HISTÓRIA DO FUTURO, VOL. II
Padre Antônio Vieira
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Texto adaptado por:
Jessica Assunção Cambraia
Revisado por:
Jessica Assunção Cambraia
Revisado por:
Gabriella Lima Dantas
Origem do livro:
E-Book:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&
co_obra=17329
Brasília, Janeiro de 2017.
VIEIRA, Antônio. Historia do futuro, vol II. Belém: Unama, [200-?]. 93 p.
Disponível em: <
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&
co_obra=17329 >. Acesso em: 16 Jan. 2017
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Capa
Legenda da imagem: sem legenda.
Descrição da imagem: capa do livro, na cor verde escuro e um quadro em verde
claro, sobreposto ao anterior. Do lado esquerdo, na parte superior o logotipo
da Unama, que é uma imagem de dois livros sobrepostos, aparecendo apenas o
fundo dos livros. Abaixo, no canto inferior, está o logotipo da NEAD- Núcleo de
Educação a distância, com a imagem de uma coruja usando um capelo. No canto
superior, mais centralizado, Universidade da Amazônia. Logo após, História do
Futuro vol. II, de Padre Antônio Vieira. Ao final, as informações NEAD NÚCLEO
DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, Av. Alcindo Cacela, 287 Umarizal, CEP: 66060-
902, Belém Pará, Fones: (91) 210-3196 / 210-3181, www.nead.unama.br, E-
mail: uvb@unama.br. (Fim da descrição)
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Historia do futuro, vol II
de Padre Antônio Vieira
CAPÍTULO I
JESUS, MARIA, JOSÉ
Entrando a tratar do Quinto Império do Mundo (grande assunto deste nosso
pequeno trabalho) para que procedamos com a distinção e clareza tão necessária
em toda a história e muito mais neste gênero, a primeira cousa que se oferece
para averiguar e saber é que impérios tenham sido ou hajam de ser os outros
quatro, em respeito ou suposição dos quais este novo de que falamos se chama
Quinto. Porque sem recorrer à memória dos tempos passados, e pondo somente
os olhos no mundo presente, conhecemos hoje nele muito maior número de
impérios. Na Ásia, o vastíssimo Império da China, o dos Tártaros, o do Persa, o
do Mogor; na África, o da Etiópia; na Europa, o de Alemanha, em que sem a
grandeza se continua o nome, e o de Espanha, em que sem o nome, posto que
arruinada e combatida, se sustenta a grandeza; e em todas estas três partes do
Mundo o violento Império dos Turcos, o estendido, tão unido, tão poderoso e
formidável. Havendo pois ainda nesta nossa idade tantos impérios, e sendo tantos
mais os de nações bárbaras e políticas que em diversos tempos do Mundo se têm
levantado e caído, com razão se deve duvidar e desejar saber a causa pôr que
este nosso Império que prometemos recebe o numero de Quinto, e quais sejam
em ordem os outros quatro que lhe deram este lugar ou este nome. Ao que
respondemos breve e facilmente que este modo de contar não é nosso nem de
algum outro historiador ou autor humano, senão fundado e tirado das Escrituras
divinas, cuja história profética, sem fazer caso de muitos e grandes impérios que
floresceram e haviam de florescer em vários tempos e lugares do Mundo, trata
do primeiro que se começou e levantou nele, e dos que em continuada sucessão
se lhe foram seguindo até o tempo presente, os quais em espaço quase de quatro
mil anos têm sido com este quatro. Esta sucessão e seu princípio foi desta
maneira.
CAPÍTULO II
Correndo os anos de 1860 da criação do Mundo, 3800 antes do presente
de 1664 em que isto escrevemos, depois que a confusão das línguas na torre de
Babel dividiu seus fabricantes em diversas partes da terra, castigo tão merecido a
sua soberba como necessário à propagação do gênero humano e à o mesma
grandeza que aspiravam, Belo, filho do gigante Nembrot (posto que não faltam
graves autores que fazem destes dois nomes o mesmo homem), reduzindo a
sujeição e obediência política a liberdade natural com que todos até aquele tempo
nasciam, foi o primeiro que ensinou ao Mundo e introduziu nele a tirania, a que
depois com nome menos odioso chamaram Império. Tantos anos tardou a
ambição em romper o respeito àquela lei com que nos fez iguais a todas a
natureza.
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Foi este império de Belo o dos Assírios ou Babilônios; durou, segundo
Justiço, perto de mil e trezentos anos; teve, entrando neste número Semearmos,
37 imperadores, de que foi o último Sardanapalo.
Ao império dos Assírios sucedeu o dos Persas pelos anos da criação 3444.
Começou em Ciro, acabou em Dario; contou por todos catorze imperadores. Não
durou, conforme Eusébio, mais que duzentos e trinta anos.
O terceiro Império, que foi o dos Gregos, ainda durou menos, se o
considerarmos como monarquia. Alexandre o começou e acabou em Alexandre,
para que vejam e conheçam as coroas quanto é grande a sua mortalidade, pois
pode ser mais breve a vida de um império que a de ,um, homem. Começou este
Império dos Gregos depois pelos anos do Mundo 3672, conservou-se unido
somente oito, e, antes deles acabados, se dividiu em três reinos: o da Ásia, o da
Macedônia, o do Egito; e este (que foi o que mais permaneceu) continuou com
desigual fortuna trezentos anos, até que, governado e não defendido pela
celebrada Cleópatra, o ajuntou Marco Antônio à grandeza romana.
Havia neste tempo setecentos anos que Rômulo levantara junto ao rio
Tibre aquelas primeiras choupanas que depois se chamaram Roma, cujo Império
começou com este nome em Júlio César, trinta anos antes do nascimento de
Cristo. Durou, pois, o Império Romano com toda a inteireza de sua monarquia 400
anos, com sucessão de 35 imperadores até o grande Constantino, o qual,
fundando nova corte em Constantinopla, dividiu o Império, para melhor governo,
em Império Oriental e Ocidental, e desde este tempo começaram as águias
romanas a aparecer coroadas com duas cabeças. Sustentou-se o Império
Oriental por espaço de quatro mil anos, em que contou oitenta e quatro
imperadores, de que foi o último outro Constantino de muito diferente fortuna,
porque, sendo sitiado e vencido por Maomete II, dentro em Constantinopla
,perdeu a vida e a cidade e sepultou consigo todo o Império. O do Ocidente,
depois daquela divisão, experimentou nela grandes variedades, porque, sendo
governado alguns anos por imperador com igual jurdição e majestade, se passou
o governo a exaras, que eram ministros e como lugar-tenentes dos imperadores
orientais, até que, em tempo o Papa Lúcio TII, eleito Carlos Magno em imperador
do Ocidente, ficando Roma como cabeça da Igreja, ao Pontífice passou o assento
do Império - a Alemanha.
Sucedeu esta mudança pelos anos de Cristo de 810, nos quais o Império,
diminuindo sempre em grandeza e majestade, tem contado noventa imperadores
até Fernando III, que hoje reina, e com grande valor e zelo da Cristandade está
resistindo-se (queira o Céu que seja com melhor ventura!) a outro Maomete.
Estes são em breve suma os quatro Impérios que desde o primeiro que
houve no Mundo se foram continuando e sucedendo até o presente, cuja notícia,
quando não fora tão necessária para o ponto em que estamos, sempre era muito
conveniente dar-se logo neste princípio, para melhor entendimento de tudo o que
se há-de dizer adiante.
Em respeito pois e suposição destes quatro impérios, chamamos Império
Quinto ao novo e futuro que mostrará o discurso desta nossa História; o qual se
-de seguir ao Império Romano na mesma forma de sucessão em que o
Romano se seguiu ao Grego, o Grego ao Persa e o Persa ao Assírio. E assim
como o Império dos Persas se chama o segundo Império, porque sucedeu ao dos
Assírios, que foi o primeiro do Mundo, e o das Gregos se chama o terceiro,
porque sucedeu ao dos Assírios e dos Persas, e o dos Romanos se chama o
quarto, porque sucedeu ao dos Assírios, ao dos Persas e ao dos Gregos, assim
este nosso Império, porque -de suceder ao dos Assírios, Persas, Gregos e
Romanos (como logo veremos) se deve
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chamar com a mesma razão e propriedade o Quinto Império do Mundo; e porque
todos os outros Impérios, passados e presentes, por grandes e poderosos que
fossem, ficaram fora da ordem desta sucessão, que começou no primeiro e -de
acabar no Quinto (que será também o último), por isso as Escrituras Sagradas
não fazem menção nem memória alguma deles, como também nós a não
fazemos. Nem eles, por muitos que hajam sido, ficando fora da mesma ordem,
podem acrescentar número ou lagar ao novo Império com que mude ou exceda o
que lhe damos de Quinto.
Tudo o que até aqui fica dito são suposições certas e sem dúvida, tiradas
de diferentes lugares do Texto Sagrado, que vão citadas margem, e o não
pusemos no corpo da história por o embaraçar o desenho dela. Autores que
dizem o mesmo, posto que em matéria tão averiguada e sem controvérsia não
são necessários autores, alegaremos nos capítulos seguintes; o que resta e
importa mostrar é que haja de haver sem dúvida este novo e prometido Império a
que chamamos Quinto. E assim o faremos agora, com toda a demonstração e
certeza, porque esta é a base e fundamento de toda a nossa História e assunto
particular deste I Livro.
LIVRO I
CAPÍTULO I
Mostra-se a Quinta Monarquia com a 1.a profecia de Daniel
dissemos que os futuros livros ou contingentes (qual é o Império que
prometemos) são manifestos a Deus e a quem os quer revelar. E assim, para
fundarmos bem a esperança deste grande futuro, devemos recorrer
principalmente aos que a nos ensina que foram verdadeiros profetas, entre os
quais, como também deixamos dito, tem o primeiro lugar Daniel, não, pelo espírito
de profecia que foi tão superiormente ilustrado, mas porque o fez Deus particular
profeta dos reinos e das monarquias. Será pois a primeira pedra deste edifício
uma grande profecia de Daniel.
No ano antes de Redenção do Mundo 450, Nabucodonosor, um dos
últimos reis imperadores de Babilônia, que era, como fica dito, o Império dos
Assírios, desvelado uma noite com os pensamentos da sua monarquia, em
prêmio ou conseqüência deste cuidado mereceu que Deus lhe revelasse, sendo
gentio, o sucesso de muitas cousas futuras, assim como outros príncipes que têm
e desmerecem por sua negligência e descuido até o conhecimento natural dos
presentes. Viu pois Nabuco em sonhos uma visão admirável e portentosa, com
cuja apreensão e assombro acordou de tal maneira perturbado e contuso, que
somente se lembrava que acabava de sonha- cousas prodigiosas, grandes e
prenhes de mistérios, mas totalmente se esquecia quais foram. Assim, estimulado
igualmente do desejo e do temor que a mesma lembrança lhe causava, mandou
logo chamar os maiores sábios dos seus reinos, os magos, os aríolos; os caldeus,
que eram os que pela observação das estrelas e outras professavam a ciência
das cousas futuras, e depois de trazidos à sua presença, lhes declarou por si
mesmo tudo o que lhe tinha sucedido, e mandou-lhes seriamente que não lhe
haviam de dizer logo a significação do sonho, senão também o que tinha
sonhado. Responderam os sábios que, se o rei lhes manifestasse o que sonhara,
eles se obrigavam a declarar a
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significação de tudo, porque isso era a sua profissão e o mais a que se estendia a
ciência humana; mas que adivinhar qual houvesse sido o sonho era segredo
impossível de alcançar aos homens e reservado somente à sabedoria dos
deuses. Falaram assim, porque todos eram gentios.
Não se aquietou Nabuco com esta resposta dos sábios, antes os argüiu
com ela de falsos, enganadores e indignos de crédito; porque, se não podiam
saber o sonho, que era cousa passada, como haviam de conhecer a significação
dos futuros, e somente lhes haviam de dar crédito no segundo e mais dificultoso,
se no primeiro e mais fácil eles mesmos confessavam sua ignorância? Que se
resolvessem a dizer logo uma e outra cousa, senão que ele e sus famílias
morreriam todas. E como os tristes sábios respondessem outra vez que o
sabiam nem podiam satisfazer ao rei no que deles queria, irado grandemente
Nabuco, mandou que os levassem de sua presença e que neles e em todos os
professores das mesmas artes se executasse logo a sentença de morte. Tão
violentos são os apetites do poder supremo, e tão arriscado não satisfazer aos
reis até no impossível!
Achava-se neste tempo em Babilônia Daniel, onde fora levado com El-Rei
Joaquim no primeiro cativeiro ou transmigração dos Hebreus. Oro a Deus, ele e
seus três companheiros, ,que também entravam no número dos condenados,
porque tinham estudado, por mandado do mesmo rei, as ciências de Caldeia;
folhe revelado pelo Céu o sonho e a interpretação dele, e quando a multidão
dos sábios, rodeados de rústicos e tumulto popular, começavam a caminhar para
o lugar do suplício, faz parar a execução Daniel. Oferece-se a declarar o sonho;
pede que o levem a Nabucodonosor, e posto em sua presença e na dos maiores
príncipes de Babilônia que o acompanhavam, depois de confessar a insuficiência
sua e de todo o saber humano, e mostrar como o Deus verdadeiro, a quem ele
servia e que fora o autor daquele sonho, o podia revelar e a significação dele,
primeiramente com assombro e pasmo do rei lhe contou muito miudamente por
sua ordem a história do que tinha sonhado, e depois com igual admiração e
espanto de todos lhe foi explicando parte por parte os mistérios e segredos
futuros que tão prodigiosa visão em si encerrava.
Este é o prólogo da primeira profecia de Daniel, e todo este aparato de
circunstâncias com o Texto Sagrado descreve o sucesso dela, as quais
porventura puderam parecer menos necessárias ao nosso argumento, mas nós
as quisemos resumir brevemente aqui, para crédito natural da mesma profecia;
pois não nos obrigam a que a creiamos por os que somos cristãos, mas se
podem convencer com elas por discurso até os mesmos Gentios.
A história do sonho, pelas palavras com que Daniel a referiu, é a seguinte:
Tu, Rex, cogitare coepisti in strato tuo quid esset futurum post hoec; et qui revelat
misteria, ostendit tibi que ventura sunt. Tu, Rex, videbas et ecce quasi statua una
grandis: statua illa magna et statura sublimis stabat contra te et intuitus ejus erat
terribilis, etc. , usque ad implevit universam terram. Hoc est somnium.
«Começaste a cuidar, ó Rei, deitado no teu leito, diz Daniel, o que havia de
suceder depois do tempo presente, e o Deus que pode revelar os mistérios e
segredos ocultos, te mostrou naquela visão tudo o que está para vir nos tempos
futuros, e o que eu agora te direi, não por arte ou ciência minha, se não por
revelação sua. Parecia-te que vias defronte de ti uma estátua grande, de estatura
alta e sublime e de aspecto terrível e temeroso. A cabeça desta está tua era de
ouro, o peito e os braços de prata, o ventre até os joelhos de bronze, dos joelhos
de ferro, os pés de ferro e de barro. Estando assim suspenso no que vias, viste
mais que se arrancava uma pedra de um monte, cortada dele sem os, e q,
dando nos pés da estátua, a derrubava. Então
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se desfizeram juntamente o barro, o ferro, o bronze, a prata, o ouro, e se
converteram em e cinza, que foi levada dos ventos, e nem aqueles metais
apareceram mais, nem o lugar onde tivessem estado; porém a pedra que tinha
derrubado a estátua cresceu, e fazendo-se um grande monte, ocupou e encheu
toda a terra».
Até aqui a relação do sonho, a qual Nabuco de novo ia ouvindo e
reconhecendo, lembrando-se outra vez de tudo pela mesma ordem com aquela
espécie de memória a que os filósofos chamam reminiscência.
Seguiu-se à história do sonho a interpretação dele, de que nós diremos
agora somente o que pertencer ao ponto em que estamos, reservando o de mais
(que é muito) para seus lugares. Disse pois Daniel que aquela grande estátua
significava a sucessão do Império do Mundo, e os diferentes metais de que era
composta as mudanças que o mesmo Império havia de ter em diferentes tempos
e para diferentes nações. A cabeça de ouro significava o Império dos Assírios, em
que Nabucodonosor naquele tempo reinava; e porque este Império, como
deixamos notado, foi o primeiro e o princípio de todos os Impérios, por isso estava
representado na cabeça, que é o princípio do corpo, e no ouro, que é o primeiro
entre todos os metais.
A prata, que é o segundo metal, significava o Império dos Persas, que foi o
segundo depois dos Assírios, e que se seguiu a eles, assim como o peito e
braços se seguem à cabeça.
O bronze, que é o terceiro metal, significava o Império dos Gregos, que foi
o terceiro depois dos Persas e se seguiu depois deles, assim como o ventre se
segue depois do peito.
O ferro finalmente, que é o quarto metal, significava o Império dos
Romanos, que foi e é o quarto Império, que sucedeu aos três primeiros; e assim
como as pemas e pés são a última parte do corpo humano, assim este é e -de
ser o último Império dos que naquela estátua se representavam.
