Ao posto de major em breves meses.
Quais são os teus serviços? Quais? Responde. 150– Mas não, não me respondas; eu conheço Que és tolo, que és brejeiro e, mais, que mandas As redradas pedrinhas. Estes dotes
Te fazem, no conceito do teu chefe, Um digno pai da pátria, herói do reino.
155– Também tu, ó Padela, te distingues Na corja dos marotos. Tu conservas
De capitão o cargo, mas tu logras O soldo de maior, e mais as honras. Que foi que te fez digno de subires
160– À privança do chefe? Ah! sim, eu vejo O teu merecimento! É coisa grande:
Ultrajas aos ministros e proteges A todos os tratantes, que exercitam
O furto e o contrabando. Tu, piedoso, 165 – Não queres ver perdido um só soldado; Se algum, se algum consente que se escalem
Os vedados lugares, tu escreves Ao sucessor honrado e lhe suplicas
Que parte não te dê, de um tal desmancho.
170– O teu fidalgo peito não se vence Da sórdida avareza. Tu repartes
Os luzentes seixinhos c’o teu chefe,
E, bem que o seu Matúsio, em nome dele, Os ache miudinhos, sempre servem.
175– Também tu, digno irmão, também cavalgas O posto de tenente, por dizeres
Que honrado comandante, na parada, Austero te corrige, por falares
Dos retos magistrados, sem respeito.
180– Que vezes a cachaça... Mas, amigo, Deixemos de falar na paga tropa
E vamos a falar do grande corpo Da gente auxiliar; aqui podemos Acabar de dizer o mais que falta.
185– Tinha este continente, levantados, De tropa auxiliar uns treze corpos.
O nosso chefe ainda não se farta: Alista o povo inteiro, e, dele, forma Inda mais de quarenta regimentos,
190– Mais faminto de ver galões e fardas Que Midas de trocar em ouro puro
As coisas em que punha o torpe dedo.
O coronel, valente, agarra tudo
Quanto tem, de varão, a forma e traje;
195– Nem lhe obsta, Doroteu, que os seus soldados Meninos inda sejam; que eles crescem,
E cresce, com os corpos, igualmente, O santo amor das armas. Muitos, muitos,
Quando vão para a igreja receberem 200– As águas salvadoras do batismo, Já vão vestidos com a curta farda.
Este mesmo costume tem, amigo, O pago regimento. Apenas nasce
Aos cabos algum filho, logo, à pressa, 205– Lhe assenta o chefe, de cadete, a praça
Venturoso costume, que promete
Produzir, de cordeiros, tigres bravos!
Aníbal, Doroteu, desde menino Com seu pai militou; talvez não fosse
210– O terror dos romanos, se passasse A tenra, inda imberbe mocidade,
Entre os moles prazeres de Cartago.
Contudo, Doroteu, o céu permita
Que guerras não tenhamos; pois, a termos 215– Algum acampamento, que constranja A saírem da praça os regimentos,
Há de haver bom trabalho em conduzir-se O rancho de crianças em jacases.
Há de, também, haver despesa grande 220– Em levar-se uma tropa de mulheres, Que dêem o peito a uns e a outros papa. Tu sabes, Doroteu, que as nossas tropas De infantaria são, porem montada;
Que as leis do nosso reino não consentem 225– Que estas montadas tropas se componham
De membros, que não tenham certas rendas, Com que possam manter os seus cavalos. Ora ouve, Doroteu, quais são as posses
Dos míseros paisanos, que se alistam 230– Nos fortes regimentos: quase todos Um sendeiro não têm, e muitos deles Gemeram nas prisões, por não poderem Ajeitar uma grossa e curta farda.
Eu topei Doroteu, por várias vezes, 235– Atrás de um regimento, os rapazinhos
Em veste e mais descalços: fina idéia Em que deram os cabos, para verem Se, à força de vergonha, se fardavam.
Eu sei, eu sei, amigo, que alguns destes,
240– Cansados de sofrerem mais opróbrios, Fizeram fardamentos dos produtos
Dos únicos escravos, que venderam E dos trastes alheios, que furtaram. Perguntarás, agora, doce amigo:
245– "Aonde estão os ricos taverneiros?
Aonde os mercadores, que têm lojas A que chamam de seco e de molhado?"
Aonde, Doroteu? Eu já t’o digo: Estão, estão, também, nos regimentos,
250– Mas trazem nas direitas, que conservam Inda lixosas peles, as bengalas.
Não rias, Doroteu, das nossas tropas. De que gente formou um corpo invicto O luso Viriato? Foi de moços
255– Criados, desde a infância, nas campanhas?
Não foi, meu Doroteu, foi de uns pastores,
De uns pastores incultos, que, animados Do esforço do seu chefe, conseguiram Vitórias singulares, contra um povo
260– Que ao mundo sujeitou, à força de armas.
Os homens, Doroteu, são todos fortes Em cima das muralhas, que defendem As chorosas mulheres e as fazendas, Os ternos filhos e os avós cansados. 265– A desordem, amigo, não consiste
Em formar esquadrões, mas, sim, no excesso.
Um reino bem regido não se forma Somente de soldados; tem de tudo: Tem milícia, lavoura, e tem comércio.
270– Se quantos forem ricos se adornarem Das golas e das bandas, não teremos
Um só depositário, nem os órfãos Terão também tutores, quando nisto
Interessa, igualmente, o bem do império. 275 – Carece a monarquia dez mil homens De tropa auxiliar? Não haja embora
De menos um soldado, mas os outros Vão à pátria servir nos mais empregos, Pois os corpos civis são como os nossos,
280– Que, tendo um membro forte e os outros débeis, Se devem, Doroteu, julgar enfermos.
É também, Doroteu, contra a policia Franquearem-se as portas, a que subam Aos distintos empregos, as pessoas 285– Que vêm de humildes troncos.
Os tendeiros, Mal se vêem capitães, são já fidalgos; Seus néscios descendentes já não querem Conservar as tavernas, que lhes deram
Os primeiros sapatos e os primeiros 290– Capotes com capuz de grosso pano.
Que império, Doroteu, que império pode Um povo sustentar, que só se forma
De nobres sem ofícios? Estes membros Não amam, como devem, as virtudes,
295– Seguem à rédea solta os torpes vícios.
Daqui saem os torpes malfeitores, Os vis alcoviteiros, os perjuros,
Os famosos ladroes; numa palavra, A tropa insultadora de vadios.
300– A este corpo imenso de milícia Concede Fanfarrão as regalias
Que as nossas leis não dão aos bons vassalos, Que chegam aos empregos mais honrosos, Em paga de proezas e serviços.
305– Não quer, não quer o chefe, que aos seus cabos Mandem citar os tristes acredores
Por ordem de justiça. Quais os grandes, Que não vêm a juízo sem licença
Do príncipe, a quem servem, nesta terra, 310– Sem licença do chefe, não se citam Os negros, os crioulos e os mulatos,
Mal vestem a fardinha e, muito menos, Mal cingem, na cintura, honrosa banda. Se alguém requer ao chefe que permita
315– Para isso faculdade, põe-lhe em cima De humilde petição, que o suplicado Componha ao suplicante o que lhe deve.
Se diz o suplicado ao suplicante Que não lhe deve nada, foi-se embora
320 – O sólido direito, que a policia Do chefe não consente que se ponha Aos seus oficiais, inda que sejam Velhacos e ladrões, no foro, um pleito.
Já viste regalia igual a esta?
325– A pátria, Doroteu, concede aos nobres, Que os postos exercitam, grossas rendas, Com que possam pagar, aos mais vassalos As coisas que lhes compram; não concede Ao mesmo general que vista e coma,
330– À custa do suor dos outros homens. E quando o rei não quer pagar a todos,
Com dinheiro contado, remunera Os serviços com graças, mas daquelas
Que deixam sempre intacto o jus alheio. 335–Não são somente isentos da justiça Os cabos valerosos. Onde habitam,
Se acolhem, Doroteu, os malfeitores, E, quais antigas casas de fidalgos, Ou famosos conventos, que, na porta,
340 – Têm as grossas cadeias, onde pegam Os míseros culpados, aqui todos
Se livram dos meirinhos, bem que sejam Indignos, torpes réus de magistrado.
