patente e tendo posto O seu chapéu em cima da cadeira, Pudera duvidar-se se devia

200– O bispo ter a mitra na cabeça. Acaba-se a função e o nosso chefe À casa, com o bispo se recolhe.

A nobreza da terra os acompanha Até que montam a dourada sege.

205– Aqui, meu Doroteu, o chefe mostra O seu desembaraço e o seu talento!

Só numa função destas se conhece


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Quem tem andado terras, onde habitam,

Despidas dos abusos, sábias gentes !

210– Vai passando por todos, sem que abaixe A emproada cabeça, qual mandante

Que passa pelo meio das fileiras. Chega junto da sege, à sege sobe E da parte direita toma assento.

215– O bispo, o velho bispo atrás caminha.

Em ar de quem se teme da desfeita. Com passos vagarosos chega à sege. Encaixa na estribeira o pé cansado

E duas vezes por subir forceja.

220– Acodem alguns padres respeitosos E, por baixo dos braços, o sustentam.

Então, com mais alento, o corpo move Dá o terceiro arranco, o salto vence E, sem poder soltar uma palavra, 225– Ora vermelho ora amarelo fica,

Do nosso Fanfarrão ao lado esquerdo.

Agora dirás tu: "que bruto é esse?

Pode haver um tal homem, que se atreva A pôr na sua sege ao seu prelado

230– Da parte da boléia? Eu tal não creio." Amigo Doroteu, estás mui ginja,

Já lá vão os rançosos formulários Que guardavam à risca os nossos velhos. Em outro tempo, amigo, os homens sérios 235– Na rua não andavam sem florete;

Traziam cabeleira grande e branca.

Nas mãos os seus chapéus. Agora, amigo, Os nossos próprios becas têm cabelo.

Os grandes sem florete vão à missa.

240– Com a chibata na mão, chapéu fincado, Na forma em que passeiam os caixeiros.

Ninguém antigamente se sentava Senão direito e grave, nas cadeiras. Agora as mesmas damas atravessam 245– As pernas sobre as pernas.

Noutro tempo Ninguém se retirava dos amigos, Sem que dissesse adeus. Agora é moda Sairmos dos congressos em segredo.

Pois corre, Doroteu, à paridade,

250– Que os costumes se mudam com os tempos.

Se os antigos fidalgos sempre davam O seu direito lado a qualquer padre, Acabou-se esta moda: o nosso chefe

Vindica os seus direitos. Vê que o bispo 255– É um grande que foi, há pouco, frade E não pode ombrear com quem descende De um bravo patagão que, sem desculpa,


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Lá nos tempos de Adão já era grande.

Na tarde, Doroteu, do mesmo dia 260– Sai uma procissão, de poucos negros

E padres revestidos, só composta, Que os brancos e os mulatos se ocupavam

Em guarnecer as ruas, pois que todos Ocupados estão nas régias tropas. 265– Caminha o nosso chefe, todo Adônis, Diante da bandeira do senado; Alguns dos rigoristas não lho aprovam, Dizendo que devia, respeitoso,

Da maneira que sempre praticaram 270– Os seus antecessores, ir ao lado, Por ser esta bandeira um estandarte Onde tremulam, do seu reino, as armas.

Mas eu não o censuro, antes lhe louvo A prudência que teve: pois supunha

275– Que, à vista do seu sangue e seu caráter, Podia muito bem querer meter-se Debaixo, Doroteu, do próprio pálio.

Que destras evoluções não fez a tropa! Uns ficam, ao passar o sacramento,

280– Com as suas barretinas nas cabeças, Os outros se descobrem e ajoelham

E, enquanto não se avança o nosso chefe Prostrados se conservam e, devotos, Não cessam de ferir os brandos peitos.

285– Ah! grande general! com esta tropa Tu podes conquistar o mundo inteiro!

Foram muitos felizes os Lorenas,

Os Condes, os Eugênios e outros muitos, Em tu não floresceres nos seus tempos. 290– Meu caro Doroteu, os sapateiros Entendem do seu couro, os mercadores Entendem de fazenda, os alfaiates Entendem de vestidos, enfim todos Podem bem entender dos seus ofícios.

295– Porém querer o chefe que se formem Disciplinadas tropas de tendeiros,

De moços de taberna, de rapazes E bisonhos roceiros, é delírio,

Que o soldado não fica bom soldado 300– Somente porque veste a curta farda,

Porque limpa as correias, tinge as botas E, com trapos, engrossa o seu rabicho.

A negra noite em dia se converte À força das tigelas e das tochas

305– Que em grande cópia nas janelas ardem.

Aqui o bom Robério se distingue: Compõe algumas quadras, que batiza


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Com o distinto nome de epigramas E pedante rendeiro as dependura

310– Na dilatada frente, que ilumina, Fazendo-as escrever em lindas tarjas. Rançoso e mau poeta, não nasceste Para cantar heróis, nem coisas grandes! Se te queres moldar aos teus talentos, 315– Em tosca frase do país somente Escreve trovas, que os mulatos cantem.

Andava, Doroteu, alegre a gente Em bandos pelas ruas. Então vejo Ao famoso Roquério neste traje:

320– As chinelas nos pés, descalça a perna Um chapéu muito velho na cabeça,

E, fora dos calções, a porca fralda. Em um roto capote mal se embrulha E grande varapau na mão sustenta,

325– Que mais de estorvo que de arrimo serve, Pois a cachaça ardente, que o alegra,

Lhe tira as forças dos robustos membros E põe-lhe peso, na cabeça leve.

Não repares, amigo, que te conte 330– Este sucesso, que parece estranho:

Este grande Roquério é um daqueles Que assenta, à sua mesa, o nosso chefe.

Agora, amigo, vê se esta pintura Não pode muito bem à nossa historia,

335– Sem violência, servir, também, de enfeite.

Fiquemos, Doroteu, aqui, por ora, Pois, de tanto escrever, a mão já cansa.

Em outra contarei o mais, que resta E vi no grão passeio e mais no curro,

340– Aonde as cavalhadas se fizeram, Aonde os maus capinhas maltrataram, Em vez de touros, mansos bois e vacas.


CARTA 6ª


Em que se conta o resto dos festejos.

Eu ontem, Doroteu, fechei a carta Em que te relatei da igreja as festas . E como trabalhava, por lembrar-me Do resto dos festejos mal descalço

5– Na cama, os lassos membros, me parece Que vou entrando na formosa praça.