Tudo o que até aqui fica dito é de fé, ou se segue imediatamente dela,
porque, ainda que Daniel na sua explicação do sonho não nomeou as três nações
de Persas, Gregos e Romanos, disse porém expressamente que
(Inicío de citação) Os três metais significavam três reinos,
que sucessivamente se haviam de continuar uns aos outros,
sinalando-os nomeadamente por primeiro, segundo e terceiro
reino: Et post te consurget regnum aliud minus te argenteum,
et regnum tertium aliud oereum [...] et regnum erit velut
ferrum; e consta pela experiência e pelo testemunho ,de todas
as histórias, o humanas, senão também das sagradas e
divinas, que os três reinos e impérios que sucessivamente se
seguiram ao dos Assírios foram o dos Persas, o dos Gregos e
o dos Romanos: ou, por o dizer com mais propriedade e
certeza, consta que o mesmo Império que primeiro foi dos
Assírios, vencidos estes por Ciro, passou aos Persas, e o
mesmo Império dos Persas, vencidos estes por Alexandre,
passou aos Gregos, e o mesmo Império dos Gregos, vencidos
estes por vários capitães de Roma, passou e se incorporou no
Império Romano. (Fim da citação)
E este é o verdadeiro, certo e indubitável sentido de interpretação de Daniel,
recebido, aprovado e seguido por todos os Padres e expositores deste lugar, em
que não há discrepância nem dúvida alguma.
A razão ou mistério por que o Império Romano se representou no ferro, diz
particularmente Daniel que foi porque, assim como o ferro lima, bate, corta e
doma os metais, sem haver algum que lhe possa resistir, assim o Império
Romano e o poder invencível de suas armas havia de abater, desfazer, sujeitar e
dominar todos os outros impérios. Et regnum quartum erit velut ferrum; quomodo
ferrum comminuit
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et domat omnia, sic comminuet et conteret omnia hoec. E quadra
maravilhosamente no Império Romano a figura das duas pernas e pés da estátua
em que foi representado; não porque, assim como os pés da estátua
sustentavam e tinham sobre si o peso e grandeza de toda ela, assim o Império
Romano teve sobre si e em si o peso e grandeza de todos os outros impérios que
nele se uniram e ajuntaram, mas porque o mesmo peso e grandeza, como acima
vimos, foi causa de que o Império Romano se dividisse em dois impérios ou duas
partes iguais do mesmo, com a qual divisão, pondo um pé no Oriente outro no
Ocidente, um em Roma outro em Constantinopla, ficaram verdadeiramente sendo
estas duas partes do Império Romano como duas colunas naturais de ferro, sobre
as quais toda a máquina daquele portentoso colosso se sustentava. Mas não
parava aqui a propriedade da semelhança. Assim como, na divisão de uma e
outra perna da estátua se representava a divisão do Império Romano nos dois
impérios, assim os dez dedos, uns maiores outros menores, em que se dividiam,
significavam dez reinos, em que a grandeza do mesmo Império Romano, na sua
última declinação, se havia de dividir. Para cuja inteligência se deve notar que
tudo o que hoje possuem os príncipes cristãos na Europa, e tudo o que na
Europa, na África e na Ásia possui o Turco, o umas divisões ou ,retalhos do
Império Romano, e as partes ou membros de que aquele vastíssimo corpo na sua
maior grandeza e potência se compunha, as quais lhe foram tirando as mesmas
nações que ele tinha sujeitado, restituindo-se outra vez a sua primeira liberdade e
soberania, como hoje estão, sem reconhecerem sujeição nem obediência alguma
ao Império Romano.
(Inicío da citação) Ad extremum (diz Perério) ex uno duplex
factum est Imperium Romanum: alterum Latinorum seu
Occidentis, allerum vero constantinopolitanum, Græcorum seu
Orientis. Adjice, quod omnia regna quæ nunc sunt apud
Christianos, et sub Imperio Turcorum, partes sunt Imperii
Romani tanquam rami ex una illa Imperii arbore decisi. (Fim
da citação)
E é tão verdadeira e tão antiga esta interpretação dos dez dedos da estátua, que
antes dos tempos de S. Hierónimo em que o Império Romano estava íntegro e
potentíssimo, sem ter perdido cousa alguma sua grandeza, era opinião comum
(como diz o mesmo santo) de todos os escritores eclesiásticos que o Império se
havia de dividir em dez reinos.
Assim se dizia e escrevia então, e assim o estamos vendo hoje,
comprovando-se a verdade desta interpretação com a experiência e confirmando-
se ser este o verdadeiro sentido da profecia com o cumprimento dela; porque, se
bem contarmos os reinos em que hoje está dividido ou despedaçado o que
antigamente foi e se chamava Império Romano, acharemos pontualmente que
são dez reinos: Portugal, Castela França, Inglaterra, Suécia, Dinamarca,
Moscóvia, Polônia e Estado ou Império Turco, e o mesmo Império Romano, que
compreende Alemanha e Itália. E se uns reinos destes são maiores, outros
menores, uns mais fortes outros menos, essa mesma é a propriedade dos dedos,
como nota neste lugar o mesmo autor alegado, e depois dele outros muitos:
(Inicio da citação) por decem digitos partim ferreos et partim
terreos significatur Romanum Imperium novissime iri in multa
regna multosque reges, quorum alii maiores et potentiores, alii
minores et imbecilliores futuri sint. (Fim da citação)
Ao diante dividiremos estes mesmos dedos da estátua em outras partes
que temos por mais proporcionadas; por agora baste esta divisão que nós
pusemos em primeiro lugar por ser mas fácil, e porque, com a notícia vu1gar que
se tem do Mundo, pode ser entendida e percebida de todos. E posto que Daniel
nesta profecia não declara com tanta miudeza que a divisão do Império Romano
-de ser ,pontualmente em dez partes ou dez reinos, em outra profecia, como
depois veremos, especifica este número, e nesta diz clara e expressamente que
os dedos
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dos pés da estátua significam a divisão do Império:
(Inicío da citação) Porro quia vidisti pedum et digitorurn
partem testæ figuli et partem ferream: regnum divisum erit.
(Fim da citação)
Passa finalmente o mesmo Profeta a declarar o mistério ou significação do
barro de que os dedos eram compostos em uma parte juntamente com outra de
ferro, e diz assim:
(Inicío da citação) ... quod vidisti ferrum mistum testæ ex
luto. Et digitos pedum ex parte ferreos, et parte fictiles: ex
parte regnum erit solidum, et ex parte contritum. Quod autem
vidisti ferrum mistum testæ ex luto, commiscebuntur quidem
humano semine, sed non adhærebunt sibi, sicuti ferrum
misceri non potest testæ.(Fim da citação)
Nas quais ,palavras diz Daniel que o barro dos pés dá estátua significava a
debilidade e fraqueza a que o Império Romano, depois de tanta potência, havia
de descair, principalmente na sua última idade e declinação, que é o estado em
que o vemos. Adverte, porém, o Profeta que não eram os dedos totalmente de
barro, senão compostos parte de barro e parte de ferro, porque nesse mesmo
estado de sua declinação, debilidade e fraqueza conservaria o Império algumas
partes sólidas em que permanecesse a dureza e fortaleza do antigo ferro de que
todo antes era formado, que é, ao pé da letra, o que se tem visto e experimentado
no Império Romano, desde o tempo de sua maior declinação a esta parte, em
tantas ocasiões de guerras e batalhas contra Turcos, contra hereges e contra
alguns príncipes cristãos, nas quais em defesa da própria e da Igreja têm pelejado
os exércitos imperiais com grande valor, disciplina e constância, e alcançado de
seus inimigos gloriosas vitórias. E a mesma oposição tão bizarra com que as
armas do Império nas fronteiras de Alemanha e Hungria, e o mesmo Imperador
em pessoa estão hoje resistindo às invasões do Turco e poder otomano, que
outra cousa são ainda, senão partes e partes muito sólidas daquele mesmo ferro?
Mas vindo às partes de barro: estas são (diz Daniel) aquelas províncias e
nações que, sendo partes do antigo Império Romano, se desuniram e tiraram de
sua sujeição, e formaram novos reinos, os quais, ainda que em si mesmos sejam
muito poderosos e fortes, e verdadeiramente se possam chamar partes de ferro,
em respeito porém do Império de que se apartaram e que tanto desuniram e
enfraqueceram com sua separação, não são nem se podem chamar senão partes
de barro. E tal é hoje o Reino de França, o de Inglaterra e da Suécia, e o mesmo
de Castela ou Espanha, em respeito do Império Romano. E porque não cuidasse
alguém que a união que se perdeu pela separação das coroas se recuperou e
supriu pela conjuração do sangue, casando os imperadores nas casas reais dos
outros príncipes e os reis na dos imperadores, e sendo estes muitas vezes eleitos
das mesmas famílias que do Império se apartaram, acode Daniel a esta objeção,
dizendo:
(Inicío da citação) Commiscebuntur quidem humano semine
«misturar-se-ão e ligar-se-ão no sangue», sed non
adhærebunt sibi «mas nem por isso se unirão nem ligarão
entre si», sicuti ferrum misceri non potest testæ, «bem como o
ferro se não pode unir nem ligar com o barro.» (Fim da
citação)
A tanta miudeza como isto desceu o Profeta, acrescentando em todas estas
circunstâncias novas e admiráveis confirmações à verdade da sua Profecia.
Quantas vezes se intentou na Europa que entre os imperadores e reis da
Cristandade se estabelecesse uma liga firme, interpondo-se para isso a
autoridade dos Sumos Pontífices, e quantas vezes se liaram os mesmos príncipes
entre si por meio de recíprocos casamentos, sem jamais se conseguir a união
desejada! Que imperador ou que rei houve na Cristandade muitos anos que,
se gota por gota lhe distinguirem o sangue, não tenha cada um dos outros
príncipes quase iguais partes nele? E que guerras vimos ou sabemos entre estas
coroas, em que o sangue que de uma e outra parte se defende, e ainda o que se
derrama, não seja o mesmo? Tão
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misturado anda o sangue nestas últimas relíquias do Império Romano, mas tão
resumido sempre, e por isso o mesmo império tão enfraquecido!
Nasceu juntamente com Roma esta fatal desunião contra o respeito do
sangue em Rômulo e Remo; viu-se no casamento de Pompeu com lia, filha de
Júlio César, e no de Marco Antônio com Octávia, filha de Octávio, quão facilmente
se desatam, antes, se amarram contra si, as ,mesmas mãos que- pelo matrimônio
se uniram. Mas não são estes exemplos tão antigos os de que fala a profecia de
Daniel, porque não são os dos pés da estátua ou os dos dedos dos pés.
Significam os dedos dos pés da estátua as últimas extremidades do Império
Romano e a sua duração, e, se eu me não engano, no mesmo dia em que isto
estou escrevendo se está cumprindo esta profecia. Que casa real há no Mundo
mais ligada com a do Império, que ramo que seja mais próprio daquele tronco,
e que sangue mais repetidamente unido por multiplicados casamentos que o de
Áustria e Castela? E que pessoa real também em que mais apertadamente
estejam atados estes vínculos e mais dobrados todos estes respeitos que na de
El-Rei Filipe IV, primo do Imperador, cunhado do Imperador, genro do Imperador?
Considere agora o Mundo o estado em que o mesmo Imperador se achou no ano
passado e em que se acha no presente, com os poderosos exércitos do Turco
metidos dentro na Áustria, e quase, batendo às portas de Praga, corte do Império,
os campos talados, as cidades destruídas, os homens barbaramente mortos a
sangue-frio, as mulheres e meninos cativos e transmigrados para a Turquia, os
templos e pessoas dedicadas ao templo em abomináveis sacrilégios profanados,
e, depois de profanados, abrasados e feitos em cinzas; e neste mesmo tempo em
que o ferro de Espanha se havia de unir todo ao ferro do Império, vemo-lo todo
infelizmente convertido contra Portugal, mas por isso mesmo infelizmente! Se
este ferro se unira ao Império contra o Turco, fora ferro, mas, porque se desune
dele em tal ocasião e se converte contra Portugal, é barro.
Barro e barro quebradiço, foi o ano passado e, por mais que se mostre ou
ameace ferro, barro há-de ser também no presente. Quanto melhor e mais
católica ação fora, e quanto de maior exemplo para todos os príncipes católicos e
de menor escândalo para os hereges e para os mesmos Turcos se o sangue
espanhol, e tão valoroso, que de uma é outra parte se desperdiça, com lástima e
lágrimas da Igreja, no campo de Portugal e Castela, se empregara com glória
imortal de ambas as coroas em defesa da Fé, da Cristandade, da Religião, e da
mesma cabeça dela, a quem tão de perto ameaça este golpe! Mas quando todo o
poder de Espanha se havia de achar unido contra o Turco em socorro de
Alemanha e Itália, despovoam-se os presídios de Itália, levantam-se os de
Alemanha e chamam-se todos a Castela contra Portugal, para que triunfem nas
bandeiras otomanas as luas de Mafoma, e se conquistem e sejam vencidas nas
portuguesas - as chagas de Cristo!
Este é o barro dos pés da estátua, esta é a fraqueza das extremidades do
Império Romano, esta é a queixa que ,Daniel explica e pondera na mesma
fraqueza, mostrando que a principal causa de toda ela é a desunião daquelas
partes que por serem mais conjuntas em sangue e parentesco, tinham obrigação
de ser mais unidas » commiscebuntur quidem humano semine » isto é,
casará o Imperador Fernando com Maria, irmã de el-Rei Filipe IV; casará Filipe IV
com Leonor, filha de Fernando; mas nas últimas extremidades do Império
Romano e nos seus maiores apertos e trabalhos não se acharam parentes nem
aderentes » sed non adhærebunt sibi.
Temos visto até aqui, desde a cabeça até os pés da estátua, o primeiro,
segundo, terceiro e quarto império; segue-se agora ver o quinto na mesma
história do sonho de Nabuco e na mesma interpretação de Daniel, o qual, depois
das
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palavras ultimamente referidas, continuou e concluiu desta maneira:
(Inicío da citação) In diebus autem regnorum illorum etc....
quæ ventura sunt postea. Quer dizer: aquela pedra, ó Rei,
que viste arrancar e descer do monte, que derrubou a estátua
e desfez em pó e cinza todo o preço e dureza de seus metais,
significa um novo e quinto Império que o Deus do Céu -de
levantar no Mundo nos últimos dias dos outros quatro. Este
Império os há-de desfazer e aniquilar a todos, e ele -de
permanecer para sempre, sem haver de vir jamais por
acontecimento algum a domínio ou poder estranho, nem
haver de ser conquistado, dissipado ou destruído, como
sucedeu ou há-de suceder aos demais. (Fim da citação)
Estas são as cousas futuras que Deus te quis mostrar, ó Rei, e este é o sonho
que tiveste e esta a verdade de sua interpretação
(Inicio da citação) et verum est somnium et fidelis
interpretatio ejus. (Fim da citação)
Depois de contar Daniel toda esta prodigiosa história, acrescenta
imediatamente o que Nabucodonosor lhe fez e o que lhe disse. O que lhe disse
foi:
(Inicío da citação) Vere Deus vester Deus deorum est, et
Dominus regnum, et revelans mysteria, quoniam tu potuisti
aperire hoc sacramentum. «Verdadeiramente o Deus que
adoras, ó Daniel, é o Deus dos deuses e a Senhor dos reis, e
o que conhece e revela os mistérios escondidos aos
homens, pois tu, alumiado por ele, pudeste declarar este
grande segredo e sacramento. (Fim da citação)
O que fez Nabuco no mesmo tempo, e ainda antes de dizer estas palavras, refere
o mesmo texto em as seguintes:
(Inicío da citação) Tunc rex Nabuchodonosor cecidit in
faciem suam, et Danielem adoravit, et hostias et incensum
præcepit ut sacrificarent ei. «Tanto que o rei acabou de ouvir
a Daniel, prostrou-se diante dele e adorou-o com o rosto em
terra, e mando que lhe oferecessem incenso e sacrifício.»
(Fim da citação)
Se isto fez Nabucodonosor a Daniel, quando lhe disse que seu império se havia
de acabar e passar outros quatro, que faria se lhe dissesse ser ele o senhor do
quinto? Naquele tempo pagava-se a interpretação de uma profecia infeliz com
adorações e sacrifícios hoje pagam-se as interpretações felicíssimas com
opróbrios e calúnias.
Mas este ponto ficará para seu tempo e para seu lugar. O que deste
somente quero recolher e deixa assentado é que, depois dos três impérios dos
Assírios, Persas e Gregos, que passaram, e depois do quarto, que ainda hoje
dura, que é o romano, -de haver um novo e melhor império que -de ser o
quinto e último. Esta suposição é de fé, porque assim o lemos nas Escrituras, é
de experiência, porque assim o mostrou o sucesso dos tempos, e é de razão,
porque assim se infere por bom discurso.
CAPÍTULO II
Segunda profecia de Daniel
Não é cousa nova em Deus quando revela cousas grandes, significar por
repetidas visões o mesmo mistério e por diferentes figuras a mesma revelação.
Assim mostrou antigamente a José suas felicidades, primeiro no sonho das
paveias dos onze irmãos que adoravam a sua, e depois no do Sol e nas estrelas
que lhe faziam a mesma adoração. Assim mostrou a El-Rei Faraó os sete anos da
fartura e os outros sete da fome, primeiro no sonho das sete vacas robustas e
sete fracas, e depois no das sete espigas gradas e sete falidas. E assim nos
tempos em que agora imos, depois de revelar Deus a Daniel o secreto do Quinto
Império, no sonho de Nabucodonosor e na visão daquela estátua, em outro sonho
e em outras figuras lhe
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fez segunda vez a mesma representação, nada menos misteriosa e cheia de
circunstâncias, que a primeira, antes mais portentosa em tudo e mais notável.