Se os ousados meirinhos entrar querem 345– Nas casas destes cabos, a que chamam
Militares quartéis, os fortes donos Encaixam nas cabeças os casquetes, Apertam as correias, põem as bandas E, cingindo as torcidas, largas folhas. 350– Ultrajam com palavras a justiça,
Resistem, gritam, ferem, matam, prendem.
Os zelosos juízes punir querem A injúria da justiça: formam autos,
Procedem às devassas, pronunciam,
355– E mandam que estes nomes se descrevam Nos róis dos mais culpados. Mas, amigo,
De que serve fazer-se o que as leis mandam Na terra, que governa um bruto chefe,
Que não tem outra lei mais que a vontade?
360– O chefe onipotente logo envia Atrevidos soldados, que, chegando À casa do escrivão, os nomes riscam
Do rol dos delinqüentes e lhe arrancam Da fechada gaveta os próprios autos.
365– Ousado, indigno chefe, que governo , Que governos nos fazes? A milícia
Ergueu-se para guarda dos vassalos, E tu, e tu trabalhas, por que seja
A mesma que nos prive do sossego
370 – Que, próvidas, nos dão as leis sagradas.
Agora, Doroteu, talvez trabalhes Em achar o motivo por que o chefe
Concede tanto indulto aos seus soldados; Pois ele, Doroteu, não é o enigma,
375 – Que vem nos doces versos de Vergílio, De umas flores, que têm de reis os nomes
CARTA l0ª
Escritos sobre as folhas, e do sitio De que três braças só do céu se avista.
O chefe, Doroteu, só quer dinheiro, 375– E, dando aos militares regalias,
Podem os grandes postos, que lhes vende, Subir à proporção, também de preço.
Tu assim o conheces, Cata Preta, Pois deste mil oitavas por trazeres
385– Lavrado castão de ouro sobre a cana.
Tu também, capanema, assim discorres, Pois largaste seiscentas, por vestires De capitão maior vermelha farda.
Todos assim o julgam. Ah! só pensa 390– De diversa maneira, aquele néscio Que sofreu que Matúsio lhe rompesse
A passada patente à sua vista, Por não largar, de luvas, os trezentos.
Dize-me, Doroteu, um chefe sábio 395– Levanta nas conquistas umas tropas,
Com que não pode a força do distante Conquistador império? Infunde, inspira Nos cabos tanto orgulho, que se atrevam A resistir aos mesmos magistrados,
400 – Que a pessoa do augusto representam?
Maldito, Doroteu, maldito seja Um bruto, que só quer a todo custo,
Entesourar o sórdido dinheiro.
Em que se contam as desordens maiores que Fanfarrão fez no seu governo.
Quis, amigo, compor sentidos versos A uma longa ausência e, para encher-me
De ternas expressões, de imagens tristes, A banca fui sentar-me, com projeto
5– De ler, primeiramente, algumas obras No meu já roto, destroncado Ovídio.
Abri-o nas saudosas alegrias E, quando me embebia na leitura
Dos casos lastimosos, que ele pinta,
10– Na passagem que fez ao Ponto Euxínio Encontro aqueles versos que descrevem
As ondas decumanas; de repente Me sobe ao pensamento que estas eram
Do nosso Fanfarrão imagem viva.
15– Os mares, Doroteu, jamais descansam; Agitam sem cessar as verdes águas,
E, depois que levantam ondas nove, Com menos fortidão, despedem outra, Que corre mais ligeira e que se quebra
20– Nos musgosos rochedos com mais força.
Assim o nosso chefe não descansa De fazer, Doroteu, no seu governo,
Asneiras sobre asneiras e, entre as muitas, Que menos violentas nos parecem,
25– Pratica outras que excedem muito e muito As raias dos humanos desconcertos.
Perdoa, minha Nise, que eu desista Do intento começado. Tu mil vezes
Nos meus olhos já leste os meus afetos, 30– Não careces de os ler nos meus escritos.
Perdoa, pois, que eu gaste as breves horas A contar as asneiras desumanas
Do nosso Fanfarrão ao caro amigo. E tu, meu Doroteu, antes que leias
35– O que vou a contar-te, jurar deves Pelos olhos da tua amada esposa,
Por seu louro cabelo, e pelo dia Em que viste, na sua alegre boca, O primeiro sorriso, que não hás de
40– Duvidar do que leres, bem que sejam Desordens que pareçam impossíveis.
A Junta, Doroteu, a quem pertence Evitar contrabandos, prende, envia A sabia Relação do Continente
45– A trinta delinqüentes, para serem
Castigados conforme os seus delitos. Entende o nosso chefe que esta Junta Não devia mandar aos malfeitores Sem sua autoridade e, dela, toma
50– O mais estranho, bárbaro despique. Manda embargar aos presos na cadeia Do nosso Santiago, e manda ao pobre Do condutor meirinho que os sustente,
Assistindo, também, aos que enfermarem, 55– Com médicos, remédios e galinhas.
Acaba-se o dinheiro que lhe deram Para fazer os gastos do caminho; Recorre, neste aperto, ao bruto chefe,
Expõe-lhe que não tem com que alimente 60– Ao menos a si próprio; pede e roga Que o deixe recolher à pátria terra,
Para nela exercer seu pobre oficio.
Tão terna rogativa não merece
Do chefe a compaixão; antes lhe ordena 65–Que assista, como dantes, aos culpados De todo o necessário, na enxovia;
Que, a faltar-lhe o dinheiro para os gastos, Ou que o peça, ou que o furte. Caro amigo, Da boca de uma Fúria sairia
70– Mais dura decisão? Por que motivo Deve um pobre meirinho dar sustento
A mais de trinta presos? São seus filhos?
E, ainda a serem filhos, um pai justo, Que fazenda não tem, vive obrigado 75– A sustentar infames malfeitores, Por meio de culpáveis latrocínios?
Suponho, Doroteu, suponho ainda Que a Junta fez excesso na remessa Dos presos, sem licença. Neste caso
80– Merece o condutor algum castigo?
Ele fez outra coisa que não fosse Cumprir o que mandaram seus maiores?
Podia repugnar-lhes, sem delito? Amigo Doroteu, o nosso chefe
85– É qual mulher ciosa, que não pode Vingar no vário amante os duros zelos,
E vai desafogar as suas iras, Bebendo o sangue de inocentes filhos. Depois de se passarem alguns anos,
90– Depois que o bom meirinho já não tinha Vestido que vendesse, nem pessoa
Que um chavo lhe fiasse, o bruto chefe Passa a fazer um novo despotismo: Ordena que os culpados sejam soltos, 95–E, dizem, lhes mandava vinte oitavas,
Para os gastos fazerem da fugida. Até aqui pagou o seu desgosto O pobre condutor; agora o paga
A triste, aflita pátria, pois lhe aumenta, 100– Dos torpes malfeitores, a quadrilha.
É esta, Doroteu, a sua gente; Trafica em coisa santa, no comércio
Da compra e mais da venda de seixinhos, Negócio avantajado e mais seguro
105–Que o meter entre os fardos das baetas, Os pesados galões e as drogas finas.
Preza o bravo leão aos leões bravos, A fraca pomba preza as pombas fracas,
E o homem, apesar do raciocínio
110– Que a verdade lhe mostra, estima aos homens Que têm iguais paixões e os mesmos vícios.
Avisam ao bom chefe que um ministro Queria que os soldados lhe mostrassem As ordens, com que entravam a fazerem
115– Prisões no seu distrito. Investe o bruto Qual touro levantado, a quem acenam, C’os vermelhos droguetes, os capinhas; Escreve-lhe uma carta, em que lhe ordena Lhe dê logo as razoes, em que se funda.
120– Inda pede as razões, e já lhe estranha O néscio proceder. Aqui não para
Tão rápida desordem: manda um corpo De ousados militares, que conduzam, Ao magistrado, a carta, e lhes ordena
125– Que fiquem nesta vila sustentados A custa, Doroteu, do aflito povo.