Não vejo, Doroteu, um curro feito De pedaços informes de outros curros

Sim vejo o mesmo curro, que o bom chefe


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10– Riscou na seca praia, e nele vejo As mesmas armações, as mesmas caras.

Ora vou, doce amigo, aqui pintá-lo Na frente se levanta um camarote Mais alto do que todos uma braça:

15– Enfeitam seu prospecto lindas colchas E pendentes cortinas de damasco.

À direita se assenta o nosso chefe; Os régios magistrados não o cercam, Nem o cerca, também, o nobre corpo.

20– Dos velhos cidadãos, aquele mesmo Que faz de toda a festa os grandes gastos.

Com ele só se assenta a sua corte, Que toda se compõe de novos Martes. Aqui alguns conheço, que inda vivem

25– De darem o sustento, o quarto, a roupa.

E capim para a besta, a quem viaja. Conheço, finalmente, a outros muitos Que foram almocreves e tendeiros.

Que foram alfaiates e Fizeram.

30– Puxando a dente o couro, bem sapatos Agora, doce amigo, não te rias

De veres que estes são aqueles grandes Que. em presença do chefe, encostar podem Os queixos nos bastões das finas canas.

35– Os postos, Doroteu, aqui se vendem, E, como as outras drogas que se compram, Devem daqueles ser. que mais os pagam.

No meio desta turba, veio um vulto Que moça me parece, pelo traje.

40– Não posso conceber o como deva Estar uma senhora em tal palanque.

O chefe, (eu discorria), inda é solteiro, E, quando não o fosse, a sua esposa Não havia sentar-se com barbados.

45– Mil coisas, Doroteu, mil coisas feias Me sugere a malícia, e todas falsas.

Aplico mais a vista, então conheço Que é uma muito esperta mulatinha Que dizem filha ser do seu lacaio.

50– Eis aqui, Doroteu, o como, às vezes '55– Que tudo é desta classe, e, se viveres Ainda o hás de ver obrar milagres.

Pegado ao camarote do bom chefe Se vê outro palanque, igual em tudo Aos rasos camarotes do mais povo.

60– Aqui têm seu lugar os senadores; Com eles se encorporam outros muitos Que lograram de edis as grandes honras.

Nos outros adornados camarotes


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Assistem as famílias mais honestas: 65– Aqui nada se vê que seja pobre.

Recreia, Doroteu, recreia a vista O vário dos matizes; cega os olhos O continuo brilhar das finas pedras.

No meio de um palanque então descubro 70– A minha, a minha Nise: está vestida Da cor mimosa com que o céu se veste

Oh ! quanto, oh! quanto é bela! a verde olaia Quando se cobre de cheirosas flores

A filha de Taumante, quando arqueia, 75– No meio da tormenta, o lindo corpo; A mesma Vênus, quando toma e embraça O grosso escudo e lança, porque vence a A paixão do deus Marte com mais força,

Ou, quando lacrimosa se apresenta 80– Na sala de seu pai, para que salve Aos seus troianos das soberbas ondas,

Não é, não é como ela tão formosa. Qual o tenro menino, a quem se chega Defronte do semblante a vela acesa.

85– Umas vezes suspenso, outras risonho, Os olhos arregala e, bem que o chamem,

A tesa vista não separa dela, Assim eu, Doroteu, apenas vejo A minha doce Nise, qual menino,

90– Os olhos nela fito cheios de água, E, por mais que me chamem, ou me abalem.

De embebido que estou, não sinto nada. No meio, Doroteu, de tanto assombro,

Me finge a perturbada fantasia

95– Novo sucesso, que me aflige e cansa.

Aparece, no curro passeando, Sexagenário velho, em ar de moço: Traja uma curta veste, calções largos Da cor da seca rosa, a quem adorna 100– O brilhante galão de fina prata. Na bolsa do cabelo, que se enfeita De duas negras plumas e de flocos, Branquejam os vidrilhos, e no peito,

De flores se sustenta um grande molho. 105 – Traz dois anéis nos dedos e fivelas De amarelos topázios. Não caminha

Sem que, avante, caminhe um branco pajem Atrás da cadeirinha, e o seu moleque Em forma de lacaio. Ah! velho tonto!

110 – Esse teu tratamento imita, imita Ao estado que tem o rei do Congo.

Ponho os meus olhos no caduco Adônis, Então se me afigura que ele oferta


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A Nise uma das flores, e que Nise 115– Com ar risonho, no seu peito a prega.

Aos zelos, Doroteu, ninguém resiste; Sentem a sua força os altos deuses, Os homens mais as feras; e, em Critilo, Não podes esperar paixões diversas.

120– Apenas isto veio, exasperado Meto a mão no florete e, quando intento O peito transpassar-lhe, então acordo E, vendo-me às escuras sobre a cama Conheço que isto tudo foi um sonho.

125– Pintei-te, Doroteu. o grande curro Da sorte que minha alma o viu sonhando: Agora vou pintar-te os mais sucessos Que impressos inda tenho na memória.

Ainda, Doroteu, no largo curro

130– Caretas não brincavam, nem se viam, Nos rasos camarotes, altas popas,

Enfeites com que brilham néscias damas Quando já no castelo de madeira

As peças fuzilavam, sinal certo

135– De que o nosso herói e o velho bispo No adornado palanque se assentavam.

Agora dirás tu: "é forte pressa!

Os chefes nos teatros entram sempre

Às horas de correr-se acima o pano. 140– Amigo Doroteu, tu nunca viste Uma criança a quem a mãe promete Levá-la a ver de tarde alguma festa Que logo de manhã a mãe persegue, Pedindo que lhe dispa os fatos velhos ?

145– Pois eis aqui, amigo, o nosso chefe. Não quer perder de estar casquilho e teso No erguido camarote um breve instante. Chegam-se, enfim, as horas do festejo; Entra na praça a grande comitiva;

150– Trazem os pajens as compridas lanças De fitas adornadas, vêm à destra

Os formosos ginetes arreados, Seguem-se os cavaleiros, que cortejam Primeiro ao bruto chefe, logo aos outros, 155– Dividindo as fileiras sobre os lados.