Passados 47 anos depois daquela visão (que foi o ano 54 do último
cativeiro de Babilônia), reinando já nela Baltasar, que sucedeu a Nabuco no
Império dos Assírios ou Caldeus, viu o Profeta Daniel em uma visão de noite, (ou
fosse dormindo e em sonhos, como tem a opinião mais comum dos Doutores, ou
fosse, como outros suspeitam, acordado, velando) viu, digo, que os quatro ventos
principais se davam batalha no meio do mar e levantavam uma horrível e furiosa
tempestade; mas o mar assim perturbado e temeroso não era mais que o teatro
em que haviam de sair a representar quatro figuras horrendas, a que o, profeta
chama bestas grantes: ...et ecce quatuor venti coeli pugnabant in mari magno, et
quator bestiæ grandes ascendebant de mari diversæ inter se.
(Inicío da citação) «Saiu a primeira besta semelhante a uma
leoa com asas de águia; pôs o Profeta nela os olhos, e não
levou assim muito tempo, até que lhe foram tiradas ou
arrancadas as asas. E logo levantou as mãos da terra e se
pôs em e ficou em figura de homem.», Vejam os leões
se lhes tira Deus as asas para [que] sejam homens! Prima
[bestia] quasi leæna et alas habebat aquilæ; aspiciebam
donec evulsæ sunt ale ejus, et sublata est de terra, et super
pedes quasi homo stetit, et cor hominis datum est ei
«Saiu a segunda besta semelhante a um urso, firmou-
se sobre os pés e parou; tinha três ordens de dentes, entre os
quais trazia três bocados, e diziam-lhe que comesse e se
fartasse de carne» Et ecce bestia alia similis urso in parte
stetit; et tres ordines erant in ore ejus, et in dentibus ejus, et
sic dicebant ei: Surge, comede carnes plurimas.
«Depois desta saiu a terceira besta semelhante a
leopardo, e tinha quatro asas como ave e quatro cabeças; e
foi-lhe dado grande poder.» Post hæc aspiciebam, et ecc alia
quasi pardus, et alas habebat quasi avis, quatuor super se et
quator capita erant in bestia et potestas data est ei. .(Fim da
citação)
Durava ainda a noite, diz o Profeta e por fim de todas entrou
(Inicío da citação) «a quarta besta, horrível, espantosa e
muito forte. Tinha os dentes de ferro grandes com que comia
e despedaçava tudo o que lhe caía da boca ou não queria
comer pisava com os pés. Era mui diferente de todas as
outras bestas, e tinha na testa dez pontas». Post hæc
aspiciebam in visione noctis, et ecce bestia Quarta terribilis
atque mirabilis, et fortis nimis, dentes ferreos habebat
magnos, comedens atque comminuens, et reliqua pedibus
suis conculcans: dissimilis autem erat ceteris bestiis, quas
videram ante eam, et cornua decem. (Fim da citação)
Enquanto tudo isto notava, Daniel via que de entre as dez pontas da quarta
besta saía uma ponta menor que as outras, a qual obrou grandes estragos e
outras cousas prodigiosas, cuja narração e mistérios pertencem ao Livro V desta
nossa História, para onde o reservamos, como também outras circunstâncias
desta mesma visão que expenderemos em seus lugares.
E continuando o que pertence a este,
(Inicío da citação) «levantou Daniel os olhos ao céu e viu
que se armava um tribunal de juízo, cheio com grande
aparato de horror, grandeza e majestade. Trouxeram-se
cadeiras e assentou-se em um alto trono um velho de
venerável ancianidade, a quem o Profeta chama Antigo dos
dias, cujo cabelo era todo branco, e brancas as roupas de que
estava vestido, aquele como arminhos, estas como neve; a
matéria do trono era fogo, umas rodas sobre que o trono
estava levantado também fogo, e de fogo também um rio
arrebentado que da boca lhe saía. Os ministros que lhe
assistiam de uma e outra parte eram milhares de milhares;
assentaram-se os conselheiros ou juizes assessores; vieram
os livros e abriram-se». (Fim da citação)
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Este é o aparato daquele tribunal e juízo, descrito ou construído ao da letra,
como fazemos, para maior crédito da verdade em tudo o mais que imos referindo,
e por isso repetimos as palavras do texto:
(Inicío da citação) Aspiciebam donec throni positi sunt, et
Antiquus dierum sedit: vestimentum ejus candidum quasi nix,
et capili capitis ejus quasi lana munda. Thronus ejus flammæ
ignis: rotæ ejus ignis accensus. Fluvius igneus, rapidusque
egrediebatur a facie ejus. Millia millium ministrabant ei, et
decies millies centena millia assistebant ei: judicium sedit, et
libri aperti sunt. (Fim da citação)
A primeira sentença ou execução que saiu deste juízo foi que à primeira,
segunda e terceira besta se tirasse todo o poder, limitando-se a cada uma o
tempo determinado de sua duração, o qual acabado, acabaram. Acabou também
a quarta besta. porque
(Inicío da citação) «viu o Profeta que fora morta
violentamente, e que todo aquele grande corpo perecera, e
que fora entregue ao fogo para ser queimado», não ficando
de tanta grandeza e bravosidade mais cinzas.Et vidi quoniam
interfecta esset bestia, et perisset cortus ejus, et traditum esse
ad comburendum igni; aliarum quoque bestiarum ablata esset
potestas, et tempora vitæ constituta essent eis usque ad
tempus et tempus. (Fim da citação)
Torna a dizer o Profeta que
(Inicío da citação) «ainda durava a noite e viu vir rodeado de
nuvens do céu um como filho do homem, o qual chegou ao
trono do Antigo de Dias e o ofereceram em sua presença. E
ele lhe deu o poder, a honra e reino de todo o Mundo, para
que todos os povos e todos os tribos, e todas as línguas o
obedeçam e sirvam. Este seu poder será eterno, eterno
também o reino, porque nunca jamais lhe será tirado»
Aspiciebam ergo in visione noctis, et ecce cum nubibus coeli
quasi filius hominis veniebat, et usque ad Antiquum dierum
pervenit; et in conspectu ejus obtulerunt eum. Et dedit ei
potestatem et honorem et regnum; et omnes populi, tribus et
linguæ itsi servient: potestas ejus, potestas æterna quæ non
auferetur; et regnum ejus, quod non cortumpetur. (Fim da
citação)
Esta é pontualmente a relação de todo o sonho ou história enigmática,
representada nele. «Com a qual (diz Daniel) ficou o meu espírito assombrado e
cheio de horror. E volvendo eu no pensamento que significariam aquelas cousas,
cheguei-me a um dos ministros que ali assistiam, pedindo-lhe me quisesse
declarar o verdadeiro sentido delas. E ele o fez assim e me ensinou a
interpretação e mistérios de tudo o que tinha visto».
Até aqui o mesmo Profeta, o qual, porém, referindo a dita interpretação,
passa em silêncio algumas circunstâncias dela, sem vida para não exceder a
brevidade que no princípio deste capítulo tinha prometido. Daniel somnium vidit,
et somninm scribens brevi sermone comprehendit; summatimque perstringens ait.
E a razão de passar por aquelas circunstâncias tão brevemente ou foi porque as
supôs bastantemente declaradas na visão do segundo capítulo ou sonho de
Nabucodonosor que acabamos de explicar, ou certamente porque as julgou de
menos importância ao seu interesse principal, que e a demonstração do Quinto
Império, exprimindo com grande particularidade e miudeza tudo o que pertence a
ele, como agora veremos.
Primeiramente diz Daniel (ou disse a Daniel o seu intérprete) que
(Inicío de citação) «aquelas quatro bestas grandes
significavam quatro reinos ou quatro impérios, que
sucessivamente se haviam de levantar no Mundo depois dos
quais se havia de seguir outro quinto reino ou império, que o
mesmo intérprete chama Reino dos Santos do Altíssimo, o
qual o de ter mudança nem variedade, nem outro reino
algum ou império que lhe suceda, porque -de durar para
sempre. quatuor bestiæ magnæ quator sunt regna, quæ
consurgent de terra. Suscipient autem
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regnum sancti Dei altissimi, et obtinebunt regnum usque in
sæculum et sæculum sæculorum. (Fim da citação)
Esta é a interpretação em comum que deu o intérprete do Céu a toda a
visão, sobre a qual nos explicaremos mais particularmente, declarando todas as
figuras dela pela mesma ordem com que foram saindo, advertindo o que o Profeta
e seu intérprete exprimiram, e suprindo com a exposição dos Doutores o que eles
calaram, coligido porém tudo imediatamente do mesmo que dizem. Não declara
Daniel que ventos fossem aqueles, nem que tempestades se levantaram no mar
antes de sair nele as quatro bestas, mas todos os expositores concordam em que
o mar significava o Mundo, e os ventos e tempestades que o alteram as
alterações, movimentos, guerras e perturbações que se costumam experimentar
no mesmo Mundo, quando nele se levantam novos impérios.
Mas, antes que passemos adiante, satisfaremos um argumento que nos
fica no texto de Daniel, porque não deixemos o inimigo nas costas. Diz o texto
que levantará Deus esta nova monarquia in diebus regnorum illorum, nos dias
daqueles impérios. Logo, esta monarquia não é futura se não passada, porque
dos quatro impérios já passaram totalmente os três, que são o dos Assírios, o dos
Persas e o dos Gregos, e o quarto, que é o Romano, também está na última
declinação. Respondo que o Profeta na sua interpretação se acomodou com
grande propriedade à figura do enigma que declarava. Porque Deus, no sonho de
Nabucodonosor, representou todos os quatro impérios, não como quatro corpos
ou quatro indivíduos, senão como um corpo ou um indivíduo. Por isso viu o
Rei não quatro estátuas senão uma estátua; e assim como da quatro corpos
dos quatro impérios se formou um corpo, assim das quatro durações dos quatro
impérios se há-de compor uma só duração, donde segue que com toda a verdade
se pode afirmar que sucederá nos dias daqueles Reinos o que sucede nos dias
de qualquer deles. Exemplo: a vida de um homem compõe-se de muitas idades, e
o que acontece em qualquer destas idades se diz com toda; propriedade e
verdade que acontece nos dias daquele homem. Da mesma maneira a duração
da estátua dos impérios era composta de diferentes idades. A sua primeira idade,
que é o tempo dos Assírios foi idade de ouro, a segunda, que é o tempo dos
Persas, foi idade de prata, a terceira, que é o tempo dos Gregos, foi idade de
bronze, a quarta, que é o primeiro Império dos Romanos, foi idade de ferro, a
quinta, que é este último tempo dos mesmos Romanos, é idade de ferro e barro.
E basta que nesta última idade, como decrépita, daquela estátua ou daqueles
reinos se haja de levantar o Quinto Império, para que com toda a verdade e com
toda a propriedade se verifique havê-lo Deus de levantar nos dias daqueles
reinos; in diebus regnorum illorum. Assim que o Império que promete Daniel não é
império já passado, senão que ainda está por vir.
CAPÍTULO III
Prova-se o mesmo contra outra profecia de Zacarias
Assim como Deus dobrou as visões, assim dobrou também as
testemunhas , e a mesma sucessão de impérios que revelou a Daniel em umas
figuras a mostra agora ao Profeta Zacarias em outras. A primeira profecia de
Daniel foi a mesma de Nabucodonosor, a segunda em tempo de Baltasar, que
sucedeu a Nabuco; es1a terceira de &carias em tempo de Hidaspes, que sucedeu
a Baltasar. De modo que, assim como iam sucedendo os reis, iam sucedendo as
profecias, e Deus
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multiplicando as revelações, mas sempre mostrando pela mesma forma primeiro
os quatro impérios e depois o quinto.
Diz pois o Profeta Zacarias, no capítulo VI da sua profecia, levantando os
olhos (ou levantado-lhos Deus da atenção das cousas presentes para a visão das
futuras), viu que do meio de dois montes de bronze saíam quatro carroças
puxadas por quatro cavalos, cada tiro ou parelha de diferentes cores. Pela
primeira tiravam cavalos melados, pela segunda murzelos, pela terceira pombos,
pela quarta remendados; assim parece que se deve construir o texto na forma da
nossa cavalaria, mas na frase do mesmo texto chama aos da primeira carroça
ruivos, aos da segunda negros, aos da terceira brancos, aos da quarta vários, e
estes entre os outros diz que eram os mais fortes.
Vendo estas carroças Zacarias e não entendendo o que significavam, diz
que o perguntou a um anjo que falava dentro nele. Mas, ou porque este anjo
falasse mais culto que o de Daniel, ou porque Zacarias se entendia por dentro
com ele acham os Doutores que explicou um enigma com outro, e mais trabalho
tem dado aos expositores deste lugar a declaração do Anjo que a visão do
Profeta. Respondeu pois o Anjo que aquelas quatro carroças (dos montes não
disse nada) eram quatro ventos doces que assistiam ao dominador da Terra para
executarem suas ordens; e que os cavalos negros tinham saído contra as terras
do Norte, e após eles os brancos; os vários saíram contra as do Sul, e destes os
mais fortes trataram de discorrer por toda a Terra, e que com licença do
Dominador a tinham passeado toda.
Até aqui a interpretação do Anjo, na qual e na visão do Profeta seguiremos
a comum sentença dos Doutores, que é desta maneira: estas carroças significam
os mesmos quatro impérios que Deus mostrou a Daniel, e foram estes impérios
representados ao Profeta em figura de carroças, e declarados pelo Anjo em
metáfora de ventos, para mostrar a violência e velocidade com que seus
fundadores conquistariam e sujeitariam por armas os reinos terras e gentes de
que se haviam de formar os ditos impérios; porque, ao uso daqueles tempos, a
principal força dos exércitos consistia nas carroças armada que eram as que
faziam maior estrago na guerra como se vê nos casos tão celebrados.
Estas carroças diz o Anjo que estavam prontas como ventos para
execução dos mandados do Dominador da terra, porque Deus, como supremo
Senhor dos Exércitos, se servia sempre das armas de todas as nações,
principalmente destas quatro, como tão poderosas para a execução de seus
divinos decretos, os quais por altos e imutáveis são comparáveis aos dois montes
de bronze donde saíam as carroças. A primeira carroça representava o Império
dos Assírios, e tiravam por ela cavalos ruivos, que é cor de fogo, para significar os
danos, assolações e incêndios com que os Assírios conquistaram destruíram e
abrasaram o povo hebreu, principalmente no cativeiro de setenta anos a que eles
com razão chamavam fornalhas da Babilônia. A segunda carroça representava o
Império dos Persas, e tiravam por ela cavalos negros, cor de tristeza e luto,
porque também os Persas afligiram e foram lutuosos aos Hebreus, principalmente
naquela grande aflição, quando El-Rei Assuero, marido de Ester, persuadido
pelos enganos de Amão, tinha condenado a morrer em um dia com crueldade
inaudita toda a nação hebréia. A terceira carroça representava o Império dos
Gregos e tiravam por ela cavalos brancos, cor pacífica e alegre, porque, exceto
Antíoco (cuja tirania também serviu de matéria gloriosa aos triunfos dos
Macabeus) os outros príncipes gregos sempre foram benéficos aos Hebreus, e
mais que todos Alexandre Magno, fundador daquele império, cuja majestade,
como escreve José, não duvidou de adorar no templo ao
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pontífice Jada. Finalmente, a quarta carroça representava o Império Romano, e
tiravam por ela cavalos vários, porque os Romanos, assim no ódio como na
benevolência, foram vários para com os Hebreus, uns amigos e propícios, como
Júlio César, Augusto, Tibério, Cláudio; outros inimigos, perseguidores e cruéis,
como Pompeu, Calígula, Nero, Vespasiano, Adriano, Tito.
Restam por explicar os diferentes caminhos que disse o Anjo fizeram estas
carroças, e primeiro que tudo se deve muito notar que da primeira carroça não
disse cousa alguma, que é admirável confirmação de serem significados nas
quatro carroças os quatro impérios. Porque, como a primeira carroça significava o
Império dos Assírios, que havia muito tempo florescia, não tinha necessidade
de intérprete nem declaração. E assim declarou somente o Anjo os três impérios
seguintes, cuja fundação e sucessos estavam ainda por vir. A segunda carroça,
dos cavalos negros, que são os Persas, diz o Anjo que caminhou para as terras
do Norte; e assim foi, porque os Persas devastaram e ocuparam a Babilônia que
fica para a parte do Norte da Judeia, e ali acabou o Império dos Assírios. A
terceira carroça, a dos cavalos brancos, diz que foi atrás da primeira, e assim
sucedeu, porque os Gregos venceram e destruíram a Dario, último imperador dos
Persas, junto à mesma Babilônia onde Alexandre, como escreve Crítio e Plutarco,
tomou o nome de Rei da Ásia. E a quarta carroça, dos cavalos vários, diz que foi
para o Sul, e assim consta das histórias, porque os Romanos passaram por várias
vezes à conquista do Egito, que fica ao sul de Judeia, e depois da vitória
chamada actíaca, em que Augusto desbaratou a Cleópatra e Marco Antônio,
reduziu o mesmo Egito a província, como escreve Suetónio, e ali acabou o
Império dos Gregos. De toda esta combinação das histórias com a profecia, e da
consonância e harmonia dos tempos, lugares, nações, princípios, fins e todos os
sucessos desses Impérios o ajustados com as propriedades das figuras que as
representavam, se faz certo e evidente argumento de que esta interpretação é a
sólida e verdadeira, e que isto foi o que Deus e o Anjo quiseram significar ao
Profeta.