Não se concede ao pobre que sustente, Em casa, o seu soldado; manda o chefe Que a cada um se dê, em cada um dia. 130– Para sustento, meia oitava de ouro, Fora milho e capim para o cavalo;
E não entrando aqui o régio soldo. Que santo proceder! Um Deus irado, Se houvessem sete justos, perdoava 13– Os imensos delitos de Sodoma, E o nosso grande chefe, pelo crime, Pelo sonhado crime de um só homem, Castiga, como réu de majestade, Formado de inocentes, todo um povo.
140– Faz penhora Macedo em certas barras Que, a um seu devedor, devia Mévio; Recorre ao magistrado Silverino,
Pedindo que mandasse que o dinheiro A juízo viesse, pois queria
145– Sobre ele disputar a preferência,
Na forma que concede a lei do reino. Cita-se ao triste Mévio e deposita As barras em juízo, prontamente. Conhece Silverino que Macedo
150– Para a vitória tem melhor direito, Não quer seguir a causa na presença De um reto magistrado, que profere,
Na forma que as leis mandam, as sentenças.
Recorre ao general, e o bruto chefe
155– Decide desta sorte o longo pleito: Habita nesta terra um homem rico,
Que tem de Albino o nome, e, dizem, trata A Mévio, devedor,– por seu sobrinho.
Manda pois, Doroteu, o grande chefe 160– Que Albino se recolha na cadeia E more com os negros na enxovia, Enquanto não pagar a Silverino
Outra tanta quantia, quanta Mévio Depositou, doloso, por que houvesse 165– Entre os dois acredores um litígio.
Eis aqui, Doroteu, o que é ciência!
As nossas leis não querem que o pai solva O calote que fez o próprio filho
E quer um general que Albino pague 170– Da sórdida masmorra, novamente, A soma que pagou o bom sobrinho!
Aonde existe o dolo? A lei não manda Que todo o que temer que alguém lhe peça
Segundo pagamento, se segure 175– Metendo no depósito o que deve?
Pois se isto nos faculta o são direito, Que delito comete aquele triste Que a dívida em juízo deposita,
Quando o sábio juiz assim o manda, 180– Porque o mesmo credor assim o pede?
E se Mévio fez dolo, por que causa Há de Albino pagar a culpa dele?
Porque lhe aconselhou que não pagasse Outra tanta quantia a Silverino?
185– Aconselhar conforme as leis do reino É culpa que mereça um tal castigo?
E pode ser castigo regulado Pagar o conselheiro aquela soma
Que o mesmo aconselhado não devia? 190– Não é isto furtar? Não é violência? Ah! pobre, ah! pobre povo, a quem governa Um bruto general, que ao céu não teme, Nem tem o menor pejo de lhe verem
Tão indignas ações os outros homens!
195– Há neste regimento um moço Adônis,
Amores de uma escrava, cuja dona Depois de cativar a muitos peitos, . .
Ao nosso herói atou, também, ao carro D os seus cruéis triunfos. Cego nume!
200– Qual é, qual é dos homens que não honra,
Com puros sacrifícios, teus altares?
Tu vences os pequenos, mais os grandes, Tu vences os estultos, mais os sábios,
Tu, vences, que inda é mais, as mesmas feras 205– E, bem que cinja o grosso peito d'aço, Não pode resistir às tuas setas
O duro coração do próprio Marte. Intenta este soldado que o ministro Lhe remate umas casas e consegue
210– Um despacho do chefe, em que decreta Que nelas ninguém lance: coisa estranha Que, entendo, nunca viu nenhuma idade!
O reto magistrado, que respeita,
Mais que ao chefe, as leis do seu monarca, 215– Ordena que o porteiro, incontinente, As pretendidas casas meta a lanço.
Honrado cidadão o preço cobre; O porteiro passeia pela rua, Repete, em alta voz, o lanço novo
220– E prossegue a falar, assim dizendo: "Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três, Dou-lhe outra mais pequena, afronta faço, Se ninguém mais me oferece, arremato". Ao lanço do Brandúsio ninguém chega, 225– Informado o juiz, ordena e manda Que o prédio se remate; então se chega O porteiro risonho ao licitante,
E lhe diz – "que lhe faça bom proveito" Ao mesmo tempo que lhe entrega o ramo. 230– Parte logo o soldado e conta ao chefe
O sucesso da praça. O bruto monstro, Julgando profanado o seu respeito, Manda lançar no pobre licitante
Um pesado grilhão e manda pô-lo, 235– Ajoujado com um despido negro, A trabalhar nas obras da cadeia.
O preso injuriado desfalece
E o chefe desumano desce à rua Para que possa, de mais perto, vê-lo.
240– Sucede a um desmaio outro desmaio; O negro companheiro, então, lhe acode, Nos braços compassivos o sustenta;
Porem o velho chefe, que deseja O vê-lo, ali, morrer, por um soldado
245– Manda ao negro dizer que ao preso deixe
E cuide em prosseguir no seu trabalho. Os mesmos desumanos, que rodeiam Tão bruto general, aqueles mesmos Que, alegres, executam seus mandados, 250– Apenas escutaram tal preceito, Um pouco emudeceram e tiveram
Os rostos tristes, muito tempo, baixos. Os outros, Doroteu, deram suspiros E, bem que forcejaram, não puderam
255– Fazer que os olhos não se enchessem d'água.
Eu creio, Doroteu, que tu já leste Que um César dos romanos pretendera
Vestir, ao seu cavalo, a nobre toga Dos velhos senadores. Esta história
260– Pode servir de fábula, que mostre Que muitos homens, mais que as feras brutos,
Na verdade conseguem grandes honras!
Mas ah! prezado amigo, que ditosa Não fora a nossa Chile se, antes, visse
265– Adornado um cavalo com insígnias De general supremo, do que ver-se Obrigada a dobrar os seus joelhos
Na presença de um chefe, a quem os deuses Somente deram a figura de homem!
270– Então, prezado amigo, o néscio povo Com fitas lhe enfeitara as negras clinas, Ornara a estrebaria com tapetes,
Com formosas pinturas, ricos panos, Bordados reposteiros e cortinas;
275– Um dos grandes da terra lhe levara Licor, para beber, em baldes d'ouro, Outro lhe dera o milho em ricas salvas; Mas sempre, Doroteu, aqueles néscios Que ao bruto respeitassem, poderiam 280– Servi-lo acautelados e de sorte Que dar-lhes não pudesse um leve coice.
Eis aqui, Doroteu, o que nos nega Uma heróica virtude. Um louco chefe O poder exercita do monarca
285– E os súditos não devem nem fugir-lhe Nem tirar-lhe da mão a injusta espada.
Mas, caro Doroteu, um chefe destes Só vem para castigo de pecados.
Os deuses não carecem de mandarem 290– Flagelos esquisitos; quasi sempre Nos punem com as coisas ordinárias.
O mundo inda não viu senão um corpo Em branco sal mudado, e só no Egito Fez novas penas de Moisés a vara.
295– Perguntarás agora que torpezas
Comete a nossa Chile, que mereça Tão estranho flagelo? Não há homem Que viva isento de delitos graves,
E, aonde se amontoam os viventes 300– Em cidades ou vilas, ai crescem Os crimes e as desordens, aos milhares. Talvez prezado amigo, que nós, hoje, Sintamos os castigos dos insultos
Que nossos pais fizeram; estes campos 305– Estão cobertos de insepultos ossos De inumeráveis homens que mataram.
Aqui ou europeus se divertiam Em andarem à caça dos gentios
Como à caça das feras, pelos matos.
310– Havia tal que dava, aos seus cachorros, Por diário sustento, humana carne, Querendo desculpar tão grave culpa
Com dizer que os gentios, bem que tinham A nossa semelhança, enquanto aos corpos,
315– Não eram como nós, enquanto às almas.
Que muito, pois, que Deus levante o braco E puna os descendentes de uns tiranos Que, sem razão alguma e por capricho, Espalharam na terra tanto sangue.
CARTA 11ª
Em que se contam as brejeirices de Fanfarrão.
No meio desta terra há uma ponte, Em cujos dois extremos se levantam De dois grossos rendeiros as moradas;
E, apenas, Doroteu, o sol declina 5– A descansar de Tétis no regaço,
Neste agradável sitio vão sentar-se Os principais marotos e, com eles, A brejeira família de palácio.