Não há quem o cortejo não receba Em ar civil e grato; só o chefe

O corpo da cadeira não levanta, Nem abaixa a cabeça, qual o dono

160– Dos míseros escravos, quando juntos A benção vão pedir-lhe, porque sejam Ajudados de Deus no seu trabalho.

Feitas as cortesias do costume,


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Os destros cavaleiros galopeiam 165– Em círculos vistosos, pelo campo.

Logo se formam em diversos corpos, A maneira das tropas que apresentam Sanguinosas batalhas. Soam trompas, Soam os atabales, os fagotes,

170– Os clarins, os oboés, e mais as flautas: O fogoso ginete as ventas abre

E bate com as mãos na dura terra; Os dois mantenedores já se avançam. Aqui, prezado amigo, aqui não lutam, 175– Como nos espetáculos romanos, Com forçosos leões, malhados tigres,

Os homens, peito a peito e braço a braço.

Jogam-se encontroadas, e se atiram Redondas alcançais, curtas canas.

180– De que destro inimigo se defende Com fazê-las no ar em dois pedaços. Ao fogo das pistolas se desfazem

Nos postes as cabeças. Umas ficam

Dos ferros trespassados, outras voam, 185– Sacudidas das pontas das espadas; Airoso cavaleiro ao ombro encosta

A lança, no princípio da carreira; No ligeiro cavalo a espora bate;

Desfaz com mão igual o ferro, e logo 190– Que leva um argolinha, a rédea toma

E faz que o bruto pare. Doces coros Aplaudem o sucesso, enchendo os ares De grata melodia. Então, vaidoso, Guiado de um padrinho, ao chefe leva 195– O sinal da vitória, que segura

Na destra, aguda lança. O bruto chefe Aceita a oferta em ar de majestade; À maneira dos amos, quando tomam

As coisas que lhes dão os seus criados. 200– Nestes e noutros brincos inocentes Se passa, Doroteu, a alegre tarde.

Já no sereno céu resplandeciam As brilhantes estrelas, os morcegos E as toucadas corujas já voavam,

205– Quando, prezado amigo, nas janelas Do nosso Santiago se acendiam.

Em sinal de prazer, as luminárias; Ardem, pois, nas janelas de palácio Duas tochas de pau, e sobre a frente 210– Da casa do Senado se levanta Uma extensa armação, a quem enfeitam Quatro mil tigelinhas. Meu Alberga

Aqui o prêmio tens, do teu trabalho.


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Tu farás, de torcidas e de azeite, 215– Aos tristes camaristas, contas largas;

E as arrobas de sebo, que não arde Desfeitas em sabão, mui bem te podem Toda a roupa lavar por muitos anos.

Nas margens, Doroteu, do sujo corgo, 220– Que banha da cidade a longa fralda, Ha uma curta praia, toda cheia

De já lavados seixos. Neste sitio Um formoso passeio se prepara: Ordena o sábio chefe que se cortem

225– De verdes laranjeiras muitos ramos, E manda que se enterrem nesta praia Fingindo largas ruas. Cada tronco

Tem, debaixo das folhas, uma tábua.

Sem lavor nem pintura, que sustenta 230– Doze tigelas do grosseiro barro.

No meio do passeio estão abertas Duas pequenas covas, pouco fundas

Que lagos se apelidam. Sobre as bordas Ardem mil tigelinhas e o azeite

235– Que corre, Doroteu, dos covos cacos Inda é mais do que são as sujas águas

Que nem os fundos cobrem destes tanques.

A tão formoso sitio tudo acode Ou seja de um ou seja de outro sexo,

240– Ou seja de uma ou seja de outra classe.

Aqui lascivo amante, sem rebuço A torpe concubina oferta o braco Ali mancebo ousado assiste e faia

A simples filha, que seus pais recatam; 245– A ligeira mulata, em trajes de homens,

Dança o quente lundu e o vil batuque, E, aos cantos do passeio, inda se fazem Ações mais feias, que a modéstia oculta.

Meu caro Doroteu, meu doce amigo, 250– Se queres que este sitio te compare

Como sério poeta, aqui tens Chipre, Nos dias em que os povos tributavam A deusa tutelar alegres cultos.

Se queres que o compare, como um homem 255– Que alguma noção tem das sacras letras, Aqui Sodoma tens e mais Gomorra.

Se queres, finalmente, que o compare A lugar mais humilde, em tom jocoso, Aqui, amigo, tens esse afamado

260– Quilombo, em que viveu o pai Ambrósio.

Depõe o nosso chefe a majestade E, por ver as madamas, rebuçado No capote de berne; corre as ruas,


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Seguido, Doroteu, das suas guardas.

265– Depois de dar seus giros, vai sentar-se Em um dos toscos bancos, onde tomam Assento certas moças que puderam,

Não sei por que razão, cair-lhe em graça.

Não diz uma fineza às tais mocinhas, 270– Pois não é, Doroteu, porque não saiba,

Que ele tem muito estudo de Florinda, Da Roda da Fortuna e de outros livros, Que dão aos seus leitores grande massa.

É, sim, por sustentar a gravidade

275– Que, no público, pede o seu emprego. Mas, para lhes mostrar o quanto as preza, (Oh! força milagrosa do bestunto!)

Descobre esta feliz e nova traça: Vai sentar-se na ponta do banquinho,

280– Umas vezes suspende ao ar o corpo, Outras vezes carrega sobre a tábua

E, desta sorte, faz que as belas mocas, Movidas do balanço, dêem no vento Milhares e milhares de embigadas.

285– Chega-se, Doroteu, defronte dele Um máscara prendado: não estima

Os discretos conceitos, nem se agrada De ver executar vistosos passos.

Manda, sim, que arremede o nosso bispo, 290– Que arremede, também, o modo e o gesto

De um nosso general. São estes momos Os únicos que podem comovê-lo

No público a mostrar risonha cara. Oh ! alma de fidalgo, oh ! chefe digno 295– De vestir a libré de um vil lacaio! Cresceram, doce amigo, alguns foguetes Da noite em que o Senado fez no curro

De pólvora queimar barris imensos.

Em uma noite clara, qual o dia.

300– Ordena que os foguetes vão aos ares.

Vai se pôr no passeio, reclinado Sobre um monte de pedras; faz-lhe a corte

A velha poetisa, que repete Um soneto que fez a certos males.