Ultimamente diz que os cavalos mais fortes ou os robustíssimos da quarta
carroça quiseram correr e passear toda a Terra, e que a correram e passearam; e
assim se verificou nos Romanos, que com sua potência e vitórias se fizeram
senhores do Mundo e o meteram debaixo dos pés. Estes robustíssimos dos
Romanos foram os seus maiores capitães e imperadores, como Cipião, Pompeu,
César, Augusto, Vespasiano, Trajano, Constantino, Teodósio, etc. E posto que os
Romanos absolutamente não conquistaram o Mundo como é em si, porque nunca
chegaram à América, que mais é uma metade que parte do Mundo, contudo diz o
Anjo que correram e passearam todo o Mundo no mesmo sentido em que
Augusto, no seu edicto do tempo do nascimento de Cristo, mandou que todo o
Mundo se alistasse, ut describeretur universus orbis. Mas Sanchez, para explicar
a palavra per omnem terram em toda a sua largueza, quer que não nas terras
do Mundo Antigo, senão nas da América, Mundo Novo, e nas da Índia Oriental,
nunca conquistada nem ainda conhecidas pelos Romanos. E diz que aqueles
robustíssimos de que fala o Anjo são os Espanhóis, verdadeiramente
valentíssimos, audacíssimos e fortíssimos, pois conquistaram estas regiões novas
e incógnitas, não pelejando contra os homens, como os antigos Romanos, senão
contra os ventos, contra os mares, contra o Céu, contra o Sol, contra todos
elementos e contra a mesma natureza, a que venceram e contrastaram. E para
este autor perfilhar ou acomodar aos Romanos, conforme a profecia, estas
vitórias próprias dos Espanhóis, e que de nenhum modo; parece lhe competiam,
leva o direito desta herança à origem que os Reis de Espanha trazem dos Godos,
os quais Godos, como já tinha
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notado Ribeira, foram estipendiários dos Romanos e pelejaram debaixo de suas
bandeiras, ajudando a defesa e conquista do Império, como fizeram ao Imperador
Maximino contra os Partos e a Constantino contra Licínio. Mas esta aplicação,
como violenta e trazida de tão longe, com razão não é admitida de Cornélio à
lápide, que impugna facilmente. Contudo, porque esta glória que Sanchez dá aos
Espanhóis toca pela maior e melhor parte aos Portugueses, pelas vitórias do
Oriente a que o mesmo Cornélio chama ad miraculum usque illustres, por não
deixar perder a nossa, nação um título tão honrado como serem chamados por
,boca de um anjo os mais fortes de todos os Romanos, digo que os Portugueses
e todos os Espanhóis se podem e devem entender debaixo do nome de
Romanos, no sentido desta profecia, porque Espanha e Portugal foram colônias
dos Romanos, e parte não do Império, senão do povo romano, e verdadeiros
cidadãos romanos; ao que não obstava serem de diferente nação, como se vê em
S. Paulo, que, sendo hebreu, apelou para o César, alegando que era cidadão
romano e que só no tribunal de César podia ser julgado.
Além de que muitos portugueses eram filhos e netos dos Romanos, como
muitos romanos de Portugueses, pela união e comércio destas duas nações,
assim em Portugal, onde viviam os presídios romanos, como nas guerras dos
mesmos Romanos, onde os Portugueses iam servir e merecer debaixo de suas
bandeiras. E posto que qualquer destas razões e muito mais todas juntas são
bastantes para que sem impropriedade se possa entender os Portugueses
debaixo do nome de Romanos, o fundamento principal sólido e certo desta
interpretação é ser esta a mente e sentido em que falaram os mesmos Profetas,
os quais entendem Império Romano todo o corpo íntegro do dito Império, e todas
as partes de que ele se compôs e inteirou quando esteve em sua maior grandeza,
ainda que essas mesmas partes depois se desunissem do mesmo Império e lhe
negassem obediência.
-se claramente esta verdade na primeira profecia de Daniel, onde se diz
que os s e dedos da estátua eram compostos de ferro e barro, e que o barro e
o ferro o estavam unidos, na qual divisão de dedos e desunião de metais se
significava que o Império Romano se havia de dividir em muitos reinos e
senhorios menores, e que esses se haviam de desunir da sujeição e obediência
do mesmo Império. Assim o interpretou o mesmo Daniel:
(Inicío da citação) Porro quia vidisti pedum et digitorum
partem testæ figuli, et partem ferream, regnum divisum erit;
(Fim da citação)
as quais palavras comentando, Cornélio diz assim:
(Inicío da citação)Potissimum vero divisum fuit hoc regnum
ideoque enervatum cum variæ gentes ab ejus obedientia se
subduxerunt, sibique proprios reges crearunt, uti fecerunt
Hispani, Poloni, Angli, Franci, etc. (Fim da citação)
De maneira que a divisão dos dedos e a desunião dos metais dos pés da estátua
significava os reinos dos Espanhóis, Polacos, Ingleses, Franceses e os demais,
que, sendo antes sujeitos aos imperadores romanos, lhes negaram a sujeição e
se desuniram, deles. Mas contudo (que é o nosso intento) ainda assim divididos e
desunidos se computam e reputam por parte da mesma estátua e do mesmo
Império Romano, ainda que o sejam romanos, porque realmente o partes
daquele corpo e daquele todo, ainda desunidos dele. Destas nações pois e destes
reinos de que se compunha o Império Romano, aqueles homens, que eram os
mais fortes e valentes de todos, não se contentaram com as terras dos outros
impérios, mas que intentaram discorrer e passear toda a redondeza da Terra.
Estes foram os Espanhóis, e entre os Espanhóis muito particularmente os
Portugueses; porque a conquista dos mares e terras do Oriente, pela distancia
remotíssima das terras, pela dificuldade de navegações, pela diferença dos
climas, pelo valor e potência das nações que se conquistaram, foi empresa de
muito maior valor, resolução e esforço que a dos Castelhanos. Assim
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que, considerando todo o corpo do Império Romano e todas suas empresas, os
fortes dos Romanos foram os Cipiões, os Pompeus, os Césares, os Augustos; os
fortíssimos foram os Espanhóis, e entre esses Espanhóis os fortíssimos dos
fortíssimos foram os Portugueses. Não somos nós que o dizemos, senão o anjo
que falava em Zacarias:
(Inicío da citação) Qui autem erant robustissimi, exierunt, et
quærebant ire et discurrere per omnem terram; et dixit: Ite,
perambulate terram: et perambalaverunt terram. (Fim da
citação)
Finalmente, para que a profecia se entenda dos Espanhóis e Portugueses, era
justo...
LIVRO II
Em que se mostra que Império há-de ser este
Suposto como deixamos assentado que há-de haver no Mundo um quinto e
novo Império, segue-se que digamos que Império -de ser: e assim o faremos
em todo este II Livro.
CAPÍTULO II
Que o Quinto Império é o Império de Cristo e dos Cristãos
É conclusão certa e de que este Quinto Império de que falamos,
anunciado e prometido pelos Profetas, é o Império de Cristo e dos Cristãos.
Prova-se dos mesmos textos e profecias alegadas, sobre as quais fundaremos
tudo o que dissermos nesta história, para maior clareza e firmeza dela, pois não é
cerzida de pedaços ou retalhos das Escrituras, senão cortada toda da mesma
peça.
Primeiramente aquela pedra que derrubou a estátua e desfez as quatro
monarquias figuradas nos quatro metais, e depois cresceu e a sua grandeza
ocupou e encheu toda a Terra, é Cristo, o qual em outros muitos lugares da
Sagrada Escritura se chama Pedra. Ele foi a pedra que no deserto matou a sede
aos filhos de Israel e os acompanhou até a terra da Promissão. Ele foi a pedra
com que David derrubou ao gigante, em significação de que por meio e virtude de
Cristo havemos de vencer o Mundo e o Demônio. Ele foi a pedra que viu
Zacarias, e sobre ela sete olhos, super lapidem unum sentem oculi, que são os
sete dons do Espírito Santo, o qual infundiu todo e descansou sobre Cristo. Ele foi
a pedra sobre que adormeceu Jacob, quando se lhe abriu o Céu e viu a escada;
ele a pedra sobre que sustentou os braços levantados de Moisés, quando venceu
os exércitos de Amalec; ele finalmente a pedra angular, a que uniu os dois povos
gentílicos e judaico, e a pedra fundamental e provada sobre que se fundaram na
Lei antiga a Igreja de Sion e na nova a do mesmo Cristo. Esta pedra pois foi a
que, arrancada do monte, derrubou a estátua e desfez os quatro impérios dos
Assírios, Persas, Gregos e Romanos, para fundar e levantar o seu sobre todos
eles. Assim o dizem conformemente neste lugar não todos os Padres e
expositores católicos, senão também os hereges e amesmo Rabinos, os quais
acertam em dizer que nesta pedra está profetizado o Reino do Messias, e erram
somente em não crerem que o Messias é Cristo.
Diz Daniel que esta pedra caiu de um alto monte, arrancada dele sem
mãos. E este monte ou é o Céu e o seio do Eterno Padre, donde desceu Cristo
quanto a divindade, como interpreta S. Ambrósio; ou é a nação hebraica,
levantada naquele tempo como monte entre todas as outras nações do Mundo, da
qual o Verbo se dignou tomar e unir a si a humanidade, como explica S.
Agostinho; ou finalmente é a
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Virgem Maria, Senhora Nossa, sublimada como monte altíssimo sobre todas as
criaturas, como a mais perfeita e excelente de todas.
Esta é a sentença comum e mais recebida dos Padres e expositores deste
lugar, com a qual concorda admiravelmente a advertência de Daniel, que a pedra
foi arrancada ou cortada do monte sem mãos: Lapis abscissus de monte sine
manibus; porque na geração temporal de Cristo, sendo verdadeiro homem, não
tiveram parte mãos de homem, toda foi obra sobrenatural e divina, suprindo o
Espírito Santo e a virtude do Altíssimo o que nela faltou de concurso humano.
Assim o notou o mesmo S. Agostinho, S. Hierónimo, S. Ireneu, S. Júlio, S.
Epilanio, Teodoreto, Ruperto e muitos outros Padres.
Na segunda visão de Daniel ainda consta mais claramente e por termos
mais expressos que este Império é o de Cristo....
(Inicío da citação) et ecce (diz o Profeta) cum nubibs
cæli quasi filius hominis veniebat, et usque
ad.Antiquum dierum pervenit: ...et dabit ei potestatem
et honorem et regnum, etc.; (Fim da citação)
De sorte que a pessoa a quem foi dado por Deus o Quinto Império de que Daniel
fala neste lugar (como vimos) era o Filho do Homem. E que cousa há mais certa e
freqüente no Evangelho que chamar-se Cristo Filho do Homem? Quem dicunt
homines esse filium hominis? autem homini illi per quem filis hominis tradetur!
Tunc videbunt filius hominis venientem in nubibus cæli. Não repito os autores
desta explicação, porque são todos, e porque o texto é o claro que não
mister intérpretes. reparou Maldonado que não se chama Cristo neste lugar
Filho do Homem absolutamente, sendo quasi filius hominis, para denotar o
Profeta que entre este homem e os outros homens havia diferença: os outros são
puros homens, Cristo é homem e Deus juntamente; assim que aquele quasi
significa a falta de substância humana, posto que tão superiormente suprida com
a divina. E porque Deus não havia de ter subsistência humana como os outros
homens, posto que tivesse a mesma natureza como eles, não lhe chama por isso
o Profeta homem, senão quase homem-quasi filius hominis. Quem havia de
duvidar que em um quasi cabia uma distancia infinita?
A terceira visão de Zacarias confirma ainda com maior propriedade ser
Cristo o Senhor deste Império. dissemos que a coroa ou coroas que foram
postas sobre a cabeça de Jesus, filho de Josedec significavam o mesmo Império
Quinto profetizado por Daniel: e que seja Cristo o soberaníssimo Monarca que
Zacarias viu coroar naquela figura, não só o confessa a Igreja Universal na
aplicação deste lugar, e a opinião comum de todos os Padres e Doutores, senão
ainda muitos hebreus, que sem ódio escreveram antes de Cristo. Communis est
Patrum sententia et multorum ex Hebræis quibus accedit Chaldeus sermonem hic
esse de Messsiah, diz o doutissimo Sanchez. De maneira que na primeira visão
foi Cristo, significado com o nome comum e metafórico de pedra, na segunda com
o nome particular de Filho do Homem, na terceira com o nome propriíssimo de
Jesus, Jesus filii Josedeci: e em todas estas três visões em que Deus revelou aos
seus Profetas a grandeza e majestade futura do Quinto Império, e os quatro a que
ele devia de suceder, lhes mostrou , e revelou também que o Senhor e o Monarca
deste Império havia de ser Cristo.
Com muitos outros textos da Escritura pudéramos confirmar esta mesma
conclusão, mas porque tudo o que havemos de dizer nesta história será uma
continuada prova e confirmação dela, bastem os textos alegados, que são, como
dizia, os fundamentais de toda ela.
Mas porque no princípio deste capítulo dissemos que o Quinto Império era
o Império de Cristo e dos, Cristãos, tornemos à segunda visão de Daniel, onde
Deus
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para consolação dos fiéis quis que nos ficasse expressa e revelada esta tão
gloriosa verdade.
Depois de referir Daniel como Deus Padre, a quem ele chama o Antigo dos
dias dera ao Filho do Homem aquele novo reino ou império, perguntou o mesmo
Profeta a um dos anjos que assistiam ao trono a significação das cousas que via,
e ele lhe disse por três vezes que o reino e império que vira dar ao Filho do
Homem era o reino e império que os santos do Altíssimo haviam de ter neste
Mundo. No verso 18 daquele capítulo (que é o VII) diz assim:
(Inicío da citação) Suscitient autem regnum Sancti Dei
altissimi: et oblinebunt regnum usque in sæculum et sacculum
sæculorum. E no verso : Donec vénit Antiquus dierum, et
dierum, et judicium dedit sanctis Excelsi, et tempus advenit, et
regnum obtinuerunt sancti. (Fim da citação)
E no 27:
(Inicío da citação) Regnum autem, et potestas, et magnitudo
regni quæ est subter omne cælum, detur populo sanctorum
Altissimi; cujus regnum, regnum sempiternum est, et omnes
reges servient ei et obedient. (Fim da citação)
Muitas cousas e muito grandes disse nestas palavras o Anjo, as quais ficam
reservadas para se explicarem em seus lugares por agora só nos serve (o que diz
e repete tantas vezes o Anjo) que aquele mesmo Reino que o eterno Padre deu
ou há-de dar a seu filho Cristo é o Reino e o Império dos Santos, isto é, dos
Cristãos. Assim o diz expressamente sobre estas palavras de Daniel o seu grande
comentador Perério, chamando a este Quinto Império Regnum Christi e
Christianoram, Reino de Cristo e dos Cristãos.
(Inicío da citação) Deinceps (diz ele) pagnandum nobis est
cum Judæis qui Christianis infensi infestique et iniquo animo
ferentes, quæ de illo quinto Regno tam præclara et gloriosa
prædix Daniel, ea ad Regnum Christi et Christianorm
accommodari, etc. (Fim da citação)
E que pelo nome de Santos, de que usa Daniel, se entendam e devam
entender os Cristãos não é explicação de intérpretes da Escritura, senão frase
muito corrente e ordinária em toda ela. S. Paulo, escrevendo aos cristãos da
cidade de Filipe, em Macedônia,. no título ou sobrescrito da carta diz assim:
(Inicío da citação) Omnibus Sanctis in Christo qui sunt
Philippis «a todos os Santos em Cristo que estão em
Philippis». (Fim da citação)
E escreveu aos cristãos de Roma:
(Inicío da citação) Omnibus qui sunt Romæ dilectis Dei,
vocatis Sanctis. (Fim da citação)
E na mesma epístola, exortando aos mesmos Romanos a que socorressem com
suas esmolas aos cristãos necessitados:
(Inicío da citação) Necessitatibus Sanctorum
communicantes. (Fim da citação)
E saudando aos Filipenses no fim da epístola citada, em nome de alguns cristãos
que estavam em serviço do Imperador que então era Nero:
(Inicío da citação) Salutant vos omnes Sancti maxime autem
qui de Cæsaris domo sunt: «saúdam-vos, diz, todos os
Santos, e principalmente os que estão em casa de César».
(Fim da citação)
Finalmente este era o ordinário modo de falar da primitiva Igreja, e assim lemos
no capítulo IX dos Atos dos Apóstolos que usou da mesma frase Ananias,
representando Cristo os grandes males que Saulo tinha feito contra os Cristãos:
Quanta mala Sanctis tuis fecerit. E a este uso se chamaram as igrejas dos
Cristãos igrejas dos Santos, conforme o texto da Epístola ad Corinthios:
(Inicío da citação) In ecclesiis Sanctorm doceo.(Fim da
citação)
A razão deste nome é tomada da santidade da Lei de Cristo que professam
os Cristãos, os quais, assim como de Cristo se chamavam cristãos, assim da Lei
santa de Cristo se chamaram santos. E este é o sentido em que Daniel e o Anjo
falaram naquela visão chamando a Cristo Filho do Homem, com a mesma frase
com que depois se nomeou a Cristo, e chamando ao Reino dos Cristãos Reino
dos Santos, com a mesma frase com que depois se nomearam os Cristãos, bem
assim como já antes de Daniel o tinha profetizado com o mesmo espírito Isaías:
(Inicío da citação) Et vocabunt eos populus sanctus,
redempti a Domino. (Fim da citação)
E aquele povo remido por Deus será chamado publicamente Povo santo, que é
em próprios termos o que depois se
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viu na Igreja e o que diz aqui o Anjo:
(Inicío da citação)Regnum autem et potestas detur populo
sanctorum. (Fim da citação)
E ambos estes nomes e as etimologias deles compreendeu S. Paulo no princípio
da Epístola aos Romanos, em que lhe chama
(Inicío da citação) Vocati Jesu Christi et vocatis Sanctis, (Fim
da citação)
chamados de Jesus Cristo e chamados santos.