Aqui, meu bom amigo, aqui se passam 10– As horas em conversa deleitosa: Um conta que o ministro, à meia noite, Entrara no quintal de certa dama;
Diz outro que se expôs uma criança
A porta de Florício, e já lhe assina
15– O pai e mais a mãe; aquele aumenta A bulha que Dirceu com Lauro teve
Por ciúmes cruéis', da sua amásia; Este chama a Simplicio caloteiro
E mofa, ao mesmo tempo, de Frondélio, 20– Que o seu dinheiro guarda. Enfim, amigo,
Aqui, aqui de tudo se murmura. Só se livra da língua venenosa
O que contrata em vendas de despachos E quem se alegra ao ver que a sua moça
25– Ajunta, pela prenda, um par de oitavas: Que os membros do congresso são prudentes E não querem que alguns dos companheiros Tomem esta conversa em ar de chasco.
Amigo Doroteu, ah! neste sitio
30– Eu não me dilatara um breve instante Em dia de trovões, bem que estivesse Plantado todo de loureiros machos!
Por este sítio, pois, passei há pouco Cuidando que, por ser mui cedo ainda, 35– Não toparia a corria dos marotos.
Mas, apenas a vi, fiquei tremendo Qual fraco passageiro, quando avista, Em deserto lugar, pintadas onças.
Contudo, Doroteu, criei esforço 40– E fui atravessando pelo meio,
Rezando sempre o credo e, por cautela, Fazendo muitas cruzes sobre o peito.
Apenas me salvei daquele risco, Um suspiro soltei, que encheu os ares,
45– E, voltando o semblante para o sitio, Em que os tais mariolas se assentavam, Meneando a cabeça um par de vezes
E soltando um sorriso, em ar de mofa, Dentro do meu discurso, assim lhes falo:
50– "Vocês, meus mariolas, meus tratantes, Estão contando histórias das pessoas
De quem não são afetos, por que as levem, Aos ouvidos do chefe, os seus lacaios; Pois eu também já vou contar verdades,
55– Em que possam falar os homens sérios Inda daqui a mais de um cento de anos.
Recolhi-me à choupana e, de repente, Sem tirar a gravata do pescoço,
Entrei a pôr em limpo esta cartinha,
60– Que já, pelo caminho, vim compondo.
Entendo, Doroteu, que as nossas almas Não são todas iguais; que o grande Jove Fez umas de matéria muito pura,
Fez outras de matéria mais grosseira, 65– Por não perder as borras que ficaram.
Entendo, ainda mais, que o dispenseiro, Quando lhe vão pedir algumas almas,
Vai dando aquelas que primeiro encontra. Por isto, às vezes, nascem os mochilas 70– Com brios de fidalgos, outras vezes
Os nobres com espíritos humildes, Só dignos de animarem vis Lacaios. O nosso Fanfarrão, prezado amigo, Vos dá mui boa prova: não se nega
75– Que tenha ilustre sangue, mas não dizem, Com seu ilustre sangue, as suas obras.
Apenas, Doroteu, a noite chega, Ninguém andar já pode, sem cautela, Nos sujos corredores de palácio,
80– Uns batem com os peitos noutros peitos; Outros quebram as testas noutras testas;
Qual leva um encontrão, que o vira em roda; E qual, por defender a cara, fura,
Com os dedos que estende, incautos olhos. 85– Aqui se quebra a porta e ninguém fala; Ali range a couceira e soa a chave;
Este anda de mansinho, aquele corre;
Um grita que o pisaram, outro inquire "Quem é? " a um vulto, que lhe não responde. 90– Não temas, Doroteu, que não é nada, Não são ladrões que ofendam, são donzelas
Que buscam aos devotos, que costumam Fazer, de quando em quando, a sua esmola. Chegam-se, enfim, as horas, em que o sono 95– Estende, na cidade, as negras asas, Em cima dos viventes espremendo
Viçosas dormideiras. Tudo fica Em profundo silêncio, só a casa,
A casa aonde habita o grande chefe.
100– Parece, Doroteu, que vem abaixo.
Fingindo a moça que levanta a saia E voando na ponta dos dedinhos,
Prega no machacaz, de quem mais gosta, A lasciva embigada, abrindo os braços;
105– Então o machacaz, mexendo a bunda, Pondo uma mão na testa, outra na ilharga, Ou dando alguns estalos com os dedos, Seguindo das violas o compasso,
Lhe diz–"eu pago, eu pago"–e, de repente, 110– Sobre a torpe michela atira o salto.
Ó dança venturosa! Tu entravas
Nas humildes choupanas, onde as negras, Aonde as vis mulatas, apertando
Por baixo do bandulho a larga cinta, 115– Te honravam, c'os marotos e brejeiros,
Batendo sobre o chão o pé descalço.
Agora já consegues ter entrada Nas casas mais honestas e palácios! Ah! tu, famoso chefe, dás exemplo. 120– Tu já, tu já batucas, escondido
Debaixo dos teus tetos, com a moca Que furtou, ao senhor o teu Ribério! Tu também já batucas sobre a sala Da formosa comadre, quando o pede
125– A borracha função do santo entrudo.
Ah! que isto, sendo pouco, é muito!
Que os exemplos dos chefes logo correm E corre muito mais, quando fomentam Aqueles vícios, a que os gênios puxam. 130– O tempo, Doroteu, voando foge
E nunca os de palácio imaginaram Que tão veloz fugia, como agora. Acaba-se a função, e chega o dia; vem abrir as janelas um criado,
135– E o chefe lhe pergunta que algazarra Fizeram os mais servos toda a noite,
Que o não deixou dormir um breve instante.
O criado, que sabe que o bom chefe Só quer que lhe confessem a verdade, 140– O sucesso lhe conta, desta sorte:
“Fizemos esta noite um tal batuque! Na ceia todos nós nos alegrávamos, Entrou nele a mulher do teu lacaio;
Um só, senhor, não houve que, lascivo, 145 – Com ela não brincasse; todos eles, De bêbedos que estavam, não puderam O intento conseguir; só eu, mais forte...” Apenas isto diz o vil criado,
O chefe as costas vira e lhe responde, 150– Soltando um grande riso: “fora, fracos!”
Já disse, Doroteu, que as mocetonas Só entram em palácio quando estende A noite, sobre a terra, a negra capa; Que a formosa virtude da cautela
15– Até parece bem, naquele mesmo A quem a profissão lhe não exige Que viva recatado, como vivem
As moças, que inda querem ser donzelas.
Agora, Doroteu, julgar já podes 160– Que saem de palácio muito cedo.
Assim é, Doroteu; as donzelinhas, Pela porta travessa, vão saindo, Mal tocam as garridas à primeira. Mas a bela Rosinha fica e dorme,
165– Nos braços de Matúsio, a madrugada; Só sai de dia claro, e o grande chefe
Lhe atira uma pedrinha da janela, Só para que lhe dê um ar de graça! Que grande estimação, Rosica bela!
170– Aqui se mostra bem, que as outras mocas
Não trazem, como trazes, lucro à casa. Não há, prezado amigo, quem não queira Mostrar-se liberal com sua dama.
Para dar-lhe o vestido, mais a capa, 175– O manto, a saia, a meia, a fita, o pente.
Tira o pobre de si e, destro, furta O peralta rapaz ao pai jarreta.
Eu mesmo, Doroteu, que fui dos santos Que em Salamanca andaram, umas vezes 180– Doenças afetava, outras fingia Necessitar de livros, ou de um traste,
Para mandar de mimo a certo lente.
Maldita sejas, tu harpia Olaia, Que, enquanto não abria a minha bolsa,
185– Não mostravas, também, alegre, os dentes!
Esta paixão, amigo, que nos vence, Nos próprios animais também se observa:
Esgravatam os galos sobre a terra E, mal topam o grão ou a migalha,
190– Contentes cacarejam, porque a moça Se vá utilizar do seu trabalho.
O nosso ilustre chefe, que se julga De mui diversa massa do que somos, Neste ponto, também, também conhece
195– Que está sujeito à miséria d’homem.