305– Começam os vapores do ribeiro A formar, sobre a terra, nuvens densas Não se vêem, dos foguetes, os chuveiros Não se vêem as estrelas, nem as cobras Mas ele os deixas arder, e gasta a noite 310– Contente com ouvir alguns estalos E a bulha, que eles fazem, quando sobem.

Já chega, Doroteu, o novo dia

O dia em que se correm bois é vacas.


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Amigo Doroteu, é tempo, é tempo 315– De fazer-te excitar, no peito brando

Afetos de ternura, de ódio e raiva. No dia. Doroteu, em que se devem Correr os mansos touros, acontece

Morrer a casta esposa de um mulato, 320– Que a vida ganha por tocar rabeca; Dá-se parte do caso ao nosso chefe

Este, prezado amigo, não ordena Que outro músico vá em lugar dele A rabeca tocar no pronto carro;

325– Ordena que ele escolha ou a cadeia Ou ir tocar a doce rabequinha

Naquela mesma tarde, pela praia. Que é isto, Doroteu, estás confuso?

Duvidas que isto seja ou não verdade ?

330– Então que hás de fazer, quando me ouvires Contar desordens, que inda são mais calvas?

Indigno, indigno chefe, as leis sagradas Não querem se incomodem alguns dias Os parentes chegados dos defuntos, 335– Ainda para coisas necessárias; E tu, cruel, violentas um marido

A deixar sobre a terra o frio corpo Da sua terna esposa, sem que tenhas Ao menos uma honesta e justa causa 3

40– Bárbaro, tu praticas tudo junto Quanto obraram, no mundo, os maus tiranos!

Mezêncio ajuntava os corpos vivos Aos corpos já corruptos, e tu segues

Outros caminhos, que inda são mais novos; 345– Separas dos defuntos os que vivem, Não queres que os parentes sejam pios, Dando as últimas honras aos seus mortos!

Chega-se, finalmente, a tarde alegre Do festejo dos touros. Já no curro

350– Aparecem os dois formosos carros.

O primeiro derrama sobre a terra, Por bocas de serpentes escamosas,

Dois puros chorros de água; no segundo Se levantam, alegres, doces vozes,

355– Que vários instrumentos acompanham.

Aqui, entre os que tocam, se divisa Um triste rosto, que se alaga em pranto. Não sabes, Doroteu, quem este seja ?

Pois é, prezado amigo, aquele triste 360– Que tem a mulher morta sobre a cama.

O nosso grande chefe mal conhece Ao pobre do viúvo, compassivo Mete a mão no seu bolso e dele tira


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Um famoso cartucho, que lhe entrega.

365– O néscio rebequista, que a ação nota, Um pouco suaviza a sua mágoa,

E, enquanto não recebe o tal embrulho, Consigo assim discorre: "Que ditosa, Que ditosa violência, que socorre, 370– Em tal ocasião, a minha falta!

Já tenho com que pague ao meu vigário, Já tenho com que pague a cera, a cova, A mortalha, o caixão, e mais os padres." Assim o bom viúvo discorria,

370– Quando pega no embrulho, e mal o rasga, Encontra, Doroteu, confeitos grandes,

Encontra manuscriti e rebuçados.

Que é isso, Doroteu, de novo pasmas?

De novo desconfias da verdade ? 380– Amigo Doroteu, o nosso chefe Estudou medicina, e como alcança Que o chorar faz defluxo, providente Ministra rebuçados a quem chora, Para, com eles, acudir-lhe ao peito.

385– Principiam os touros, e se aumentam Do chefe as parvoíces. Manda à praça Sem regra, sem discurso e sem concerto.

Agora sai um touro levantado,

Que ao mau capinha, sem fugir, espera. 390– Acena-lhe o capinha, ele recua E atira com as mãos, ao ar, a terra.

Acena-lhe o capinha novamente, De novo raspa o chão e logo investe

Lá vai o mau capinha pelos ares.

395– Lá se estende na areia, e o bravo touro Lhe dá, com o focinho, um par de tombos Nem deixa de pisá-lo, enquanto o néscio

Não segue o meio de fingir-se morto. Meu esperto boizinho, em paz te fica,

400– Que o nosso chefe ordena te recolham Sem fazeres mais sorte, e te reserva Para ao curro saíres, quando forem

Do Senhor do Bonfim as grandes festas.

Agora sai um touro, que é prudente.

405– Se o capinha o procura, logo foge.

Os caretas lhe dão mil apupadas Um lhe pega no rabo, e o segura,

Outro intenta montá-lo, e o grande chefe O deixa passear por largo espaço.

410– Manda soltar-lhe os cães, manda meter-lhe As garrochas de fogo, que primeiro

Quem rompam do ligeiro bruto

Nos destros dedos do capinha estalam.


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Com estes maus festejos, que aborrecem, 415– Se gastam muitos dias. Já o povo Se cansa de assistir na triste praça

E, ao ver-se solitário, o bruto chefe Nos trata por incultos, mais ingratos. Soberbo e louco chefe, que proveito 420– Tiraste de gastar em frias festas Imenso cabedal, que o bom Senado Devia consumir em coisas santas ?

Suspiram pobres amas e padecem Crianças inocentes, e tu podes

425– Com rosto enxuto ver tamanhos males?

Embora! sacrifica ao próprio gosto As fortunas dos povos que governas; Virá dia em que mão robusta e santa Depois de castigar-nos, se condoa

430– E lance na fogueira as varas torpes.

Então rirão aqueles que choraram, Então talvez que chores, mas debalde. Que suspiros e prantos nada lucram

A quem os guarda para muito tarde.


CARTA 7ª


Há tempo, Doroteu, que não prossigo Do nosso Fanfarrão a longa história. Que não busque cobrí-los com tal capa,

Que inda se persuada que os mais homens 5– Lh'os ficam respeitando, como acertos .

Enquanto ao conhecer destes despejos, Pespega à lei a boa inteligência,

Que extensiva se chama. Sim, entende Que aonde o rei ordena que só haja

10– Recurso a ele mesmo, nos faculta Recurso aos generais, pois que estes fazem, Em tudo, e mais que em tudo, as suas vezes.

Ah! dize, meu amigo, se podia

Dar-lhe outra inteligência o mesmo Acúrsio . 15– Esse grande doutor, que já nos finge, Nos princípios de Roma, conhecida

A Divina Trindade, e que pondera Que do cão, que na palha está deitado,

A velha fúria, lei se diz canina.