CAPÍTULO II
Pergunta-se se este Império de Cristo e dos Cristãos há-de ser neste
Mundo ou no outro.
Deu motivo a esta questão, entre os Padres gregos, o Teodoreto, e entre
os latinos, Tertuliano, os quais concordavam com a verdade da nossa História em
dizerem com os demais que o Quinto Império é o de Cristo e dos Cristãos, mas
que tem para si que há-de ser este Império no Céu e não na Terra. Fundam a sua
opinião nas mesmas visões de Daniel, desta maneira:
Antes que a pedra cortada do monte (que é Deus e o seu Império)
crescesse a toda aquela sua grandeza (diz Teodoreto), já todos os outros reinos e
impérios do Mundo estavam derrubados e caídos, já o vento os tinha levado pelos
ares, desfeito em e em cinza, e tinham desaparecido totalmente do Mundo,
sem haver mais que a memória deles, nem se poder achar ou conhecer o lugar
onde tivessem estado, como consta do texto:
(Inicío da citação) Tunc contrita sunt pariter ferrum, testa,
æs, argentum et aurum, et redacta quasi in favillam æstiva,
areæ quæ rapta sunt vento; nullusque locus inventus est eis;
lapis autem qui percusserat statuam factus est mons magnus.
(Fim da citação)
Sendo logo certo como é que os reinos, cidades, repúblicas e impérios do Mundo
se não hão-de desfazer em cinza, nem se hão-de acabar, senão quando se
desfizer e acabar o mesmo Mundo na última ruína dele, segue-se que o Império
de Cristo e dos Cristãos, de que fala Daniel, e aquela sua grandeza prodigiosa e
que há-de crescer, não há-de ser neste Mundo, senão no outro.
Tertuliano, fundado na mesma visão, e muito mais na segunda, argumenta
assim Este Reino ou Império de Cristo e dos Cristãos -de ser Reino perpétuo,
incorruptível e eterno, como dizem expressamente as palavras de ambos os
textos:
(Inicío da citação)Regnum quod in eternum non dissipabitur;
Regnum quod non corrumpetur; Regnum usque in sæculum et
sæculum sceculorum; Regnu sempiternum. (Fim da citação)
Os reinos deste Mundo todos de sua própria natureza são corruptíveis, e todos,
por mais que durem e permaneçam, hão-de ter um com o mesmo Mundo, o qual
é de fé que se há-de acabar. Logo, se o Reino e Império de Cristo e dos Cristãos
-de ser perpétuo, incorruptível e eterno, clara e manifestamente se segue que
não há-de ser império da Terra, senão do Céu.
Contudo a sentença comum dos Santos, e recebida e seguida como certa
de todos os expositores, é que este Reino e Império de Cristo e dos Cristãos
profetizado por Daniel (qualquer que haja de ser) é Império da Terra e na Terra. E
posto que os autores desta sentença mais supõem que aprovam, nós
aprovaremos e demonstraremos com os textos das mesmas visões.
Daquela pedra que representava a Cristo e seu Império, diz Daniel, na
primeira visão, que cresceu e se fez um monte tão grande que ocupou e encheu
toda a terra. Lapis autem qui percusserat statuam factus est mons magnus et
implevit universam terram. Infiro agora assim:
Esta pedra e este Império de Cristo, que derribou os outros impérios,
cresceu? Logo, não é império do Céu nem depois de acabado o Mundo; porque o
Reino e Império de Cristo, depois de acabado o Mundo, de nenhum modo há-de
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crescer nem pode crescer. Não -de crescer nem pode crescer no número dos
homens, porque, depois de acabado o Mundo e depois do Dia de Juízo, não -
de haver mais homens que vão ao Céu; não -de crescer nem pode crescer na
glória dos bem-aventurados, porque, desde aquele ponto, cada um -de receber
por inteiro toda a glória devida a seus merecimentos; e como se acabou o tempo
de mais merecer, assim se acabou o tempo de mais alcançar. Logo, se o Reino
de Cristo e dos Cristãos -de crescer depois daquele tempo, e crescer a uma
grandeza tão imensa, segue-se que esse crescimento -de ser neste Mundo e
não no outro. Mas para que são conseqüências, se as mesmas palavras do texto
o dizem claramente?
(Inicío da citação)Factus est mons magnus et implevit
universam terram. (Fim da citação)
Se a pedra, crescendo, se fez um grande monte, o qual grande monte encheu e
ocupou toda a Terra, e este é o Império profetizado de Cristo, bem claro se
mostra que é Império da Terra e não do Céu e que na Terra e não no Céu -de
ter toda esta sua grandeza.
Não negamos, porém, nem podemos negar que este Reino e Império de
Cristo e dos Cristãos há-de durar também com o mesmo Cristo e os mesmos
Cristãos depois de bem-aventurados por toda a eternidade no Céu; mas nem por
isso há-de deixar de ter na Terra a grandeza que nestes textos lhe é profetizada e
prometida, antes a razão de haver de ter tanta grandeza no Céu, é porque a terá
primeiro na Terra, no Céu consumada e perfeitíssima, como se deve ao estado do
Céu. Desta maneira se concilia e concorda facilmente a opinião de Tertuliano e
Tedoreto com a verdade da nossa; este é o mais ordinário sentir de todos os
expositores de Daniel, os quais dizem que este Reino e Império de Cristo e dos
Cristãos há-de ser incoado na Terra e consumado no u, mas com tanta
discrepância de tempos, como veremos em seu lugar, que agora trataremos
qual seja em comum o deste Império.
Os termos da segunda visão de Daniel ainda são (se podem ser) mais
evidentes.
(Inicío da citação) Regnum autem et potestas et magnitudo
regni, quæ est subter omne cælum, detur populo sanctorurn
Altissimi. «O Reino ou Império que se há-de dar ao povo dos
Santos do Altíssimo, que são os Cristãos, é o poder e
grandeza de todos os reinos que debaixo do Céu.» (Fim
da citação)
Podia-se dizer cousa mais clara? Parece que estava antevendo Daniel que
havia de haver quem interpretasse esta sua visão em diferente sentido do que ele
a escrevia, dizendo que este Reino havia de ser no Céu e não na Terra, pois
posto se entenda e saiba que não é assim, adverte e nota sinaladamente o
Profeta que não é Reino do Céu, senão de debaixo do Céu:
(Inicío da citação) magnitudo regni, que est subter omne
cælum, detur populo sanctorum Altissimi. (Fim da citação)
Nas palavras que se seguem a estas declara mais em particular Daniel (ou
o Anjo por ele) quem hão-de ser os súbditos deste Império, e diz em nova
confirmação do que dizemos, que serão todos os reis do Mundo, os quais o hão-
de servir e lhe hão-de obedecer:
(Inicío da citação) et omnes reges servient ei et obedient.
(Fim da citação)
Se os reis hão-de servir e obedecer a este Império, bem se colhe que -
de ser Império da Terra e não do Céu, porque no Céu não se serve, nem se
obedece, nem se merece, e se goza o prêmio do que se obedeceu, do que se
serviu e do que se mereceu na Terra. Da Terra é logo este Império, e na Terra é
que há-de ser servido e obedecido e reconhecida de todos os reis dela, como
bem advertiu Cornélio, comentando as palavras subter omne cælum, pouco atrás
citadas:
(Inicío da citação)Non quæ est super, sed q est subter
omne cælum, id est in omni terra, sive in omni plaga cælo
subjecta. (Fim da citação)
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Responder aos seus argumentos é igualmente fácil. Ao de Teodoreto
dizemos que o texto de Daniel fala das quatro monarquias representadas nos
quatro metais da estátua, as quais nem cada uma por si nem todas juntas
compreenderão nunca toda a grandeza da Terra; e quando se diz que ficaram
desfeitas em pó e desapareceram, e foram voadas do vento, e não se achou mais
o lugar onde estivessem, o quer dizer que as terras, cidade e gentes das ditas
monarquias se haviam de acabar e extinguir totalmente (como -de acontecer a
todo o Mundo no Dia de Juízo) senão que havia de se acabar seu mando, seu
poder, seu império, sua soberania, como verdadeiramente se acabou a dos
Assírios pela sucessão dos Persas, e a dos Persas pela sucessão dos Gregos, e
a dos Gregos pela sucessão dos Romanos e se acabará também a dos Romanos
pela sucessão do Quinto Império. E isto quer dizer em frase da Escritura
(Inicío da citação) non inventus est locus ejus-que «se não
achou mais o seu lugar», (Fim da citação)
porque sucederam outros nele, como se no exemplo de Judas, de quem fala a
Escritura pelos mesmos termos, e consta que sucedeu em seu lugar S. Matias.
Ao argumento de Tertuliano que se fundava na eternidade do Quinto
Império, temos dito que a continuação dele no Céu -de ser verdadeiramente
eterna em toda a propriedade e largueza da significação desta palavra. Mas se
entendermos o texto de Daniel da duração somente que o Império de Cristo e dos
Cristãos de ser neste Mundo, pela palavra eternidade não se entende
rigorosamente duração sem fim, senão continuação e permanência de muito
tempo, que depois veremos quanto -de ser. Entretanto basta saber-se que a
palavra eterno tem este mesmo sentido e limitação em muitos lugares da
Escritura, como notou S. Agostinho na Questão 3I.a sobre o Gênesis, e
mostraremos mais largamente quando escrevermos a duração do Quinto Império.
Mas para que tiremos todo o escrúpulo aos outros razão senão passe
sem satisfação uma grande dúvida que, por ser fundada nas mesmas palavras do
texto de Daniel, não só pode embaraçar a verdade da nossa sentença, mas
confirmar na contrária os autores e seguidores dela.
(Inicío da citação) Aspiciebam (diz Daniel na segunda visão)
donec throni positi sunt, et Antiquus dierum sedit vestimentum
ejus candidum quasi nix, et capilli captis ejus quasi lana
munda; thronus ejus flammæ ignis rotæ ejus ignis accensus,
Fluvius igneus, rapidusque egrediebatur a facie ejus. Millia
millium ministrabant ei, et decies millies centena millia
assistebant ei; judicium sedit et libri aperti sunt, etc. (Fim da
citação)
E estas palavras por todas as circunstâncias do trono, do fogo, da assistência dos
anjos, dos livros que se abriram e do mesmo nome de juízo, não parece que
significam, senão que estão demonstrando o vigor e majestade do juízo final, e
assim o entendem mais ordinariamente os expositores desta visão. Logo, se o
Reino e Império de Cristo e dos Cristãos -de ser depois do juízo final,
claramente se convence que ano é nem -de ser Império desde Mundo, senão
do outro.
Respondo que é certo falar neste lugar o Profeta de juízo, e juízo de Deus,
e juízo rigoroso e de grande majestade, mas digo com a mesma certeza que este
juízo não é o juízo final, em que Cristo -de vir julgar os vivos e os mortos no fim
do Mundo, senão um juízo particular, em que o Padre Eterno -de tirar o Reino e
Império universal do Mundo ao tirano ou tiranos que então o possuírem, e para
meter de posse e o entregar a Cristo, seu filho, como legitimo senhor e herdeiro
dele, e aos professores de sua fé e obediência, que são os Cristãos.
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CAPÍTULO III
Se este Império de Cristo no Mundo é espiritual ou temporal
Assentado, como acabamos de resolver, que este Império de Cristo e dos
Cristãos, de que falam as profecias alegadas, é principalmente o da Terra e não o
do Céu, ainda nesta suposição nos resta averiguar um ponto de grande
importância e de cuja decisão depende o maior fundamento de todo este nosso
discurso. Porque este Império de Cristo, que dizemos há de ser na Terra, ou pode
ser espiritual ou temporal. espiritual como o que hoje tem o Sumo Pontífice, cujo
poder e jurdição se ordena a governar os fiéis membros e súbditos da Igreja, a
conseguir a bem-aventurança, que é o último fim do homem; temporal, como o
que têm os príncipes católicos sobre os seus reinos e províncias, que se dirige a
governar os vassalos por meio de leis prudentes e justas, que é o fim particular de
todas as comunidades humanas, dos Cristãos católicos, em quanto este fim
particular e mediato se ordena ao último fim.
Isto posto, perguntamos agora se este Império de Cristo -de ser
espiritual ou temporal; e começando pela conclusão em que não resistência
nem dificuldade, diremos primeiramente que este Império de Cristo (o qual não
-de ser diferente do que hoje é, senão ,quanto ao modo como em seu lugar
veremos) é império espiritual. Assim o ensinam e ensinaram sempre
conformemente todos os Padres e Doutores da Igreja, todos os teólogos antigos e
modernos, e todos os expositores de ambos os Testamentos, e se demonstra
com o mesmo mistério da Encarnação e fim com que Cristo veio ao Mundo, e
com a doutrina e ações de sua vida e morte.
Porque, se perguntarmos aos Evangelistas (deixando o testemunho das
outras Escrituras) que fez Cristo e que ensinou com a palavra e com o exemplo,
desde o dia em que nasceu até à hora em que expirou na cruz, dir-nos-ão que
veio ensinar aos homens a ciência da saúde e salvação; que veio ser luz do
Mundo e alumiar os que vêm a ele; que veio lançar fogo na terra, para que se
acendesse nela a claridade que tão apagada estava; que veio encher e informar a
lei e animar a letra com o espírito; que veio vencer o demônio e lançá-lo do
Mundo, onde reinava e se intitulava príncipe; que veio apartar os pais dos filhos e
os filhos dos pais, para que a graça prevalecesse contra a natureza e o amor de
Deus pudesse mais que o do sangue; que ensinou o desprezo das riquezas, os
interesses da esmola, o perdão das injúrias, a verdadeira amizade com os
inimigos, a virtude da humildade e a da castidade, uma o usada, outra não
conhecida no Mundo, que pregou o Reino do Céu, a eternidade do Inferno, o rigor
do juízo, o preço e imortalidade da alma; finalmente que abriu sete fontes de
graça e ou que instituiu sete sacramentos perpétuos e ficou Ele conosco
perpetuamente em sacramento; que nos lavou com o seu sangue, que morreu por
nós, e que nos deixou o seu amor e o nosso contentamento.
Sendo pois estas as ações daquele Senhor a quem antes de vir ao Mundo
todos os profetas chamaram Pai, e em seu nascimento foi aclamado Rei e em sua
morte intitulado Rei; e sendo todas elas ordenadas à salvação e perfeição dos
homens e dirigidas e encaminhadas ao Céu, cujo reino lhes pregou e prometeu
sempre, e estando até aquele tempo fechado, lho abriu e mereceu com seu
sangue; que maior sentimento se pode desejar, nem que maior demonstração ou
evidência de ser o Reino e Império deste santíssimo e soberaníssimo Rei, Reino
e Império espiritual?
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Foi Reino e Império espiritual no fim e causas de sua instituição, espiritual
nas leis, espiritual no governo, espiritual no uso, nas execuções e no exercício; e
suposto que dizemos há-de ser sempre o mesmo (nem é decente nem seria crível
outra cousa), em qualquer tempo futuro será e há-de ser também espiritual.
Não alegamos aos autores desta doutrina, assim por serem todos, como
dissemos, como porque alegaremos muitos no capítulo seguinte.
CAPÍTULO IV
Examina-se se o Reino e Império de Cristo é também temporal. Refere-se
a opinião negativa.
O império e domínio temporal é certo que de sua natureza não exclui nem
implica com o temporal, de modo que um outro domínio bem pode sem
repugnância alguma convir e ajustar-se no mesmo sujeito. Assim vemos que o
Sumo Pontífice, tendo o domínio espiritual de toda a Igreja, é também senhor e
príncipe temporal do estado que chamam eclesiástico; em Alemanha, três dos
eleitores do Império são príncipes eclesiásticos e senhores temporais de seus
estados; e no nosso reino, o Arcebispo primaz é juntamente Bispo e Senhor de
Braga.
Suposto pois que o Reino e Império de Cristo seja espiritual, como
acabamos de resolver, resta examinar agora se é também império temporal.
Muitos e graves teólogos seguem de tal maneira a parte negativa que exclui
totalmente do Império de Cristo toda a jurdição, poder e domínio temporal, e
somente lhe concedem ou admitem nele o puramente espiritual; bem assim como
aquele que os príncipes eclesiásticos têm sobre suas igrejas ou ovelhas (posto
que por modo mais sublime e excelente) mas de nenhum como aquele que os
senhores e príncipes seculares têm sobre seus estados e vassalos.