Nas obras, doce amigo, da cadeia,
Trabalham jornaleiros por salário. Aqueles que carregam cal e pedra, Só ganham, por semana, meia oitava;
200– Aqueles que trabalham de canteiro, Ao menos ganham, cada dia. um quarto. Tem, pois, certa mocinha, quatro negros Que apenas são serventes, mas o chefe Ordena que, na féria, se lhes pague
205– A quarto os seus jornais, e creio, amigo, Que ainda não consente se descontem
Os muitos dias que nas obras faltam. As casas onde mora esta madama Ainda não estavam acabadas;
210– Agora já de longe a cal alveja, Quem entra dentro delas já recreia Os olhos nas pinturas das paredes E teto apainelado, a quem, um dia, Supria, Doroteu, a grossa esteira.
215– Não quis o nosso herói chamasse a moça, Para mestre das obras, um pedreiro, Entregou o conserto ao grão-tenente,
Que o fez baratinho, c’o massame Que pertencia às obras da cadeia.
220– Entende Fanfarrão que não devia
Deixar ao desamparo a sua dama; Que a lei da Igreja pede que amparemos As que, por nossa culpa, se perderam,
E a lei da fidalguia, que professa
225– O nosso chefe, manda que ele ampare As mesmas, que na fama já têm nota, Contanto que isto seja à custa alheia.
Chama, pois, o bom chefe a um peralta, Que era cabo de esquadra, e lhe comete 230– A glória de casar com uma dama Que, se não fez descer dos céus à terra Ao Supremo Tonante, fez, contudo, Humanizar um chefe, que descende
Da mais distinta, mais soberba raça. 235– Que súbita alegria banha o rosto Deste inocente cabo! Nos seus olhos As lágrimas rebentam, e os seus beiços Formar não podem uma só palavra.
A dita, Doroteu, é muito grande.
240– Que fortuna não é casar um pobre Com a rica viúva de um fidalgo?
Chamar ao fidalguinho, que ele deixa,
Ou enteado ou filho? Aparentar-se Com todos os magnates desta terra
245– Em grau tão conhecido e tão chegado?
Esta grande ventura, doce amigo, Para todos não é. O negro demo A quadra para prêmio dos serviços
Dos chefes principais dos seus bandalhos.
250– Mas ah! prezado amigo, que o bom chefe Já manda aparelhar as magras bestas, Que têm de conduzir-lhe o pobre fato
Que trouxe lá da corte, e se o casquilho Não chega a receber a cara esposa
255– Primeiro que ele, no governo, morra, Bem pode ser. amigo, se arrependa
E que, depois de ter cingido a banda
E empunhado o bastão, lhe pregue o mono.
Faltaram às promessas outros homens, 260– ue, de honrados, nos deram muitas provas.
Como faltar não pode ao seu ajuste Um fraco coração, uma alma indigna
Que, por tão baixo preço, a honra vende?
Cautela e mais cautela; sim, o chefe 265– Não saberá mandar armadas tropas,
Nem saberá reger as cultas gentes, Mas, para o não lograrem, sabe, astuto, Dar todas as cadimas providências.
Escreve ao velho bispo e lhe suplica
270– Que em todos os três banhos o dispense;
Não expende razão que justa seja, Porem o velho bispo tem bom gênio E em todos os proclamas o dispensa;
Que ele tem grandes letras e bem sabe 275– Que os cânones da igreja não pensaram
Da espécie singular de quando um chefe Quer, à pressa, casar a sua amásia.
Ah! se ele estas desordens não fizera, Não daria motivo a ser cantado
280– Por sábia, oculta musa, em um poema!
Agora inquirirás, prezado amigo, Se é este sábio bispo aquele mesmo, Que o bruto Fanfarrão, em certo dia, Meteu na sua sege, ao lado esquerdo?
285– É este, sim. senhor. o mesmo bispo, A quem o nosso chefe desalmado, Enquanto governou a nossa Chile,
Já dentro de palácio e já na rua, T ratou como quem trata um vil podengo.
290– De novo inquirirás: "Então um chefe, Que trata, dessa sorte, ao seu prelado, Atreve-se a pedir-lhe que lhe faça Dispensa em uma lei, a benefício
Da sua torpe amásia?" Eu, doce amigo, 295– Ainda duvidara, se pedira
Me desse absolvição dos meus pecados, Ao ver-me para dar, a Deus, minha alma.
O mesmo, Doroteu, também fizeras; Mas tu, prezado amigo, não conheces
300– O sistema que tem tão vil canalha.
Uma mui grande parte destes chefes Assenta em procurar seu interesse Por todos os caminhos, e acredita
Que o brio e pundonor, que nós prezamos, 305– São umas vãs fantasmas, que só devem Honrar de simples voz aqueles homens,
Que vêm de uma distinta e velha raca. Para estes a nobreza está nos termos Do sórdido monturo em que se deita
310– Quanta imundície têm as velhas casas.
Ditoso de quem vive, neste mundo, No estado de ver rir os outros homens Das suas vis ações, sem que lhe suba Um vermelho sinal de pejo à cara!
315– Mas ah! meu doce amigo, quanto, quanto Se enganam estes monstros, que a nobreza
É um vestido branco, aonde, logo, Aos olhos aparece a leve mancha! Já chega, Doroteu, o alegre dia. 320– O dia venturoso do noivado.
Entra, no santo templo, a linda esposa, Coberta toda de umas novas graças. Os seus louros cabelos não flutuam, Levados pelo vento, a toda parte;
325– Em tranças se dividem e se prendem No pente, a quem esconde um branco laço; Nos cabelos da frente resplandecem
Das pedras de mais custo, os fogos vários; A sua testa iguala à pura neve
330– E são da cor da rosa as suas faces; São pérolas mimosas os seus dentes, As gengivas rubis e os grossos beiços Estão cobertos dos cheirosos cravos.
Talvez, talvez não fosse tão formosa 335– A mesma, que obrigou ao forte
Aquiles A que, terno, vestisse a mole saia.
Neste sagrado templo não se adora A imagem do Himeneu; aqui os noivos,
Para prova da fé que, eterna, dura, 340– Não recebem na mão acesa tocha.
Ministro do senhor é quem os prende, Cobrindo as castas mãos, com que se enlaçam.
Co’a branca ponta da pendente estola.
Aqui lascivas graças, nus amores
345– Não cercam os consortes, nem meneiam, Em torno dos altares e das piras,
Os vistosos festões de lindas flores. Aqui, aqui só entram as virtudes, A cândida modéstia, a inocência,
350– A santa honestidade e a vergonha. São estas e não outras as que correm
A receber, à porta do edifício,
Os sinceros amantes; sim, são estas, São estas e não outras, as que espalham,
355– Debaixo dos seus pés, cheirosas folhas E as que fazem queimar, sobre os braseiros, O incenso devoto e os mais aromas.
Recebem estes gênios aos dois noivos E, ao ministro do altar, os apresentam. 360– Ah! formosa Marília, agora, agora Se aumentam tuas graças, pois te aviva A cor da linda face um novo pejo!
Com que custo não dás a mão nevada Ao teu amado Adônis, que a recebe
365– Como quem lucra nela o seu tesouro!
Já não veste Jelônio a grossa farda Com divisas de lã e, sobre a testa, Não põe a barretina, que enfeita
Com armas e botões de grosso estanho. 370– Já não cinge as correias amarelas,
Nem carrega, na cinta, o peso enorme Dos férreos copos da comprida espada.
Jelônio se mudou, Jelônio é outro. Já brilham, nos canhões, os alamares
375– Das finas lentejoulas, e, nos ombros, Já brilham as dragonas, enfeitadas
C'os grandes cachos das lustrosas flores.
Jelônio se mudou, Jelônio é outro. A veste de cetim já resplandece
380– Orlada co’o galão da fina prata,
E, por cima da veste, já se enrola, Na cintura, a vermelha e rica banda. Jelônio se mudou, Jelônio é outro. Como está belo! Como está casquilho! 385– Concerta do babado a fina renda,
Olha uma e outra vez os alamares Endireita a cucula, estende a perna; Não consente um só fio sobre a farda; Levanta o pescocinho, morde os beiços,
390– E o seu cabelo, com a mão, afaga.
Jelônio se namora de si mesmo, Ainda, ainda mais que o terno Adônis, Quando viu o seu rosto dentro d’água.
Jelônio se mudou, Jelônio é outro.
395–Então, os militares que o rodeiam, Amado Doroteu, risonhos, mofam.