20– Maldito, Doroteu, maldito seja O pai de Fanfarrão, que deu ao mundo,

Ao mundo literário tanta perda, Criando ao hábil filho numa corte,

Qual morgado, que habita em pobre aldeia!


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25– Ah ! se ele, doce amigo, assim discorre, Sabendo apenas ler redonda letra,

Que abismo não seria, se soubesse Verter o breviário em tosca prosa.

Se entrasse em Salamanca, e ali ouvisse 30–Explicar a questão daquela escrava Que foi manumitida em testamento,

Se três filhos parisse, e outras muitas Que os lentes nos ensinam, desta casta !

Enquanto, Doroteu, ao outro ponto 35– De julgar aos expulsos inocentes, Também razão lhe dou, porque, primeiro

Se informa com aqueles, que os réus dizem Que sabem, mais que todos, do seu caso. Nem é de presumir que estes lhe faltem 40– A verdade, jurando, pois têm alma.

Sê boa testemunha, meu paizinho A quem o vulgo chama pé-de-pato. Confessa se não foste o que juraste Que deste uma denúncia e fora falsa.

45– Indigno e bruto chefe, em que direito Entendes que se firmam tais processos ? Um réu, a quem condena um magistrado, Pode mostrar o injusto da sentença

Dando umas testemunhas que juraram 50– Sem haver citação da sua parte ?

Dando umas testemunhas inquiridas Por juiz que não pode perguntá-las ? E como, louco chefe, e como sabes Que a defesa convence, se nem viste

55– Os autos, em que a culpa está formada ?

Suponho que juraram novamente Aqueles mesmos que as denúncias deram:

O segundo e contrário juramento Não é que se reputa, sempre, o falso ?

60– E quem chega a comprar um grande chefe Não pode inda melhor comprar um negro ?

Amigo Doroteu, estes pretextos

São como as bigodeiras, que não podem Fazer se não conheçam as pessoas,

65– Que dançam nos teatros por dinheiro.

Não lucra, doce amigo, o nosso chefe Somente em revogar os extermínios Que fazem os ministros: ele mesmo Ordena se despejem os ricaços,

70– Ainda que estes vivam sem suspeita Do infame contrabando. Desta sorte

Os obriga, também, a vir à tenda Comprar, por grossas barras, seus despachos.

Todos largam, enfim, e todos entram


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75– No vedado distrito, sem que importe Haver ou não haver de crime indicio.

Só tu, meu Josefino, sô tu ficas No mandado desterro, por teimares Em não querer largar, ao vil Matúsio,

80– Uns tantos mil cruzados, que pedia. Só tu... porem, amigo, é tempo, é tempo De fechar esta carta, pois, ainda

Que a matéria, por nova, te deleite, A muita difusão também enfada.

85– Eu a pena deponho, e só te peço Que tomes a lição, que te apresenta O nosso Fanfarrão, no seu mulato.

Não desfaças, amigo, as ruças becas. Vai-as distribuindo aos teus lacaios,

90– Bem como faz o chefe às suas fardas, Que, enquanto estes as rompem, poupam As librés amarelas asseadas.


CARTA 8ª


Em que se trata da venda dos despachos e contratos


Os grandes, Doroteu, da nossa Espanha Têm diversas herdades: uma delas Dão trigo, dão centeio e dão cevada, As outras têm cascatas e pomares,

5– Com outras muitas peças, que só servem, Nos calmosos verões, de algum recreio.

Assim os generais da nossa Chile Têm diversas fazendas: numas passam As horas de descanso, as outras geram

10– Os milhos, os feijões e os úteis frutos Que podem sustentar as grandes casas.

As quintas, Doroteu, que mais lhes rendem, Abertas nunca são do torto arado.

Quer chova de contínuo, quer se gretem 15– As terras, ao rigor do sol intenso, Sempre geram mais frutos do que as outras,

No ano em que lhes corre, ao próprio, o tempo.

Estas quintas, amigo, não produzem Em certas estações, produzem sempre,

20– Que os nossos generais, tomando a foice, Vão fazer, nas searas, a colheita.

Produzem, que inda é mais, sem que os bons chefes Se cansem com amanhos, nem, ainda,

Com lançarem, nos sulcos, as sementes. 25– Agora dirás tu, de assombro cheio: "Que ditosas campinas! Dessa sorte


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Só pintam os Elíseos os poetas." Amigo Doroteu, és pouco esperto;

As fazendas que pinto não são dessas

30– Que têm, para as culturas, largos campos E virgens matarias, cujos troncos

Levantam, sobre as nuvens, grossos ramos.

Não são, não são fazendas onde paste O lanudo carneiro e a gorda vaca,

35– A vaca, que salpica as brandas ervas Com o leite encorpado, que lhe escorre

Das lisas tetas, que no chão lhe arrastam. Não são, enfim, herdades, onde as louras Zunidoras abelhas de mil castas,

40– Nos côncavos das árvores já velhas, Que bálsamos destilam, escondidas, Fabriquem rumas de gostosos favos.

Estas quintas são quintas só no nome, Pois são os dois contratos, que utilizam

45– Aos chefes, inda mais que ao próprio Estado.

Cada triênio, pois, os nossos chefes Levantam duas quintas ou beldades, E, quando o lavrador da terra inculta Despende o seu dinheiro, no princípio,

50– Fazendo levantar, de paus robustos, As casas de vivenda e, junto delas,

Em volta de um terreiro, as vis senzalas, Os nossos generais, pelo contrário,

Quando estas quintas fazem, logo embolsam 55– Uma grande porção de louras barras.

A primeira fazenda, que o bom chefe Ergueu nestas campinas, foi a grande

Herdade, que arrendou ao seu Marquésio.

As línguas depravadas espalharam

60– Que, para o tal Marquésio entrar de posse, Largara ao grande chefe, só de luvas,

Uns trinta mil cruzados; bagatela!

Os mesmos maldizentes acrescentam Que o pançudo Robério fora aquele

65– Que fez de corretor no tal contrato.

Amigo Doroteu, eu tremo e fujo

De encarregar minha alma. O bom Vergílio Talvez, talvez que aflito se revolva,

No meio da fogueira devorante,

70– Por dizer que adorara, ao pio Enéias, Uma casta rainha, cujos ossos

Estavam no sepulcro, já mirrados, Havia coisa de trezentos anos.