Fundam primeiramente esta sua sentença em muitos lugares da Escritura e
particularmente em todos aqueles com que no capítulo passado mostramos o seu
nome e título de Rei, que os Profetas davam a Cristo; e notam bem advertida e
doutamente estes autores que todas as vezes que os textos da Escritura Sagrada
falam no Reino, Império, domínio, poder ou principado de Cristo, sempre
acrescentam alguma explicação ou limitação com que o nome geral de Rei e
Senhor se distinga ou aliene da significação de poder temporal, e se limite,
estreite e determine ao espiritual somente.
No Salmo II chama David a Cristo Rei constituído por Deus
(Inicío da citação) Ego autem constitutus sum rex ab eo;
(Fim da citação)
mas logo limita a significação do ofício ou dignidade, dizendo que para pregar
seus preceitos-praedicans praeceptum ejus. No Salmo XLIV descreve o mesmo
Profeta as prosperidades e progressos do Reino de Cristo:
(Inicío da citação) ...intende, prospere procede et regna;
(Fim da citação)
mas logo declara o gênero de armas, todas espirituais, com que há-de conquistar
o Mundo:
(Inicío da citação) Propter veritatem et mansuetudinem et
justitiam , et deducet te mirabiliter dextera tua. (Fim da
citação)
Isaias, no capítulo IX, anuncia o mesmo Reino de Cristo e sua perpetuidade:
(Inicío da citação)...super solium David et super regnum ejus
sedebit in eternum; (Fim da citação)
mas logo aponta os fundamentos espirituais também, de que lhe de vir a
firmeza:
(Inicío da citação) ut confirmet illud et corroboret in judicio et
justitia. (Inicío da citação)
Jeremias, no capítulo XXIII, celebra o Reino e sabedoria de Cristo Rei:
(Inicío da citação) ...regnabit rex et sapiens erit; (fim da
citação)
mas logo determina os efeitos dessa sabedoria que hão-de ser encaminhados
todos à salvação:
(Inicío da citação) In diebus illis salvabitur Juda. (Fim da
citação)
Zacarias no capítulo IX descreve o triunfo de Cristo aclamado por rei na entrada
de Jerusalém:
(Inicío da citação) Ecce Rex tuus veniet tibi; mas logo lhe
chama rei e salvador justo, pobre e humilde: Justus ET
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(salvator, ipse pauper et ascendens super asinam. (Fim da
citação)
Finalmente, o mesmo Cristo » confessando a Pilatos que era rei »
(Inicío da citação) Tu dicis quia rex sum ego (Fim da
citação)
- acrescentou logo que o seu Reino era para dar testemunho da verdade ao
Mundo:
(Inicío da citação) Ego in hoc veni in mundum ut testimonium
perhibeam veritati. (Fim da citação)
E depois de ressuscitado, declarando aos Apóstolos com a maior majestade de
palavras que podia ser a grandeza de seu império, domínio e potestade-
(Inicío da citação)Data est mihi omnis potestas in Cælo in
Terra-a (Fim da citação)
conseqüência que tirou deste poder tão universal foi:
(Inicío da citação)Euntes in mundum universum prædicantes
Evangelium omni creaturæ; qui crediderit et baptizatus fuerit,
salvus erit: fé, batismo e salvação dos homens. (Fim da
citação)
Segue-se logo que o Reino e Império de Cristo é espiritual somente, e de nenhum
modo temporal. Sobretudo está por esta parte aquele claríssimo oráculo de
Cristo:
(Inicío da citação)Regnum meum non est hoc mundo - o meu
Reino não é deste Mundo, (Fim da citação)
das quais palavras podemos dizer: Quid adhuc egemus testibus?
A eficácia destes textos se acrescenta a de muitas razões e argumentos,
entre os quais porventura não é o que tem granjeado menos votos a esta opinião
errada aquela palavra temporal, a qual, construída com o Império de Cristo e
pronunciada aos ouvidos mais religiosos e espirituais, parece que traz consigo
alguma dureza e dissonância, por não dizer indecência.
De que servia a Cristo (dizem) o nome ou jurdição de Rei temporal do
Mundo, se ele vinha como vimos a confundir com seu exemplo o mesmo Mundo,
os mesmos reis e as mesmas temporalidades? Se a perfeição cristã que Cristo
veio ensinar aos homens consistia em deixar tudo e seguir em pobreza e
humildade a Cristo pobre e humilde, como dizia com esta renunciação de todos
os bens, honras e haveres do Mundo, o domínio, o império, a majestade de todo
ele? E se esta majestade, este império e este domínio o havia de ter (como
nunca teve com Cristo) uso ou exercício público, e havia de estar sempre oculto e
encoberto aos homens, não seria maior autoridade, maior exemplo e ainda maior
circunstância de perfeição saber-se que o renunciara Cristo, podendo -lo, que
dizer-se que o tivera e conservara, e ainda que o pedira, como alguns dizem?
Com que liberdade ou com que confiança havia de aconselhar ou mandar Cristo a
certo mancebo que, se queria ser perfeito, deixasse o domínio das suas
herdades, se no mesmo tempo o mestre desta perfeição retivesse o domínio de
toda a Terra? Para que se há-de admitir logo o nome deste Império temporal em
Cristo; se nem para o decoro da pessoa, nem para o fim do ofício, nem para o
exemplo da doutrina era necessário, e para o exercício e uso que nunca teve
realmente inútil e ocioso?
Estas razões ou admirações, que não são muitas vezes as que menos
persuadem, se fecham e apertam eficazmente com um discurso fundido em todos
os princípios gerais de direito, com que parece aos autores desta sentença que
não estabelecem de todo a certeza dela, mas que convencem e desfazem a
probabilidade de qualquer outra. Argumentam ou decorrem assim:
Se Cristo foi Rei temporal, ou foi Rei por direito natural, ou por direito
divino, ou por direito humano. Por direito natural não, porque Cristo não era filho
nem herdeiro de rei; e dado que fosse legítimo sucessor do Reino de Israel, como
dizem menos provavelmente alguns autores, a herança de um reino particular não
lhe dava direito para o império de todo o Mundo. Por direito divino também não,
porque, se houvera tal direito, constara pelas Escrituras, e posto que muitos
textos da Escritura falem de Cristo como Rei e lhe dêem o nome e título de Rei,
todos, como vimos, se entendem do Reino espiritual ou celeste, e quando menos
se podem interpretar assim, sem nos obrigarem a que os entendamos do Reino
ou Império temporal. Finalmente, por direito humano não, porque a jurdição de
fazer ou eleger rei está na
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comunidade dos homens; e para Cristo ser respectivamente Rei universal de todo
o Mundo por esta via, era necessário que todos os homens e comunidades do
Mundo se unissem em um consentimento, com que o elegessem por Rei e
Senhor de todas, o que nunca houve, antes sabemos que os príncipes e povo de
Judeia, que era a terra onde Cristo vivia, se conjuraram contra ele e lhe tiraram a
vida, porque não tomasse o nome de Rei; e que o mesmo Senhor, na ocasião
em que alguns deles lho quiseram dar, fugiu deles e do mesmo título, e se
escondeu em um monte para escapar daquela violência. Logo se o foi Rei
temporal, nem por sucessão natural, nem por eleição humana, nem ,por doação
ou nomeação divina, bem se conclui que o Reino e Império de Cristo, o
celebrado nas Escrituras, de nenhum modo foi nem pode ser temporal, se não
espiritual e somente qual acima dissemos.
Os Padres que isto disseram e seguiram querem alguns que sejam todos.
Ao menos confessa Vasques que da doutrina dos Padres não se pode convencer
o contrário. O primeiro que se alega é Santo Agostinho em muitos lugares, entre
os quais o mais claro (ou o que parece) é este:
(Inicío da citação) Populi personam figurate gerebat homo
ille, scilicet Saul; qui populus regnum fuerat amissurus Christo
Domino nostro per Novum Testamentum, non carnaliter sed
spiritualiter regnaturo. (Fim da citação)
Nenhum dos outros Padres fala em termos de tanta expressão, mas alegam-se e
podem-se alegar no mesmo sentido S. Ambrósio, S. Atanásio, S. João
Crisóstomo, Tertuliano, Teófilo e outros, e diz o doutíssimo Maldonado que esta é
a sentença comum dos melhores teólogos que assim o disseram. O douto leitor
julgará se são os melhores. E são estes: Hermas, Letmatio, Driedo, Castro,
Bertolameu de Medina, Jansénio, Vitória, Adrião Fino, João Parisiense, Francisco
de Cristo, Melchior Flávio; e posto que também se citem por esta ,parte Soto,
Abulense e Waldense, falam, por termos tão indiferentes, que Vasques os alega
(e diz que assim se devem alegar) pela parte contrária.
Advirta-se, porém, para crédito de Maldonado e nosso, que os teólogos
que hoje têm maior fama nas escolas, quando ele escreveu, ainda não tinham
escrito.
CAPÍTULO V
Propõe-se e defende-se a opinião afirmativa
Se escrevêramos menos de cem anos, porventura que não puséramos
aqui tão confiadamente este capitulo. Mas, como disse S. Gregório, e antes dele
Sábio, quanto a Igreja mais cresce, mais se alumia, e o que nos tempos passados
é duvidoso, nos futuros se sabe, a opinião do Reino temporal de Cristo e da
Conceição imaculada de sua Mãe se acompanharam no mesmo tempo na mesma
fortuna, e ambas ao fim, se não têm ainda triunfado, têm vencido Mitigou-se
com os dias e com a consideração o horror daquele nome temporal; acabou-se de
conhecer que com e1e se não davam armas, antes se tiravam ,aos inimigos
(porque também na Teologia se deve entender: Omnia dat qui justa negat);
sucederam àqueles teólogos de grande espírito outros de grandes espíritos, e
resolveu-se que não eram menos espirituais os que admitiam no Império de Cristo
o nome de temporal.
Nem sempre é maior espiritualidade o que mais opõem ao corpo. Os
Origenistas chamavam por escárnio pelusiotas aos que seguem a fé de que todos
havemos de ressuscitar em nossos corpos, parecendo-lhes cousa indigna, e
muito contra o decoro da bem-aventurança, que houvessem de aparecer diante
de Deus
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as nossas almas com vestidos tão indecentes como são os corpos; e diz S.
Jerônimo, com outras galantarias, que não eram os que pior tratavam seus corpos
os que isto diziam. Não fazem menos santo a Cristo, nem querem fazer menos
espiritual o Mundo, os que reconhecem em Cristo o domínio temporal dele.
Porventura ofende a Deus, em quanto Deus, o ser senhor e criador de todas as
cousas corporais, e o ter em sua própria essência eminentemente as idéias de
todas elas? Antes deixava de ser Deus, se assim não fora. Pois o domínio
soberano, que é perfeição em Deus Deus (digamo-lo assim), porque há-de ser
menos decência em Deus Homem?
Quando chamamos Império temporal ao de Cristo, não queremos dizer que
é o seu Império sujeito às mudanças e inconstâncias do tempo, nem que receba a
grandeza e majestade da pompa e aparato vão das cousas exteriores do Mundo,
a que o mesmo Mundo quando fala com mais siso chama com razão
temporalidades; e isto é só o que negam as Escrituras, isto o que não admitem os
Padres, e isto o que explicou o mesmo Cristo, quando disse:
(Inicío da citação) Regnum meum non est de hoc mundo.
(Fim da citação)
O Império que dão ou reconhecem em Cristo os que admitem e veneram
nele o nome de temporal, é um domínio soberano e supremo sobre todos os
homens, sobre todos os reis, sobre todas as cousas criadas, com poder de dispor
delas a seu arbítrio, dando e tirando reinos, fazendo e desfazendo leis castigando
e premiando, com jurdição tão própria e direta sobre todo o Mundo como a que os
reis particulares têm sobre seus vassalos e reinos, antes com muito maior, mais
perfeito e mais excelente domínio, não dependente como eles das criaturas, mas
absoluto soberano, sublime e independente de todos.
Os teólogos que isto assentam por conclusão é S. Tomás, Soares,
Vasques, e bastava ter escrito estes três grandes nomes, para dar por provada e
acreditada com o Mundo uma verdade tão necessária e importante como depois
veremos. Seguem a estes três lumes outros muitos que o puderam ser da
Teologia, se eles não foram diante. O Cardeal Toledo, o Cardeal Lugo, Molina,
Valença, Salazar, Hurtado Arriaga, Arnico, Peres, Verga, Caspense, Carçosa,
Lacerda, Justiniano, Cornelio, Ludòvico Tena, e os dois Mendonças insignes de
Portugal e Castela, dos quais este último no ano de 1586, na Universidade de
Salamanca, onde era catedrático de Scoto, excitou e defendeu galhardamente
esta questão nos termos seguintes, que por serem tão particulares os quero
referir aqui:
(Inicío da citação) Verum Jesus Christus Deus ac Salvator
noster fuerit vere ac proprie Dominus et Rex totius Orbis,
atque omnium rerurm creatarum, secundum quod homo est,
non tantum spiritualis rex ac dominus, sed et verus ac
absolutus et proprius, atque adeo tenporalis: tam vere et
proprie quam Philippus 2dus temporis rex est Hispaniarum, et
unusquisque hominum dominus est suarum rerum, eo quod
i11is in omnem usum potest citra alicujus injuriam uti. (Fim da
citação)
Este é o sentido em que falam com pouca diferença de palavras todos os
teólogos referidos, como se pode ver nos lugares citados à margem, antes dos
quais tinham seguido e ensinado a mesma doutrina Santo Antonino, Durando,
Almaino e os três já nomeados Abulense, Scoto, Waldense, a que podemos
ajuntar muitos juristas de grande nome, como o Cardeal Turrecremata, o Cardeal
Hostiense, Navarro, Bacónio e outros.
E para que demonstremos a verdade desta nossa crença, e do império
temporal de Cristo, pelos mesmos princípios e fundamentos da opinião contrária,
e os vamos juntamente impugnando e desfazendo, seja o primeiro o testemunho
das mesmas Escrituras alegadas, em que Cristo o repetida e expressamente é
chamado Rei por boca de todos os Profetas antigos. A que podemos acrescentar
o
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do maior Profeta da Lei da Graça, S. João Evangelista, em dois lugares do
Apocalipse, em que chama a Cristo Príncipe dos reis da Terra e Rei dos reis e
Senhor dos senhores, no capítulo I, Princeps regnum terrae, e no capítulo XIX,
Rex regnum et Dominus dominantium. Os quais textos e todos os mais se não
podem entender própria e naturalmente senão do Reino temporal de Cristo,
porque o contrário devia fazer manifesta violência à significação da palavra Rei, a
qual em toda a Escritura Sagrada significa Rei temporal; e se é regra certa, como
ensina S. Agostinho, que as palavras da Sagrada Escritura se não hão-de
interpretar em sentido metafórico e figurativo, senão quando, se entenderem na
sua significação própria e natural, se seguisse algum grande inconveniente ou
absurdo contra a doutrina da mesma Escritura recebida pela Igreja, os mesmos
nomes de Rei e Reino, tantas vezes celebrados e cantados pelos Profetas,
falando do Império de Cristo, nos obrigam a conceder e confessar que em toda
sua propriedade significam Rei e Reino temporal, pois se não segue de assim o
entendermos inconveniente algum ou dissidência contra aquela grandeza e
majestade de Cristo, antes muita honra, glória e autoridade, sua e da Igreja, como
neste capítulo se irá vendo, quando respondermos a estas leves objeções da
parte contrária.
A esta confirmação geral da significação da palavra Rei acrescenta o Padre
Soares outra, que é própria da pessoa de Cristo, e que eficazmente convence o
sentido em que se deve tomar a mesma palavra. Porque o Reino espiritual de
Cristo se distingue do Sacerdócio do mesmo Cristo, e consta das Sagradas
Escrituras, como prova S. Agostinho no Tratado XXII sobre S. João, e nós
mostraremos largamente no capítulo seguinte, que o Reino e o Sacerdócio em
Cristo são dignidades e jurisdições distintas. Logo, se o nome de Supremo
Sacerdote significa o Reino e Império espiritual, segue-se que o de Supremo Rei
significa o temporal.
Finalmente, o mesmo Cristo, antes de subir ao Céu, deixou dito e publicado
ao Mundo que seu Eterno Pai lhe tinha dado todo o poder no Céu e na Terra:
(Inicío da citação) Data est mihi omnis potestas in Cælo et in
Terra. (Fim da citação)
E quem diz todo, seguindo as regras do direito, nenhuma cousa exclui. Teve logo
Cristo o império espiritual, que é o que mais propriamente se chama império no
Céu, e teve juntamente o império temporal, que é o que com toda a propriedade
se chama império na Terra, porque de outra maneira se não de dizer nem
entender, sem manifesta implicação, que tivesse ou tenha Cristo todo o poder,
pois lhe faltaria nesse caso o poder temporal, que é uma tão grande parte desse
todo.
Estes são os textos mais eficazes e expressos com que os teólogos
costumam provar a verdade do Império temporal de Cristo. E posto que baste
cada um deles, tomado na propriedade e natureza de sua significação, para
,persuadir facilmente a qualquer entendimento fácil e dócil, nós, para maior
demonstração da mesma verdade, sem sair das mesmas profecias e textos
fundamentais desta história, o esperamos de a confirmar eficazmente na
mesma certeza, mas de lhe acrescentar com a nova luz deles nova evidência.
E, começando pela profecia de Zacarias, já vimos que a coroação de
Jesus, filho de Josedec significa a dignidade suprema do Império de Cristo. Agora
pergunto porque foi coroado não com uma senão com duas coroas, e porque uma
delas foi de prata e outra de ouro?