Um pisa com o pé nos pés vizinhos; Puxa outro pelas pontas das fardetas Aos amigos chegados; este acena
400– C'os olhos e cabeça aos companheiros Que lhe ficam defronte; aquele tapa, Fingindo que tem tosse, a alegre boca; Qual foge da presença... mas que vejo!
Tu, Doroteu, carregas sobre os olhos 405 – As grossas sobrancelhas? Tu enrugas
A testa levantada? Tu inflamas As faces já desfeitas e suspiras?
Acaso tu presumes que eu murmuro Do fato de casar o nosso chefe
410– A sua terna amásia? Não, amigo, Eu conheço, também, aonde chegam Os deveres de quem nasceu fidalgo: Obrou o nosso chefe o que eu faria.
Murmuro, Doroteu, mas é do dote; 415– Do dote, sim, do dote. Dize, a banda,
O castão de coquilho, as mais insígnias, São dotes que se dêem a um soldado, Porque serviu ao chefe, em receber-lhe, Sem vergonha do mundo, a sua amiga? 420– Não achas insolência e desaforo
Ver os porta-bandeiras, os cadetes, E os furriéis já velhos, preteridos Só para premiar-se com o posto,
Que por lei lhes pertence, um torpe crime? 425– São estes, Doroteu, os grandes cabos, De quem a triste pátria fiar deve
A sua salvação? São estes? Dize... Agora já te calas. Pois não tornes
A mostrar-me, outra vez, o gesto irado,
430 – Que um dia hei de enfadar-me e, se me enfadas, Ainda que me pecas de joelhos,
Não hás de receber da minha pena, m verso ou prosa, mais uma só carta.
CARTA 12ª
Aquele que se jacta de fidalgo Não cessa de contar progenitores
Da raça dos suevos, mais dos godos; O valente soldado gasta o dia
5– Em falar das batalhas, e nos mostra Das feridas, que preza, cheio o corpo;
O louco namorado não descansa Enquanto tem quem ouça as aventuras, Que fez com as madamas, mais senhoras,
10– Benzendo-se mil vezes, quando chega Aos lances apertados de ser visto
Dos maridos, dos pais e dos parentes, Em que, só por milagre, não foi morto. Assim, assim, também, o teu Critilo
15– Não cansa de escrever-te, enquanto encontra Do tolo Fanfarrão, do indigno chefe, Estranhas bandalhices, que te conte.
Ah! sofre, amigo, que te gaste o tempo, Pois conter-se não pode, bem que queria,
20– Que a força da paixão assopra a chama, A chama ativa do picante gênio.
Já sabes, Doroteu, aonde chega Do nosso Fanfarrão a bizarria,
Em premiar serviços de uma dama.
25– Agora, nesta carta, vou mostrar-te Até aonde chegam as grandezas
Que fez com os marotos, por que tenhas, Do seu fidalgo gênio, noção clara.
Qual negra tempestade, que carrega 30– As nuvens de cupins e de formigas, Que criam, com as chuvas, longas asas,
Assim o nosso chefe traz consigo, Arribação infame de bandalhos,
Que geram, também, asas, com a muita, 35– Nociva audácia que lhes dá seu amo.
Na corja dos marotos aparece Um magriço mulato, a quem o chefe, Por ocultas razões estima e preza. Talvez que, noutro tempo, lhe levasse
40– Os miúdos papéis às suas damas.
Ocupação distinta, que já teve Um famoso Mercúrio, que comia
Sentado à mesa dos mais altos deuses. Deseja o nosso chefe que este lucre
45– Quatrocentas oitavas, pelo menos, E, para que não saiam de seu bolso, Descobre esta feliz e nova idéia:
Dispõe dos bens alheios como próprios.
No público teatro de Lupésio
50 – Ordena, Doroteu, se represente Uma vista comédia, por que fiquem, Para o velho mulato, os lucros dela. Ordena, ainda mais, que o seu Robério Os boletos reparta pelas damas,
55– Pelos contratadores opulentos E por quantos casquilhos os quiserem Pagar, ao menos, por dobrado preço. Robério assim o faz; supõe, coitado, Que prometeu pedir alguma missa.
60– E, junto c’o mulato, vai entrando Em uma e outra casa, aonde deixa
Ou selado papel, para a platéia,
Ou, com tábua pendente, a velha chave. Ah! nota, Doroteu, que ação tão feia!
65– Aquele bruto chefe que não paga, As pessoas mais nobres, o cortejo Sequer por um criado, agora manda
Que o seu próprio Robério, o seu bom aio. Ande de porta em porta, qual mendigo,
70– Pedindo para um bode a benta esmola! Então, amigo, a quem? a quem? aos mesmos Que tem desfeiteado muitas vezes
E às pobres, que é mais, às pobres moças Que hão de ganhar, à custa de seu corpo, 75– Com que possam pagar deste convite Um tão avantajado, indigno preço.
Maldito sejas tu, pouca vergonha, Que tanto influxo tens sobre este leso! Chegou-se, Doroteu, a noite alegre
80– Destinada à função, e o vil Robério Dá nova prova de fervor e zelo:
Vai-se pôr, com o traste do mulato, Na porta da platéia, e, quando acaba
A primeira jornada, também corre 85– Os cheios camarotes: fina idéia! Para ver se os tolinhos, assim, largam,
Na copa do chapéu, que a esmola apanha, Embrulhos de mais peso ! Ah ! doce amigo, Quem bandalho nasceu, ainda que suba 90– Ao posto de maior, morreu bandalho, Que o tronco, se dá fruto azedo, ou doce, Procede da semente e qualidade
Da negra terra, em que foi gerado. Servia-se este chefe de um lacaio,
95– E, por não lhe pagar salário certo, Deu neste ardil, também: quando ia às festas Lhe dava o seu brandão, e as mais pessoas, Que estavam na tribuna, por obséquio,
Lhe davam as compridas, grossas velas.
100– Se dava algum despacho, de que vinha Proveito à parte rica, lho entregava,
Por que fosse ganhar o grande prêmio Com que os néscios, servidos, o brindavam.
Nas vésperas, amigo, da partida, 105– Tratou de lhe fazer maior a safra:
Passou atestações a todo mundo E, sem saber se o mundo lh'as queria,
Mandou ao mesmo servo as entregasse E os prêmios do trabalho recolhesse! 110– Maldita sejas tu, pouca vergonha, Que tanto influxo tens sobre este leso!
Havia, Doroteu... mas não gastemos O tempo em referir mais bandalhices Da mesma natureza; refiramos
115– Outras, que sejam de diversa classe.
Não quero, Doroteu, que o justo tédio, Que infunde a semelhança, te duplique O tédio, que produz a minha frase.
Fizeram os devotos de uma imagem, 120– Da festa protetor, ao grande chefe.
Aceita o Fanfarrão do cargo a honra E medita fazer um grão festejo.
Ordena aos cavalheiros, que vieram Correr as argolinhas, em obséquio 125– Do ditoso consórcio dos infantes, Que esperam, nesta terra, à sua custa, E que, nos dias da função, repitam
Os feitos jogos, com o mesmo lustre.
Manda que o grande curro, que o Senado 130– Fez levantar, na praia, permaneça,
E venham os boizinhos, que, por serem Mais bravos do que os outros, se guardaram,
Mal rapavam o chão e mal corriam,
Atrás do mau capinha, no terreiro.
135 Eis aqui, eis aqui, amigo, o como Se fazem coisas grandes, sem despesa. Manda mais o bom chefe que se aluguem
Os palanques a quatro oitavas d’ouro, Para que se comprasse um patrimônio, 140– A sacrossanta imagem, deste lucro.
Que sábias intenções, que fins tão santos!
Celebram-se os festins e não escapa Um camarote só, que não se alugue; Mas deste rendimento não se sabe,
145– Que a compra se meteu, de todo, à bulha.
Não penses, Doroteu, que o nosso chefe Comeu este dinheiro. Longe, longe De nós este tão baixo pensamento.
Indo já no caminho, o seu Matúsio 150– Passou, sobre Marquésio, certa letra.
Para que se pagasse ao Santo Cristo.
Agora considera se este fato
Não mostra que ele zela a consciência.