Eu não te afirmo, pois, que se fizesse 75– A venda vergonhosa; só te afirmo

Que o mundo assim o julga, e que esta fama


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Não deixa de firmar-se em bons indícios. As leis do nosso reino não consentem

Que os chefes dêem contratos, contra os votos 80– Dos retos deputados que organizam

A Junta de Fazenda, e o nosso chefe Mandou arrematar, ao seu Marquésio, O contrato maior, sem ter um voto Que favorável fosse aos seus projetos.

85– As mesmas santas leis jamais concedem Que possa arrematar-se algum contrato

Ao rico lançador, se houver na praça Um só competidor de mais abono;

E o nosso general mandou se desse 90– O ramo ao lançador, que apenas tinha

Uns vinte mil cruzados, em palavra, Deixando preterido outro sujeito

De muito mais abono, e a quem devia Um grosso cabedal o régio erário.

95– Mal acaba Marquésio o seu triênio, Outro novo triênio lhe arremata,

Sem que um membro da Junta em tal convenha; E, tendo o tal Marquésio, no contrato, Perdido grandes somas, lhe dispensa

100– Outras fianças dar à nova renda.

Amigo Doroteu, o nosso chefe, Que procura tirar conveniência

Dos pequenos negócios e despachos,

Daria este contrato ao bom Marquésio, 105– Este grande contrato, sem que houvesse,

De paga equivalente, ajuste expresso?

Amigo Doroteu, se não sou sábio,

Não sou, também, tão néscio, que nem saiba Das premissas tirar as conseqüências.

110– Agora dirás tu: "Se o patrimônio De Marquésio consiste, como afirmas, Em vinte mil cruzados, em palavra, Como, de luvas, deu ao chefe os trinta?" Amigo Doroteu, estou pilhado;

115– A palavra, que sai da boca fora, É corno a calhoada, que se atira, Que já não tem remédio; paciência. Eu as ervas arranco, e, desde agora,

Contigo falarei com mais cautela.

120– Mas que vejo? Tu ris-te? Acaso pensas Que me tens apanhado na verdade?

A mim nunca apanharam os capuchos, Quando, no raso assento, defendia Que a natureza não tolera o vácuo,

125– Que os cheiros são ocultas entidades, Com outras mil questões da mesma classe.


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E tu, meu doce amigo, pretendias Convencer-me em matéria em que dar posso

A todos, de partido a sota e o basto 130– Desiste, Doroteu, do louco intento, Faze uma grande cruz na lisa testa,

Dá figas ao demônio, que te atenta. Ora ouve a solução desse argumento: Bem que pingante seja quem remata 135– Este grande contrato, mercadeja Com perto de um milhão; por isso todos

lhe emprestam prontamente os seus dinheiros.

Os chefes, Doroteu, que só procuram De barras entulhar as fortes burras,

140– Desfrutam juntamente as mais fazendas, Que os seus antecessores levantaram.

Nem deixam descansar as férteis terras Enquanto não as põem em samambaias.

Aqui agora tens, meus Silverino, 145– O teu próprio lugar. Tu és honrado, E prezas, como eu prezo, a sã verdade;

Por isso nos confessas que tu ganhas A graça deste chefe, porque envias, Pela mão de Matúsio, seu agente

150– Em todos os trimestres, as mesadas.

Eu sei, meu Silverino, que quem vive Na nossa infeliz Chile, não te impugna Tão notória verdade. Porém deve Correr estranhos climas esta história,

155– E, como tu não vás, também, com ela, É justo que lhe ponha algumas provas.

A sábia lei do reino quer e manda

Que os nossos devedores não se prendam.

Responde agora tu, por que motivo

160– Concede o grande chefe que tu prendas A quantos miseráveis te deverem?

Porque, meu Silverino? Porque largas, Porque mandas presentes, mais dinheiro. As mesmas leis do reino também vedam 165– Que possa ser juiz a própria parte. Responde agora mais, por que princípio Consente o nosso chefe, que tu sejas

O mesmo que encorrente a quem não paga?

Porque, meu Silverino? Porque largas, 170– Porque mandas presentes, mais dinheiro.

Os sábios generais reprimir devem Do atrevido vassalo as insolências; Tu metes homens livres no teu tronco, Tu mandas castigá-los, como negros;

175– Tu zombas da justiça, tu a prendes; Tu passas portais ordenando


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Que com certas pessoas não se entenda.

Porque, por que razão o nosso chefe Consente que tu faças tanto insulto,

180– Sendo um touro, que parte ao leve aceno?

Porque, meu Silverino? Porque largas Porque mandas presentes, mais dinheiro.

A lei do teu contrato não faculta Que possas aplicar aos teus negócios

185– Os públicos dinheiros. Tu, com eles, Pagaste aos teus credores grandes somas!

Ordena a sábia Junta, que dês logo Da tua comissão estreita conta; O chefe não assina a portaria,

19– Não quer que se descubra a ladroeira, Porque te favorece, ainda à custa

Dos régios interesses, quando finge

Que os zela muito mais que as próprias rendas.

Porque, meu Silverino? Porque largas,

195– Porque mandas presentes, mais dinheiro.

Apenas apareces... Mas não posso Só contigo gastar papel e tempo.

Eu já te deixo em paz, roubando o mundo, E passo a relatar, ao caro amigo,

200– Os estranhos sucessos que ainda faltam; Nem todos lhe direi, pois são imensos.

Pretende, Doroteu, o nosso chefe Mostrar um grande zelo nas cobranças Do imenso cabedal que todo o povo,

205– Aos cofres do monarca, está devendo.

Envia bons soldados às comarcas,

E manda-lhe que cobrem, ou que metam, A quantos não pagarem, nas cadeias. Não quero, Doroteu, lembrar-me agora

210– Das leis do nosso augusto; estou cansado De confrontar os fatos deste chefe

Com as disposições do são direito; Por isso pintarei, prezado amigo, Somente a confusão e a grã desordem

215– Em que, a todos, nos pôs tão nova idéia.

Entraram, nas comarcas, os soldados, E entraram a gemer os tristes povos. Uns tiram os brinquinhos das orelhas Das filhas e mulheres; outros vendem

220– As escravas, já velhas, que os criaram, Por menos duas partes do seu preço.