A razão, não mística senão literal, dizem comumente os expositores que foi
porque Cristo não teve uma coroa, senão duas: uma como Supremo
Sacerdote, que pertencia ao Império espiritual; e outra como Supremo Rei, que
pertencia ao temporal. E por isso não eram ambas de ouro, ou ambas de prata,
senão uma de prata e outra de ouro, para significar a diferença e preço daqueles
dois impérios ou
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jurisdições; e que o império espiritual significado no ouro era mais alto, mais
precioso e mais sublime que o império temporal.
E quanto ao império temporal, em que podia haver dúvida, que maior
prova se podia desejar que a da estátua de Nabuco, cujos metais desfez a pedra
em e em cinza? Porque, se é certo (como é de ) que aqueles quatro metais
significavam quatro impérios sucessivos, e impérios verdadeiramente temporais,
bem se segue que a pedra que os derrubou e desfez, figura do Reino e Império
de Cristo, não significa Império espiritual, senão também temporal, porque
impérios temporais se derrubam, arruínam e desfazem uns aos outros, o que o
faz nem pode fazer o Império espiritual.
Para um império derrubar e desfazer a outro, é necessário que tenha
oposição e contrariedade com ele acerca das mesmas cousas, e esta oposição e
contrariedade se acha nos impérios temporais entre si, e não entre o império
espiritual e temporal, como bem tem mostrado a experiência no mesmo Império
espiritual de Cristo, o qual, depois de comunicado a seus vigários os Sumos
Pontífices, não desfez os impérios e reinos dos príncipes temporais, antes ajudou
muito e se ajudou de seus aumentos, crescendo e estabelecendo-se mais a
grandeza e majestade da Igreja e dos Pontífices, quanto mais se estabelecia e
crescia a dos Imperadores. E este foi o erro, ignorância e engano de que sempre
os fiéis notaram e motejaram a Herodes, cantando sobre sua loucura por boca da
Igreja:
(Inicío da citação)Crudelis Herodes, Deum regem venire quid
times? non eritit mortalia qui Regna dat cælestia? (Fim da
citação)
sendo pois certo que o Reino e Império de Cristo derrubou ou -de derrubar
todos os impérios do Mundo, que são impérios verdadeiramente temporais, e não
espirituais, ocupando e enchendo toda a Terra, donde eles antes estiveram, como
expressamente se colhe que o império de Cristo não é só espiritual, senão
temporal!
E tudo isto se verá mais claramente, quando adiante explicarmos o tempo
da ruína desta estátua e outras circunstâncias dela. Nem menos se confirma a
mesma verdade com a segunda visão de Daniel (Daniel VII) na qual lemos que,
para Deus dar o Império ao Filho do Homem, mandou primeiro queimar a quarta
besta das vinte pontas, em que era significado o Império Romano, e todos os
reinos temporais que dela nasceram, o que de nenhuma maneira era necessário
se o Reino e Império de Cristo fora somente espiritual, pois vemos que reinou
antigamente Cristo espiritualmente em todo o Império Romano, e reina também
hoje espiritualmente em todos os reinos que do mesmo Império Romano
nasceram e se dividiram, e conservam o nome de cristãos, e nem por isso deixam
de ter o mesmo domínio e soberania temporal que, antes de receberem a
sujeição de Cristo, tiveram. Segue-se logo com evidência que o Império de Cristo,
que lhes -de tirar essa soberania temporal, não é ou -de ser o Império
espiritual de Cristo, a que eles estão sujeitos, senão o Império temporal, como
melhor se entenderá pelo discurso de tudo o que diremos.
Finalmente, como consta do mesmo texto de Daniel, o império do Filho do
Homem ou de Cristo naquela visão é o mesmo Império universal que hão-de ter
os Cristãos na Terra, no qual Império hão-de entrar e ser encorporados todos os
reis e reinos do Mundo. Como se pode logo duvidar que este imenso e portentoso
Império, composto de todos os impérios, de todos os reinos e de todas as
repúblicas temporais, posto que seja espiritual e espiritualíssimo, não haja de ser
também temporal? Este é, e este o Reino e Império de Cristo, tão cantado e
celebrado nos oráculos dos Profetas, pelo qual se intitula com toda a propriedade
Rex regnum et dominus dominantium; e assim como a palavra regnum e
dominantium é sem dúvida
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que significa reis e senhores temporais, assim a palavra rex e dominus significa
rei e senhor também temporal, para não admitirmos, com manifesta violência da
Escritura e repugnância do entendimento, que na mesma sentença e na mesma
palavra se varia o sentido e suposição dela, e que rex e dominus têm uma
significação e regnum e dominantium outra. E se nos lugares da Escritura
alegados pelos autores da opinião contrária, e em outros que também lhes
pudéramos ajuntar, parece que o domínio real de Cristo se limita e determina
ordinariamente a fins e obras espirituais, de nenhum modo se enfraquece com
este indício ou argumento a verdade da nossa sentença, antes com ela se
confirma e estabelece mais, porque s não dizemos que o Reino e Império de
Cristo é espiritual, senão que é espiritual e temporal juntamente, conhecendo e
tendo pela maior excelência deste felicíssimo Reino, que não só em quanto
espiritual, senão ainda em quanto temporal, se ordena ao fim último e
sobrenatural da bem-aventurança, pois esse Reino e não outro é o que -de ser
eterno e glorioso no Céu, como dizem as palavras tão repetidas do nosso texto, e
isto é ser império de Cristo e dos Cristãos; e nisto se distingue dos reinos
meramente políticos e humanos, porque estes têm por fim a conservação e
felicidade da Terra, e o de Cristo e dos Cristãos a do Céu.
Vindo às autoridades (como dizem) dos Padres concedemos facilmente
que são poucos os lugares de seus escritos em que se ache expressamente e em
próprios termos o Reino temporal de Cristo, como também se não acha o da
graça santificante do mesmo Cristo, distinta da união hipostática, e outras cousas
de igual importância e dignidade, recebidas entre os teólogos; não porque os
santos tivessem diferente parecer, mas porque em seu tempo não estavam em
uso aqueles termos que depois inventou a Teologia, para maior clareza da
doutrina escolástica, explicando muitos deles com palavras menos latinas (por
não dizer rbaras) qual é a palavra temporal. Dos quais termos se abstêm ainda
hoje os que escrevem com estilo mais polido e levantado, como nos primeiros
tempos da Igreja faziam aqueles santíssimos e doutíssimos Padres, para
convidarem a todos a lerem de boa vontade e com gosto seus escritos, e para
que nos livros dos autores cristãos se não achasse menos a propriedade e
majestade da eloquência que tanto se venera nos escritores gentios.
Desta razão, que é geral para muitas matérias, damos por testemunhas os
mesmos livros dos Padres, nos quais também se acharam freqüentemente
louvadas, inculcadas e persuadidas as virtudes que pertencem ao Reino espiritual
de Cristo, não porque aqueles santos negassem à universalidade de seu Império
o domínio temporal, mas porque deste não quis ter exercício aquele Senhor que
era juntamente Senhor e Mestre, e os principais e maiores exemplos que nos quis
deixar foram do desprezo dele.
Não faltam contudo lugares muito ilustres aos Padres, em que falavam do
Império temporal de Cristo com termos Não menos expressos que os que se
alegam pela parte contrária, dos quais porei aqui os que bastem a responder a
estes e confirmar a verdade da nossa.
S. Cirilo, explicando as palavras de Cristo:
(Inicío da citação) Regnum meum non est de hoc mundo,
(Fim da citação)
no Livro XII sobre S. João, diz assim:
(Inicío da citação) Regem se esse non negat, sed regni
Cæsaris se non esse hostem ostendit, quia -ejus regnum
terrenum non est, sed caeli et terra:, ceterarunque rerum
omnium. (Fim da citação)
E S. Agostinho, no Tratado XIV sobre o mesmo Evangelista:
(Inicío da citação) Erat quidem Rex non talis qualis ab
hominibus fit, sed talis ut homines reges faceret. (Fim da
citação)
E S. Gregório, na Homilia VIII, sobre os Evangelhos, ponderando o lugar do
nascimento de Cristo, Não próprio senão alheio:
(Inicío da citação) Alienum, diz, non secundum potestatem
sed secundum naturam; nam secundum potestatem in
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propria venit. (Fim da citação)
E mais claramente que todos S. Bernardo, no Livro III De consideratione
escrevendo ao Papa Eugénio:
(Inicío da citação) Dispensatio tibi super illum credita est, non
data possessio; ...Non tu ille de quo Propheta: «Et erit omnis
terra possessio ejus?» Christus hic est, qui possessionem sibi
vindicat, et jure creaturæ et merito redemptionis et dono
patris. Cui enim alteri dictum est: «Postula a me, et dabo tibi
gentes hæreditatem tuam et possessionem tuem terminos
terræ?»Possessionem et dominium cede huic, tu curam ilius
habe. (Fim da citação)
Outras muitas sentenças semelhantes a estas se vêem em outros Santos
Padres da mesma e maior antigüidade, como S. Ireneu, no Livro IV, cap. XVII; S.
Cipriano Adversus Judaeos cap. XXVI, S. Hilário sobre o Salmo II, v. V; S.
Jerônimo, Lib. IV, sobre Jeremias, cap. XXII, e S. Ambrósio no Livro III, sobre S.
Lucas. Aos quais com razão podemos acrescentar todos aqueles autores antigos
e modernos que, a título de Mãe de Cristo, reconhecem e veneram na Virgem,
Senhora nossa, o império e domínio de todo o Mundo. O mesmo S. Bernardo, no
Sermão sobre as palavras do Apocalipse
(Inicío da citação) signum: Maria (diz) eo quod mater Dei est,
regina cælorum et domina mundi jure esse probutur. E S.
Atanásio, no Sermão I De nativitate Virginis: Quandoquidem
Christus rex est qui natus est ex virgine idemque et Dominus
et Deus; ea propter et mater quæ eum genuit, et regira
domina et deipara proprie et vere censetur. E S. Bernardino
de Sena, no Tomo I, Serm. XI, cap. I: Virgo beatissima
omnem hujus murdi meruit principatum et regnum, quia filius
ejus in primo instanti suæ conceptionis monarchiam totius
promeruit et obtinuit uriversi, sicut Propheta testatur, dicens:
«Domini est terra et plenitudo ejus, orbis terrarum et universi
qui habitant in eo». (Fim da citação)
Dos quais lugares todos e muito mais claramente destes últimos se mostra
quão assentada cousa era, e quão sem controvérsia, no sentir comum dos
Padres, o Império e Monarquia universal de Cristo, não só quanto ao Reino
espiritual e do Céu, senão quanto ao temporal e da Terra. E se alguns dos
mesmos Santos Padres , principal mente em livro s apologéticos ou tratados,
parece que diziam e ensinavam o contrário (como verdadeiramente parece),
deve-se advertir que falavam do Reino de Cristo, não quanto ao poder, império ou
domínio, senão quanto ao aparato, grandeza e majestade exterior de rei temporal,
o qual os Judeus esperavam e os Gentios desejavam em Cristo, os primeiros
interpretando erradamente as Escrituras, e os segundos fingindo as propriedades
de Deus humanado conforme sua vaidade e apetite, como gente costumada a
fazer deuses à sua vontade.
E como a controvérsia e disputa daqueles tempos era contra este
escândalo dos Judeus e contra esta estultícia dos Gentios, que são os nomes
injuriosos ou gloriosos com que uns e outros afrontavam a cruz e humildade de
Cristo, por isso é tão freqüente nos escritos dos Padres a diferença do seu Reino
aos reinos do Mundo, não negando a Cristo Rei, como dizíamos, o domínio e
império ainda temporal sobre todo e1e, mas engrandecendo esse mesmo império
pelo desprezo da pompa e aparato vão em que põem os reis da Terra sua
grandeza e majestade.
Basta, por todos os Padres que pudéramos trazer em comprovação desta
nossa advertência, um lugar de S. João Crisóstomo, em que, falando do Rei que
vieram adorar a Belém os reis e da diferença humilde de seu estado, diz assim
elegantemente:
(Inicío da citação) Quonam pacto magi ex stella illa
Judaeorum regem illum esse didicerut, cum certe non istius
regni ille rex esset... Nihil quippe tale monstravit, quale mundi
hujs reges habere conspicimus. Neque enim hastas, neque
clypeatas ostendit militum catervas: non equos regalibus
phaleris insignes, non cunas auro ostroque fulgentes; non
enim istum neque alium quempiam circa se habuit ornatum,
sed vilem hanc
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prorsus vitam egit ac pauperem: duodecim tantummodo
homines, eosque despectabiles secum circumducendo. (Fim
da citação)
Esse aparato e pompa exterior de riquezas, galas, palácios, cavalos,
coches, criados, exércitos, é o que os Santos negavam no Império de Cristo, e
não o império e domínio dele sobre todo o Mundo, e este é o sentido próprio e
germano em que Cristo disse a Pilatos:
(Inicío da citação) Regnum meum non est de hoc mundo.
Como logo explicou na mesma razão que deu do que tinha
dito: Si ex hoc mundo esset regnum meum, ministri utique mei
decertarent, ut non traderer Judæis. (Fim da citação)
Onde se deve notar que o disse Cristo: Regnum meum non est hujus mundi,
senão de hoc mundo, porque o Reino de Cristo verdadeiramente era deste Mundo
e de todo o Mundo, e só não tinha os acidentes da vaidade e falsa grandeza com
que se sustentam os outros reinos do Mundo.
CAPÍTULO VI
Prossegue a mesma matéria, apontam-se os títulos e razões do Reino temporal
de Cristo
O principal fundamento dos que não admitem no Reino de Cristo o império
e domínio temporal, é por não haver título, como eles dizem, ao qual compita e
seja devido aquele domínio; e para que se veja manifestamente a debilidade
deste fundamento e tragamos à nossa sentença os mesmos autores que em
seguimento deles abraçam a contrária, apontaremos e provaremos aqui, com a
maior brevidade que nos for possível, os tulos por que é devido e compete a
Cristo em quanto homem o Império e domínio supremo, não espiritual, senão
também temporal de todo o Mundo. São estes títulos seis, todos legítimos e
conforme o direito: o primeiro por natureza, o segundo por herança, o terceiro por
doação, o quarto por compra, o quinto por guerra justa, o sexto por eleição e
aceitação de todos os homens, como iremos mostrando pela mesma ordem.
Primeiramente, é Cristo Rei e universal Monarca do Mundo por natureza,
porque por meio da união da divindade à humanidade, a qual se inclui
essencialmente na natureza de Cristo, sem algum outro concurso ou condição
extrínseca, da parte de Deus nem da parte dos homens, pertence ao mesmo
Cristo em quanto homem o domínio e império universal de tudo o criado, e por ela
fica constituído, ou por ela (sem ninguém o constituir) é Rei e Senhor e Monarca
supremo de todos os reis, de todos os reinos e de todos os impérios do Mundo.
Por isso Cristo no Apocalipse trazia o título de Rex regnum e Dominus
dominantium, escrito, como diz o texto, in femore, que significa a geração
humana, para mostrar que o ser rei de todos os reis e senhor de todos os
senhores lhe convinha e era seu por sua própria natureza. E por isso o nome que
lhe puseram na circuncisão foi de Jesus, que quer dizer salvador, e não o de
Cristo, que quer dizer ungido, porque o ser ungido por Rei e universal Monarca do
Mundo não lhe pertencia por imposição divina ou humana, senão por natureza
própria sua, ou por ser quem era. Salvador por obediência, mas ungido por
natureza. E assim como antigamente se faziam ou consagravam os reis pelo óleo
que eram ungidos, assim a união hipostática em Cristo foi uma verdadeira e
própria unção com que juntamente com o ser e a natureza recebeu o poder e a
Monarquia do Mundo.
Este é o único fundamento do Padre Vasques, a quem geralmente
seguiram todos os que depois dele escreveram. Do qual Vasques diz Salazar que
foi o
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primeiro a quem a Teologia deve os sólidos e verdadeiros princípios em que
fundou o Império temporal de Cristo. E posto que Arriaga, por não faltar ao
costume de impugnar tudo, não reconheceu na unção da união hipostática mais
que a propriedade e energia da metáfora, nós veneramos nela a autoridade de
David, que assim o disse no Salmo XLIV:
(Inicío da citação) Unxit te Deus, Deus tuus, oleo laetitiae pre
consortibus tuis (Fim da citação)
e a explicação de S. Agostinho e S. Gregório Nasianzeno, e de outros grandes
Padres que. assim o entenderam. Porei suas palavras no capítulo seguinte pelas
não repetir duas vezes.
O segundo título do Império de Cristo é por herança, porque, sendo Cristo
filho natural de Deus, conforme o texto de S. Paulo
(Inicío da citação) quod si filius et haeres (Fim da
citação)
lhe pertence a Cristo o título de herdeiro do domínio e império universal do
Mundo, de que Deus é absoluto Senhor. Assim o disse o mesmo Deus por boca
do Profeta Rei:
(Inicío da citação) Postula a me et dabo tibi gentes
hæreditatem tuam et possessionem tuam terminos terræ.
(Fim da citação)
E S. Paulo, falando também de Cristo:
(Inicío da citação) Quem haeredem universorum per quem
fecit et sæcula. (Fim da citação)
E o mesmo Cristo, na parábola da vinha:
(Inicío da citação) Hic est hæres, venite et occidamus eum.