Agora inquirirás se o tal Marquésio 155– Pôs na sacada letra o seu "aceito". Não pôs, não pôs, amigo, porque disse
Que deste passador não tinha efeitos. Porem o bom Matúsio, mais seu amo, Levam as consciências descansadas,
160– Pois não devem supor, pelo costume, Que a letra não pagasse o mau rendeiro.
Maldita sejas tu, pouca vergonha, Que tanto influxo tens sobre este leso! Roubou um seu criado a certa escrava
165– E dentro lha meteu, do seu palácio.
Conheceu o senhor quem fez o furto, E foi pedir ao chefe que mandasse Que o terno roubador restituísse
A serva, com os lucros! pois cedia
170– De toda a mais ação, que a lei lhe dava. Que entendes, Doroteu, que obrou o chefe?
Que fez um sério exame sobre o caso? Que, conhecendo ser a queixa justa, Meteu, em duros ferros, ao criado?
175– Que não lhe perdoou, enquanto o mesmo Ofendido queixoso não lhe veio
Suplicar o perdão da culpa grave? Devias esperar que assim fizesse, Mas, quando a razão pede certa coisa,
180– Ele, então, executa o seu contrário.
Não zela, Doroteu, a sã justiça, Nem zela a honra própria, maculada Na sua habitação, que o servo muda
Em torpe lupanário. Não, não zela;
185– Antes, prezado amigo, austero, estranha Ao mísero queixoso, que se atreva
A supor que os seus servos são capazes De poderem obrar excessos destes.
Maldita sejas tu, pouca vergonha,
190– Que tanto influxo tens sobre este leso.
Passados alguns tempos, Ludovino Encontrou, uma noite, a sua escrava E à casa conduziu do bom Saônio, Aonde, em hospedagem, se abrigava.
195– Aqui lhe perguntou a longa história Da fugida que fez, e a triste serva, Com animo sincero, assim lhe fala: "Ribério me induziu a que fugisse,
Meteu-me no seu quarto, aonde estive, 200– Fechada, muitos dias. Alugou-me, Depois, uma casinha; aqui me dava, Dos sobejos da mesa de seu amo,
Para eu alimentar a pobre vida. Tive dele dois filhos; o demônio
205– Enganou-me, senhor, cuidei...
“E, nisto, Queria mais dizer, porem, de pejo, As lágrimas lhe estalam, e se cortam
As últimas palavras, com suspiros. Agora dirás tu, amigo honrado:
210 – "Agora, agora sim, agora é tempo, Insolente Ribério, de nós vermos,
Para exemplo dos mais, o teu castigo. Os soldados já marcham, já te prendem, Já vens maniatado, já te metem
215– Na sórdida enxovia, já te encaixam, No pescoço, a corrente, e vais marchando Com rosto baixo, a ver Angola ou Índia.” Devagar, devagar com essas coisas:
Os servos de palácio são os duques
22– Do nosso Santiago, e não se prendem Por essas, nem por outras ninharias.
Atrevidos soldados já se aprontam,
Mas não para prenderem a Ribério, Sim para conduzirem, entre as armas, 225– Ao pobre Ludovino e à sua serva,
Que já buscando vão à sua casa, Que dista desta terra muitas léguas.
É o mesmo Ribério quem A fazer, Doroteu, a diligência,
230 – Cobrindo a testa da insolente esquadra.
Já viste, Doroteu, insultos destes? á viste que pretenda um homem sério
Que, à força, um bom senhor de si demita
A escrava desonesta, porque possa 235 – Ficar na mancebia? Já, já viste Que se mande prender ao ultrajado Pelo mesmo ladrão? Ah! caro amigo Que, destas insolências que te conto, Apenas pode ver quem mora em Chile! 240– Maldita sejas tu, pouca vergonha, Que tanto influxo tens sobre este leso!
Há, nesta grande terra, um homem sábio E o único formado em medicina.
A este bom doutor estimam todos, 245– Por sua profissão, por seus talentos,
Por seu afável modo e, mais que tudo, Pelas muitas virtudes que respira.
Curava o nosso sábio a certo enfermo E, vendo a vária febre e os mais sintomas,
250– Ordena que ele tome um copo d’água A que dá de Inglaterra o povo o nome.
Manda-lhe o boticário uma botelha, Que já servido tinha; o sábio, atento A que ela poderia ter perdido
255– A força natural, a não aprova E passa a receitar outro composto, Que possa produzir o mesmo efeito. Chorando, o boticário sobe ao chefe E diz-lhe que o doutor a rejeitara.
260– Por ser seu inimigo e, desta sorte, Tirar-lhe, da botica, o bom conceito.
Manda o chefe chamar aos boticários E manda que examinem a garrafa; Concordam os doutores que não tinha.
265 – Ainda, corrupção, talvez por verem Que ainda conservava algum amargo.
Então, então o chefe, enfurecido, Ordena ao ajudante que, ali mesmo,
Avise ao professor que ele tem ferros, 270– Cadeias e galés, com que reprima, Se neles prosseguir, os seus excessos.
Maldita sejas tu, pouca vergonha, Que tanto influxo tens sobre este leso! Pensavas, Doroteu, que o nosso chefe 275– Passasse à insolência, que refiro, De insultar, por amor de um vil mulato,
Um velho professor tão bem aceito, Um velho professor, alem de sábio, Na terra singular, no seu oficio?
280– Não, meu prezado amigo, não pensavas; Pois quero, Doroteu, dizer-te a causa:
Esta grave ameaça e grave insulto Foi feita em tom de paga, porque o bode
Curava, cuidadoso, ao próprio chefe, 285– De mal oculto, que a modéstia cala.
Maldita seja tu, pouca vergonha, Que tanto influxo tens sobre este leso!
Ah! dize, Doroteu, por que motivo O pai de Fanfarrão o não pôs antes
290– Na loja de algum hábil sapateiro, C’os moços aprendizes deste oficio?
Agora dirás tu: "Nasceu fidalgo
E as grandes personagens não se ocupam Em baixos exercícios." Nada dizes.
295 – Tonante, Doroteu, é pai dos deuses: Nasceu-lhe o seu Vulcano e nasceu feio. Mal o bom pai o viu, pregou-lhe um coice Que o pôs do Olimpo fora, e o pobre moço Foi abrir uma tenda de ferreiro.
CARTA l3ª
Ainda, caro amigo, ainda existem Os vestígios dos templos suntuosos Que a mão religiosa do bom Numa Ergueu o Marte e levantou a Jano.
5– Ainda, ainda lemos que elegera, Para estas divindades, sacerdotes, E que muitas donzelas consagrara,
Afim de conservar-se, aceso, o fogo, Em o templo de Vesta, sobre as aras.
10– Também, também sabemos que este sábio,
Para ter mais conceitos entre o seu povo, Fingiu que a ninfa Egéria, sendo noite, Vinha falar com ele, e que, benigna,
A forma do goveno lhe inspirava.
15– O mesmo fez Sertório, que dizia Que nada executa, que não fosse Ensinado por uma branca cerva,
Que, a deusa caçadora lhe mandara. Mafoma, o vil Mafoma, astuto segue
20– Também este sistema: ao seu ouvido Acostuma a chegar-se a mansa pomba.
A nação, ignorante, se convence De que este seu profeta conhecia Os segredos do céu, por este meio.
25– Não há, meu Doroteu, não há um chefe, Bem que perverso seja, que não finja,
Pela religião, um justo zelo,
E, quando não o faça por virtude, Sempre, ao menos, o mostra por sistema.
EPÍSTOLA A CRITILO
Qual seja o original. Dentro em minha alma Vejo, ó Critilo, do chileno chefe,
Tão bem pintada a história nos teus versos, Que não sei decidir qual seja a cópia,
Qual seja o original. Dentro em minha alma 5– Que diversas paixões, que afetos vários
A um tempo se suscitam! Gelo e tremo, Umas vezes de horror, de mágoa e susto; Outras vezes do riso apenas posso Resistir aos impulsos. Igualmente
10– Me sinto vacilar entre os combates Da raiva e do prazer. Mas ah! que disse! Eu retrato a expressão, nem me subscrevo Ao sufrágio daquele, que assim pensa, Alheio da razão, que me surpreende.