Aquele que não tem cativo, ou jóia, Satisfaz com papéis, e o soldadinho Estas dívidas cobra, mais violento

225– Do que cobra a justiça uma parcela Que tem executivo aparelhado,


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Por sábia ordenação do nosso reino. Por mais que o devedor exclama e grita Que os créditos são falsos, ou que foram 230– Há muitos anos pagos, o ministro

Da severa cobrança a nada atende; Despreza estes embargos, bem que o triste Proteste de os provar incontinente.

Não se recebem só, prezado amigo, 235– Os créditos alheios, para embolso Das dividas fiscais. O soldadinho

Descobre um ramo, aqui, de bom comercio: Aquele que não quer propor demandas Promete-lhe a metade, ou mais, ainda,

240–Das somas que lhe entrega, e ele as cobra Fingindo que as tomou em pagamento

Das dividas do rei. Ainda passa

A mais esta desordem: faz penhoras E manda arrematar, ao pé da igreja,

245– As casas, os cativos, mais as roças.

Agora, Fanfarrão, agora falo Contigo, e só contigo. Por que causa Ordenas que se faça uma cobrança Tão rápida e tão forte contra aqueles

250– Que ao erário só devem tênues somas?

Não tens contratadores, que ao rei devem, De mil cruzados centos e mais centos? Uma só quinta parte, que estes dessem, Não matava, do erário, o grande empenho?

255– O pobre, porque é pobre, pague tudo, E o rico, porque é rico, vai pagando Sem soldados à porta, com sossego!

Não era menos torpe, e mais prudente Que os devedores todos se igualassem?

260– Que, sem haver respeito ao pobre ou rico, Metessem, no erário, um tanto certo,

À proporção das somas que devessem? Indigno, indigno chefe! Tu não buscas O público interesse. Tu só queres

265– Mostrar ao sábio augusto um falso zelo, Poupando, ao mesmo tempo, os devedores, Os grossos devedores, que repartem

Contigo os cabedais, que são do reino. Talvez, meu Doroteu, talvez que entendas 270– Que o nosso Fanfarrão estima e preza Os rendeiros que devem, por sistema:

Só para ver se os ricos desta terra, A força de favores animados,

Se esforçam a lançar nas régias rendas. 275– Amigo Doroteu, o nosso chefe, Se faz alguma coisa, é só movido


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Da loucura, ou do sórdido interesse.

Eu vou, prezado amigo, eu vou mostrar-te Esta santa verdade, com exemplos.

280– Morre um contratador e se nomeia, Para tratar dos bens, um seu parente, Que Ribério se chama. Não te posso Explicar o fervor com que Ribério Demanda os devedores, vence e cobra

285– Os cabedais dispersos desta herança.

Estava quase extinto o que devia A fazenda do rei; então o chefe Lhe ordena satisfaça todo o resto,

No peremptório termo que lhe assina.

290– Exclama o bom Ribério que não pode, Pois todo o cabedal, que tem cobrado, Ou está, nas demandas, consumido,

Ou tem entrado, já, no régio erário. E, para bem mostrar esta verdade,

295– Suplica ao grande chefe, que lhe escolha Um reto magistrado, que lhe tome,

Da sua comissão, estreita conta. Pois isto, Doroteu, não vale nada:

Sem contas lhe tomarem, manda o chefe 300– Que gema na cadeia, até que pague.

Já viste uma insolência semelhante?

Aos grandes devedores, não se assinam Os termos peremptórios para a paga,

Nem vão para as cadeias, bem que comam 305– A fazenda do rei e só Ribério, Sendo um procurador, que nada deve, Vai viver na prisão, por tempos largos?

Amigo Doroteu, o nosso chefe Patrocina aos velhacos, que lhe mandam,

310– Para que mais lhe mandem. Prende e vexa Aos justos, que entesouram suas barras,

Para ver se, oprimidos, se resolvem A seguir os caminhos dos que largam. Remata-se um contrato a um sujeito,

315– Que o pode bem pagar, por mais que perca Pretende um fiador deste contrato

Ir tratar, no Peru, do seu comercio; Vai licença pedir ao grande chefe,

E o chefe lha concede. Escuta agora; 320– Ouvirás uma ação, a mais indigna De quantas, por marotos, se fizeram: Apenas o tal homem sai da terra,

Se despede uma esquadra de soldados Que, mal com ele topa, lhe dá busca.

325– As cargas se revolvem, nem lhe escapam As grosseiras cangalhas, que se quebram.


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Não acham contrabandos, porem, sempre, Lhe tomam os dinheiros, que ele leva.

E o grande chefe ordena que se metam 330– No régio erário todos, inda aqueles, Que são de vários donos. Dize, amigo,

Já viste uma injustiça assim tão clara? Aos grossos devedores não se tomam

Os seus próprios dinheiros, bem que tenham 335– Comido os cabedais dos seus contratos E, ao simples fiador de um rematante,

Que nada, ainda, deve, e que tem muito, Vão-se, à força, tomar os seus dinheiros,

E os dinheiros, que é mais, de estranhas partes!

340– Agora, Doroteu, não tens que digas, Hás de, enfim, confessar, que o nosso chefe Somente não oprime a quem lhe larga.

Ora, ouve as circunstancias que inda acrescem E que inda afeiam mais o torpe caso:

345– Espalham as más línguas, que Matúsio Pedira ao tal sujeito lhe comprasse,

Uns finos guardanapos e toalhas; Que o fiador mesquinho lh’os trouxera E, vendo que Matúsio se esquecia,

350 – Lhe chegou a pedir, sem peio, a paga.

Que o chefe, ressentido desta injúria, Lhe mandou dar a busca por vingança, E que até ao presente inda não consta Que o preço da encomenda se pagasse.

355– Que mais pode fazer o seu lacaio?

Isto não é mais feio, que despir-se A preciosa capa ao grande Jove E mandar-se tirar ao sábio filho,

O famoso Esculápio, as barbas de ouro? 360– Amigo Doroteu, se acaso vires, Na corte, algum fidalgo pobre e roto, Dize-lhe que procure este governo;

Que, a não acreditar que há outra vida, Com fazer quatro mimos aos rendeiros,

365– Há de à pátria voltar, casquilho e gordo.


CARTA 9ª


Em que se contam as desordens que Fanfarrão obrou no governo das tropas.

Agora, Doroteu, agora estava Bamboando, na rede preguiçosa E tomando, na fina porcelana,

O mate saboroso, quando escuto

5– De grossa artilharia o rouco estrondo.

O sangue se congela, a casa treme,


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E pesada porção de estuque velho, A violência do abalo despegada

Da barriguda esteira, faz que eu perca 10– A tigela esmaltada, que era a coisa Que tinha, nesta casa, de algum preço.

Apenas torno em mim daquele susto, Me lembra ser o dia em que o bom chefe,

Aos seus auxiliares, lições dava

15– Da que Saxi chamou pequena guerra.

Amigo Doroteu, não sou tão néscio, Que os avisos de Jove não conheça. Pois não me deu a veia de poeta,

Nem me trouxe, por mares empolados, 20– A Chile, para que, gostoso e mole, Descanse o corpo na franjada rede.

Nasceu o sábio Homero entre os antigos, Para o nome cantar, do grego Aquiles; Para cantar, também, ao pio Enéias,

25– Teve o povo romano o seu Vergílio: Assim, para escrever os grande feitos Que o nosso Fanfarrão obrou em Chile, Entendo, Doroteu, que a Providência Lançou, na culta Espannha, o teu Critilo.

30– Ora pois, Doroteu, eu passo, eu passo A cumprir, respeitoso, os meus deveres

E, já que o meu herói, agora, adestra Esquadras belicosas, também, hoje, Tomarei por empresa só mostrar-te

35– Que ele fez, na milícia, grandes coisas.

Ha, nesta capital, um regimento De tropa regular, a quem se daga.

Tu sabes, Doroteu, que não há corpo Que, todo, de iguais membros se componha. 40– Das ordens mais austeras, que fizeram

Os santos penitentes patriarcas, Saíram, contra o trono rebelados, Os infames Clementes, e saíram

Contra o dogma, os Calvinos e os Luteros; 45– O mesmo Apostolado teve um Judas.

Se isto pois, Doroteu, assim sucede Nos corpos, que se formam de escolhidos, Que não sucederá, nos grandes corpos,

Aonde se recebam as pessoas

50– Que timbre fazem, dos seus próprios vícios?

O meio, Doroteu, o forte meio Que os chefes descobriram para terem Os corpos que governam, em sossego, Consiste em repartirem com mão reta

55– Os prêmios e os castigos, pois que poucos

Os delitos evitam, porque prezam


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A cândida virtude. Os mais dos homens Aos vícios fogem, porque as penas temem.

Ora ouve, Doroteu, o como o chefe

60– Os castigos reparte aos seus guerreiros.

Não há, não há distúrbio nesta terra, De que mão militar não seja autora. Chega, prezado amigo, a ousadia

De um indigno soldado a este excesso: 65– Aperta, na direita, o ferro agudo E penetra as paredes de palácio,

No meio de uma sala, aonde estavam As duas sentinelas, que defendem, Da casa do dossel, a nobre entrada.

70– Aqui, meu Doroteu, aqui se chega Ao camarada inerme e, pelas costas, O deixa quase morto, a punhaladas.

Que esperas tu, agora, que eu te diga? Que o militar conselho já se apressa?

75– Que já se liga, ao poste, o delinqüente? Que os olhos, com o lenço, já lhe cobrem?

Que a bala zunidora já lhe rompe O peito palpitante? Que suspira?

Que lhe cai, sobre os ombros, a cabeça? 80– Meu caro Doroteu, o nosso chefe É muito compassivo, sim, bem pode Oprimir os paisanos inocentes

Com pesadas cadeias, pode, ainda, Ver o sangue esguichar das rotas costas

85– À força dos zorragues, mas não pode Consentir que se dê, nos seus soldados, Por maiores insultos que cometam,

A pena inda mais leve: assim praticam Os famosos guerreiros, que nasceram

90– Para obrarem, no mundo, empresas grandes.

Ele, sim bem conhece que não há de Talar, com estas tropas, as campinas, Que o céu lhe não concede a esperança De entrar no templo augusto da Vitória, 95–Coberto de poeira e negro sangue. Mas sempre, Doroteu, as quer propicias, Pois, inda que não cinjam as espadas, Para cortar loureiros e carvalhos,

Que a testa lhes circulem, são aquelas 100– Que, prontas, executam seus mandados;

São aquelas, que infundem, nestes povos,

O medo e sujeição, com que toleram O verem em desprezo as leis sagradas.

Conhece, Doroteu, o próprio chefe, 105–Que vai passando a muito a liberdade Das fardas atrevidas, e, querendo


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A tais desordens pôr remédio e freio, Não manda que se cumpram as leis santas

Que, aos delitos, arbitram justas penas. 110– Manda, sim, um cartaz, aonde inova Que, todos os domingos, na parada,

Se leia o militar regulamento.

Indigno e bruto chefe, de que serve Que se leiam as leis, se os malfeitores,

115– Do que mandam, não vêem um só exemplo.

Tens visto, Doroteu, o como o chefe Os delitos castiga; agora sabe

Da sorte que reparte, aos bons, os prêmios.

Morreu um capitão, e subiu logo, 120– Ao posto devoluto, um bom tenente.

Porque foi, Doroteu? seria, acaso, Por ser tenente antigo? Ou porque tinha

Com honra militado? Não, amigo, Foi só porque largou três mil cruzados!

125– Ah! não mudes a cor de teu semblante, Prudente Maximino! Não, não mudes.

Que importa que comprasses a patente?

Se tu a merecias, a vileza

Da compra não te infama, sim ao chefe, 130– Que nunca faz justiça, sem que a venda.

Reforma um capitão e, no seu posto, Encaixa, sem vergonha, a Tomazine, Um moço, na milícia pouco esperto,

135– Que um ano inda não tinha de tenente. Em que guerras andou, em que campanhas?

Quais as feridas, que no corpo mostra?

Aonde, aonde estão as diligências, As grandes diligências arriscadas,

Que fez este mancebo, com que possa 140– Preferir aos antigos, destros cabos? Ah! sim, eu já me lembro! Tem serviços, Tem famosos serviços, na verdade:

A casa deste moço, bem que pobre, É a casa somente, aonde o chefe

145– Entra em ar de visita, bebe e folga. Aqui tens teu lugar, meu bom Lobésio; Tu foste a capitão e tu passaste