15– Trata-se aqui da humanidade aflita; Exige a natureza os seus deveres.
Nem da mofa ou do riso pode a idéia Jamais nutrir-se, enquanto aos olhos nossos Se propõe do teu chefe a infame história.
20– Quem me dirá que da estultice as obras Infestas à virtude e dirigidas
A despertar o escândalo conseguem, No prudente varão, mover o riso?
Eu veio que um Calígula se empenha
25– Em fazer que de Roma ao Consulado, Se jure o seu cavalo por colega.
Vejo que os cidadãos e as tropas arma O filho de Agripina, que os transporta Em grossos vasos sobre o Tibre e logo
30– Por inimigos lhes assina os matos, Que atacar manda com guerreiro estrondo.
Direi que me recreia esta loucura? Que devo rir-me e sufocar o pranto Que pula dos meus olhos? Não, Critilo,
35– Não é esta a moção que n'alma provo.
Por entre estes delírios, insensível, Me conduz a razão, brilhante e sábia, A gemer igualmente na desgraça
Dos míseros vassalos, que honrar devem, 40– De um tirano o poder, o trono, o cetro.
Se Talia e Melpômene nos pintam, Nos seus teatros, paixões humanas, Ao ridículo gesto, ou ao semblante
Da cena que o coturno me apresenta,` 45– Eu me conformo ao interesse, quando
Aborreço a maldade e quando rendo À formosa virtude os dignos votos.
Despedace Medéia os caros filhos, Guise Atreu de seus netos as entranhas,
50– Eu terei sempre horror às impiedades.
Jamais da irreligião, da fé mentida Me hão de enganar os pérfidos rebuços
Ou da fingida cena os vãos adornos. Devo pois confessar, Critilo amado,
55– Que teus escritos, de uma idade a outra Passarão, sempre de esplendor cingidos: Que a humanidade, enfim desagravada
Das injúrias que sofre, por teu braços, Os ferros soltará, que desafrouxa,
60– Tintos do fresco, gotejado sangue.
Súditos infelizes, que provastes Os estragos da bárbara desordem, Respirai, respirai: ao benefício Deveis do bom Critilo a paz suave,
65– Que a vossa liberdade alegre goza, Sim, Critilo, são estes os agouros
Que, lendo a tua história, ao mundo faço. De pejo e de vergonha os bons monarcas, Que pias intenções sempre alimentam, 70– De reger como filhos os seus povos,
Tocados se verão. Prudentes, sábios, Consultarão primeiro sobre a escolha Daqueles chefes, que a remotos climas Determinam mandar, deles fiando
75– A importante porção do seu governo.
Prevenidos que a vã, brutal soberba Só nas obras influi destes monstros, Pelo escrutínio da virtude espero, Que regulados os seus votos sejam.
80– De uma estéril mortal genealogia 0 Que o mérito produz de seus maiores, Eles, amigo, argumentar não devem Propalados talentos. A virtude
Nem sempre aos netos, por herança, desce. 85– Pode o pai ser piedoso, sábio e justo, Manso, afável, pacífico e prudente:
Não se segue daí que um ímpio filho, Perverso, infame, díscolo e malvado, Não desordene de seus pais a glória.
90– Nem sempre as águias de outras águias nascem, Nem sempre de leões, leões se geram,
Quantas vezes as pombas e os cordeiros São partos dos leões, das águias partos!
Para reger, ó rei, os vossos povos,
95– Debalde ides buscar brasões e escudos Entre os vossos dinastas. Roma, Roma
As faces, as secures, mais as outras
Imperiais insígnias só tirava Da provada virtude. Se das togas
100– Distinguia uma e outra espécie, Atenas 1! quem a todas o caráter dava.
Igualmente civil jurisconsulto Que instruído guerreiro, era mandado
Um cidadão que da província as rédeas 105– Manejasse fiel. Daqui os Fábios, Daqui os Cipiões e os bons Emílios,
Os Césares daqui, que os fastos ornam. Quão diferentes, hoje, os nossos grandes!
É filho do marquês, do conde é filho, 11– Vá das Índias reger vasto império. () Deus! e que infelizes os vassalos
Que tão longe do trono prostitui
O vosso império aos abortivos chefes!
Lá vai aquele, que de avara sede 115– E por gênio arrastado: que tesouros
Não espera ajustar! Do alheio cofre
Se há de esgotar a aferrolhada soma. Desgraçada Justiça! Da igualdade Tu não sabes o ponto: é a balança
120– Do interesse que só por ti decide. Que despachos injustos, que dispensas. Que mercês e que postos não se compram Ao grave peso de selada firma!
Outro vai que, lascivo, e desenvolto 125– Só da carne as paixões adora e segue.
Honras, decoros, vós sereis despojos Do seu bruto apetite. Em vão, cansados Pais de família, zelareis vós outros
Da vossa casa o pundonor herdado.
130– Aos vis ataques do atrevido orgulho Hão de ceder as prevenções mais fortes; Vítimas da voraz sensualidade
Vossas filhas serão, vossas mulheres.
Que direi do soberbo, do vaidoso,
135– Do colérico e de outros vários monstros, Que freio algum não conhecendo, passam
A sustentar no autorizado cargo Tudo quanto a paixão lhes dita e manda! Não sofre aquele, que o vassalo oculte
140– os cabedais que à sua indústria deve E que a seus filhos e a seus netos, possa Deixar, morrendo, uma opulenta herança.
Um falso crime lhe figura, aonde Esgote as forças, que levar procura 145– Alem das frias, apagadas cinzas.
Este medita que a nobreza ilustre Sufocada se veja. A prisão dura,
O distante degredo é que promete Da prevista vingança o fim prescrito.
150– Ó senhores! ó reis! ó grandes! quanto São para nós as vossas leis inúteis!
Mandais debalde, sem julgada culpa, Que o vosso chefe, a arbítrio seu, não possa
Exterminar os réus, punir os ímpios. 155– É c’os ministros de menor esfera
Que falam vossas leis. Nos chefes vossos Somente o despotismo impera e reina. Gozar da sombra do copado tronco
É só livre ao que perto tem o abrigo 160– Dos seus ramos frondosos. Se aparta
Da clara fonte o passageiro, prova Turbadas águas em maior distancia.
Mas ah! Critilo meu, que eu estou vendo, Que já chegam a ler as cartas tuas:
165– Estes bárbaros monstros são cobertos De vivo pejo, ao ver os seus delitos,
Que em tão disforme vulto, hoje aparecem. Destro pintor, em um só quadro a muitos Soubeste descrever. Sim, que o teu chefe 170–As maldades de todos compreende.
Aqui vê-se o soberbo, que pensando Do resto dos mais homens nada serem, Mais que humildes insetos, só de fúrias Nutre o vil coração e a seus pés calca
175– A pobre humanidade. Aqui se encontra O ímpio, o libertino, que ultrajando
Tudo que é sagrado, tem por timbre Ao público mostrar, que o santo culto Que nos intima a religião, somente
180– Aos pequenos obriga, e que por arte Os conserva a ilusão no fanatismo,
Porque da obediência às leis se dobrem; Aqui se acha o lascivo; é o vaidoso,
1! o estúpido, enfim é o demente
185– O que ao vivo aparece nesta empresa.
Tu, severo Catão, tu repreendes Com teu mudo semblante a pátria Roma.
Nem seus teatros de lascívia cheios Sofrem teus olhos nobremente irados. 190– Pede o congresso, de terror ferido, Que o rígido censor o circo deixe
Ou que se não produza a torpe cena.
Este, ó Critilo, o precioso efeito
Dos teus versos será, como em espelho, 195– Que as cores toma e que reflete a imagem,
Os ímpios chefes de uma igual conduta A ele se verão, sendo argüidos
Pela face brilhante da virtude,
Que, nos defeitos de um, castiga a tantos.
200– Lições prudentes, de um discreto aviso, No mesmo horror do crime, que os infama, Teus escritos lhes dêem. Sobrada usura
É este o prêmio das fadigas tuas. Eles dirão, voltando-se a Critilo:
205– Quando devemos, ó censor fecundo, Ao castigado metro, com que afeias Nossos delitos, e buscar nos fazes
Da cândida virtude a sã doutrina