(Fim da citação)
E neste título convêm todos os teólogos acima alegados, como também no
seguinte:
É o terceiro título, o de doação, o qual se acha mais expresso que todos,
assim no Velho como no Novo Testamento, no Salmo pouco antes alegado:
(Inicío da citação) Dabo tibi gentes hæreditatem tuam; e no
salmo...: Omni subjecisti sub pedibus ejus; (Fim da citação)
as quais palavras entende S. Paulo de Cristo, no I capítulo da Epístola aos
Hebreus. O Anjo à Senhora, no capítulo II de S. Lucas:
(Inicío da citação) Dabit illi dominus Deus sedem David patris
ejus et regnabit in domo Jacob. (Fim da citação)
S. João, no capítulo III:
(Inicío da citação) Sciens quia omnia dedit ei pater in manus.
(Fim da citação)
O mesmo Cristo no capítulo ...:
(Inicío da citação) Omnia mihi tradita sunt a Patre meo. (Fim
da citação)
E no capítulo...:
(Inicío da citação) Data est mihi omnis potestas in cælo et in
terra. (Inicío da citação)
O título da compra, que é o quarto, parece que cai mais imediatamente
sobre os homens que sobre o Mundo, mas ao primeiro domínio se segue
necessária e naturalmente o segundo, assim como o que é senhor do escravo fica
juntamente sendo de todos os seus bens. E é conclusão certa na teologia, e de
grande glória não de Cristo mas nossa, que pelo título da Redenção não
ficamos vassalos deste soberaníssimo Monarca, senão verdadeiramente
escravos seus, comprados com o preço de seu sangue: empti enim estis pretio
magno:
O sexto e último título do Império de Cristo dizíamos que era por
consentimento, aceitação e como eleição de todas as nações do Mundo. Este
título é o mais natural e jurídico entre os homens, em cujas comunidades, quando
querem viver juntos e politicamente, pôs Deus, como autor da natureza, o poder e
jurdição suprema de eleger e nomear príncipe. Assim o tem a comum sentença
de todos os juristas teólogos, e o alcançaram e ensinaram antes deles, por lume
natural, Aristóteles no Livro III das Políticas, e Platão no Diálogo de Regno e nos
livros De republica. Mas em Cristo parece que não pode ter lugar este título
porque, sendo o Monarca universal de todo o Mundo e de todos os homens, era
necessário que os mesmos homens conviessem todos este consentimento,
eleição ou aceitação, como acima dizíamos, e este consentimento comum nunca
jamais o houve no Mundo, antes, como dizem alguns teólogos, não é possível
havê-lo. Contudo digo que não faltou ao Império e Monarquia universal de Cristo
este último título do consentimento e aceitação universal dos homens, como
agora mostrarei. E peço licença aos que quiserem ler este discurso para meditar
um pouco mais nele, por ser pensamento novo e matéria até agora não tratada, à
qual é necessário abrir os alicerces e lançar os primeiros e sólidos fundamentos,
prometendo aos que fizerem esta detença não perderão o fruto do tempo que
nela gastarem, pois verão por grandes notícias e não
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vulgares da Antigüidade quão certa e concertadamente concorre a novidade e
verdade desta nossa consideração ao maior estabelecimento do Reino de Cristo.
Alberto Pighio (para que de todo não entremos neste novo caminho sem
alguma guia) no Livro V da Hierarchia Ecclesiastica, capítulo III, arrostando a
opinião de muitos e graves autores, os quais têm para si que Cristo foi legitimo
Rei do Reino de Israel, o título em que funda este direito é o consentimento,
aceitação e expectação geral, com que Cristo, verdadeiro Messias, era esperado
de todo aquele povo como seu verdadeiro Rei e Senhor, prometido aos primeiros
Patriarcas da sua nação.
(Inicío da citação) Nec Pilato (diz este autor) nec Caesari
ullum legitimum jus in regnum Judaeorum, sed si cuiquam
maxime competiit Christo, quem semper expectaverunt sibi
regem f ore in 1ege promissum. (Fim da citação)
E para ,prova desta geral aceitação e consentimento com que todo o povo hebreu
tinha recebido por seu Rei ao prometido Messias, traz o mesmo Alberto Pighio a
história do Livro I dos Macabeus, Capítulo XIV, em que se refere como os Judeus
por consentimento comum elegeram por seu príncipe Simão e seus descendentes
com a cláusula, porém, que o seriam somente até que viesse o Messias, a cujo
Reino e direito não queriam prejudicar.
(Inicío da citação) Judæi (diz o texto) consenserunt eum
Simonem esse ducem suum [...] in aeternum, donec surgat
propheta fidelis. Sobre as quais palavras conclui assim o dito
autor: Vides omnium Judeorum votis et expectatione semper
expectatum Christum et Messiam in lege promissum, regem
sibi fore; nam ad ejus usque aduentum Simoni atque e jus
posteritati regnum stabilierunt, quod illi adventanti legitimo jure
deberi significaverunt, velut expresse protestantes in ejus
praejudcium et injuriam nihl se velle facere. (Fim da citação)
De maneira que o tulo com que tão grande teólogo e jurista defende o
direito de Cristo ao Reino de Israel é aquele geral consentimento, espectação e
como eleição com que todo o povo judaico tinha aceitado como seu verdadeiro
Rei o futuro Messias, e como tal o esperava.
Assim explica em próprios termos esta sentença de Alberto Pighio, Alonço
de Mendoça acima citado, cujas palavras quero também referir aqui, porque não
pareça a acomodação da dita sentença levada de algum modo por nós ao intento
em que nos serve:
(Inicío da citação) Alii (diz Mendoça, referindo-se a Pighio)
alio titulo Christi regnum ab aduersariis vindicant; nam dicunt
ex consensu et quasi electione populi judaici Christum fuisse
illius gentis regem; nam cum ardentissime Messiam
expectarent, et tenacissime crederent regem itsum futurum
temporalem, ideo pblico totius gentis decreto in ipsum sua
suffragia conjecerant et in regem elegerant. (Fim da citação)
De toda esta sentença assim entendida me não serve mais que o exemplo
e o modo de dizer ou filosofar; e digo que, assim como em respeito do Reino de
Israel, concorreu ou pode concorrer em Cristo o título da aceitação e como
eleição geral daquele povo, pela espectação, desejo e consentimento comum
com que era esperado de todos por seu legítimo, supremo e verdadeiro Rei,
assim concorreu e concorre o mesmo título no Reino e Monarquia universal de
Cristo, em respeito de todo o Mundo e de todos os homens e nações dele, nos
quais houve o mesmo consentimento comum, o mesmo desejo e a mesma
espectação, como logo mostraremos.
Nem impede ou encontra a verdade ou legitimidade deste título o ser o
mesmo Rei Cristo primeiro eleito, ungido, prometido e dado por Deus, porque
todas estas circunstâncias e condições concorrem no exemplo alegado (o qual
não é semelhante se não o mesmo) e o mesmo temos nas eleições dos dois
primeiros reis de Israel, Saul e Daniel, os quais por primeiro foram ungidos pelo
Profeta Samuel
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por mandado de Deus, e depois novamente aceitos, aclamados e cada um deles
ungido pelo mesmo povo, como consta da História Sagrada, no I e II Livro dos
Reis.
E que em todos os homens e nações do Mundo houvesse geralmente o
mesmo consentimento comum, e o mesmo desejo, e a mesma espectação acerca
do Reino e Monarquia universal de Cristo sobre todos eles, que é o ponto e
suposição em que fundamos este novo título, deixados outros muitos textos de
menor clareza, apontarei somente dois, que se não podiam desejar nem ainda
fingir mais expressos. O primeiro é do capítulo penúltimo do Gênesis, na bênção
que lançou Jacob a seu filho Juda, no qual, falando do Messias prometido, como
entendem uniformemente todos os autores católicos, e antes da vinda de Cristo,
entenderam também sempre todos os Hebreus, diz assim:
(Inicío da citação) Non auferetur sceptrum de Juda et dux de
femore ejus, donec veniat qui mittendus est, et ipse erit
expectatio gentium: «Não faltará o ceptro de Juda nem
príncipe de sua descendência até que venha o que -de ser
mandado, e este será a espectação das gentes.» (Fim da
citação)
E o Profeta Ageu, no. capítulo II, falando da mesma vinda de Cristo (como é de fé
que falava, porque assim o explicou S. Paulo na Epistola aos Hebreus, capítulo
XII):
(Inicío da citação)...ego commovebo caelum et terram et
mare et aridam; et movebo omnes gentes, et veniet
desideratus cunctis gentibus. Daqui a um pouco (diz Deus)
«moverei o céu e a terra, o mar e todo o Mundo, e moverei
todas as gentes e virá o desejado de todas elas» (Fim da
citação)
De sorte que, antes de Cristo vir ao Mundo, não era Ele o desejado e
esperado do povo de Israel, senão o esperado e desejado de todos os povos e de
todas as gentes, porque todos o esperavam por seu Rei e natural Senhor, e não
por Rei particular dos Judeus, senão por Monarquia universal de todas as
outras nações e reinos do Mundo. Esta é a razão e o mistério por que os três reis
do Oriente (em que se representavam, como diz a glossa, as três partes do
Mundo até aquele tempo conhecido) sendo gentios, vieram adorar Cristo e
oferecer-lhe tributos.
Sobre a nação daqueles reis, e se eram só de uma ou de diferentes
nações, variedade entre os Doutores. S. Jerônimo quer que fossem da Arábia
Feliz, outros os fazem da Pérsia, outros da Média, outros da Etiópia. Eu tenho por
mais provável que ao menos parte deles eram de regiões mais distantes, e
verdadeiramente da nossa Índia Oriental, conforme profecia de David:
(Inicío da citação) Reges Tharsis et insula numera offerent,
reges Arabum et Saba dona adducent. (Fim da citação)
Porque aquelas palavras reges Tharsis et insule, conforme a significação mais
recebida, querem dizer reis ultramarinos, o que se não verifica sem grande
impropriedade nos reis da Arábia e Sabia com respeito da Palestina.
Mas de qualquer modo que seja, o certo e sem controvérsia é que todos
eram reis gentios. Pois se eram reis gentios, e de nenhum modo sujeitos ao
domínio da república hebréia, que razão ou motivo tiveram para vir adorar um
menino que eles mesmo conheciam e diziam que era Rei dos Judeus? Ubi est qui
natus est rex Judaeorum?
A razão e motivo que tiveram foi (como bem notou Almaino) porque sabiam
e criam que aquele rei dos Judeus novamente nascido não era rei particular
(como os outros reis hebreus) de uma nação ou de um reino, senão Rei,
Monarca e Senhor universal de todos os reinos e de todas as nações, e por isso
como o Rei verdadeiro e Senhor universal de todos os reinos e de todas as
nações do Mundo, e por isso como a rei verdadeiramente seu, o vinham adorar e
reconhecer, e render-lhe a devida obediência e vassalagem: debitam ei seu vero
eorum regi et domino prestantes obedientiam.
De sorte que antes de Cristo nascer e aparecer no Mundo, e quando
somente estava profetizado e prometido às nações do Universo, não só a
hebreia, senão
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as dos gentios a tinham aceitado e querido, e por certo modo de eleição segunda
e humana escolhido depois de Deus para seu futuro Rei e Senhor, e como tal o
esperavam todos, e era desejada de todos a sua vinda: Ipse erit expectatio
gentium; veniet desideratus cunctis gentibus.
Só vejo que podem reparar com muita razão os doutos, e argüir contra esta
nossa suposição (como argüiu S. Agostinho contra este último texto) que não
podia ser que as nações dos Gentios, e .muito menos todas elas, esperassem e
desejassem o Messias antes da sua vinda; pois antes de Cristo vir ao Mundo,
nem a ou a esperança de que havia de vir se tinha anuncia do ou manifestado
às nações dos Gentios, senão somente aos Hebreus.
É tão forçoso e ao parecer tão evidente este argumento que, vencidos da
força dele os maiores intérpretes da Escritura, excogitavam aos dois textos
referidos as explicações que neles se podem ver, as quais, quando não façam
alguma violência aos mesmos textos, ao menos não enchem o sentido de suas
palavras, porque aquele erit expectatio gentium e aquele veniet desideratus
cunctis gentibus verdadeiramente significam própria espectação e próprio desejo,
com que as nações dos Gentios todas (geral e moralmente falando) ao menos
algum tempo esperassem e desejassem a vinda do prometido e futuro Rei.
Assim é e assim foi, e assim se cumpriu uma e outra profecia, e assim digo
se devem entender ambas em toda a capacidade do seu sentido próprio e natural.
E para que se veja que não era cousa impossível nem dificultosa ser a vinda do
Messias desejada e esperada geralmente de todas as nações gentílicas,
mostrarei aqui os modos e os meios mais prováveis e certos por onde o
conhecimento e esperança do futuro Messias o podia chegar, mas com
efeito chegou, ou a todas ou a quase todas as nações de todo o que naquele
tempo se chamava Mundo.
O primeiro meio é a tradição continuada desde Adão aNoé, cujos três
filhos, Sem, Cam e Jafet foram os segundos povoadores do gênero humano, no
qual, enquanto se conservou unido, continuou também unida a mesma tradição, e
depois que na Torre de Babel se dividiram os homens e as linguas, e se
começaram novas nações, que encheram o Mundo, também com elas se
espalhou pelo mesmo Mundo aquela noticia e esperança recebida de seus
antepassados, pois é certo que com a mudança das línguas não perderam os
homens a memória nem a ciência.
Este discurso é tão natural que não havia mister autor. Mas temos para
maior confirmação dele o testemunho de S. Pedro Crisólogo, no Sermão 157, o
qual, declarando o meio por onde os magos puderam entender que a estrela
significava o Messias e que este havia de nascer na Judeia, diz que tinham
aprendido e sabido assim por doutrina e tradição de seus maiores, derivada
desde Noé. Non chaldea arte, sed de prisca sanctorum traditione majorum; erant
isti de genere Noe, etc. E o autor do Imperfeito na humildade, II, sobre S. Mateus,
tomando esta tradição mais perto da fonte, e referindo-se aos tempos de Set, filho
terceiro de Adão, depois de Abel, conta haver ouvido de certo livro escrito com o
nome do mesmo Set, o qual se conservava em uma nação das últimas partes do
Oriente, junto ao mar Oceano, e que neste livro estava descrita a aparição futura
daquela estrela, e os dons que se haviam levar e oferecer ao Rei nascido que ela
significava, e que todas estas notícias se tinham conservado entre os doutos e
estudiosos daquela gente por tradição de pais a filhos.
(Inicío da citação) Audivi aliquos (diz ele) referentes de
quadam scriptura, et si non certa tamen non destruente fidem,
sed potius delectante, quoniam erat quaedam gens sita in ipso
principio Orientis juxta Oceanum, apud quos ferebutur
quaedam scriptura, irscripta nomine Seth, de apparitura hac
stella, et muneribus ei hujusmodi
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offerendis, quae per generationes studiorum hominum
patribus referentibus filiis suis habebatur deducta. (Fim da
citação)
Até aqui este autor, chamado o Imperfeito, por deixar imperfeita e não
acabada a obra que comeu, o qual querem muitos que seja S. João Crisóstomo.
E posto que não tem por certo aquele livro, e que refere a fama, por ser de tão
duvidosa antiguidade, não nega, porém, antes aprova a tradição do futuro
Messias, que entre os Gentios se conservava, e da nova estrela que havia de
anunciar o seu nascimento.
Esta é a opinião comum dos Padres, como se pode, ver em Orígenes, S.
Basílio, S. Cipriano, S. Jerónimo, S. Gregório Nasianzeno, Teofilato, Eutímio,
Ambrósio, S. Máximo, S. Anselmo, Procópio, .S. Tomás e S. Leão Papa, cujas
palavras citaremos depois.
O outro meio por onde os Gentios puderam vir em conhecimento da vinda
e império universal do Messias, que os Judeus esperavam, foi a grande
comunicação que em todas as partes do Mundo tiveram sempre com os mesmos
Gentios, e os mesmos Gentios com os Judeus, entre os quais era tão vulgar e
celebrada aquela esperança, que o nome com que vulgarmente chamavam ao
Messias era o Esperado, ou o que há-de vir, como se nos termos que falaram
os discípulos ou embaixadores do Baptista, quando perguntavam a Cristo:
(Inicío da citação) Tu es qui venturus es, an alium
expectatamus? (Fim da citação)
Era Jerusalém antigamente a mais formosa cidade e o maior império do
Mundo situado no meio de todo ele, que por isso se chamava Umbellicus terrae, e
como tal concorriam a ela de todas as partes infinitas gentes de todas as nações
e ainda de todas as cores. Isto é o que tanto celebrava David naquela cidade em
cuja fundação e formosura tinha ele tão grande parte:
(Inicío da citação) Glorosa dicta sunt de te, civitas Dei,
Memor ero Rahab, et Babylonis scientium me. Ecce
alienigenæ et Tyrus et populus AEthiopum hi fuerunt illic.
Numquid Sion dicet: Homo et homo natus est in ea, et ipse
fundavit eam Altissimus? Dominus narrabit in scripturis
populorum et principum, horum qui ferunt in ea. Que gloriosas
cousas se contam de ti (diz David) e se escrevem nas
escrituras de todos os povos, ó cidade de Deus! Em ti se
acham todas as diferenças de homens, que isso quer dizer
homo et homo, homens de todas as línguas; homens de todas
as cores, homens de todas as nações e partes do Mundo; em
ti se acham todos os homens de África, como são os de
Etiópia; em ti os da Ásia, como são os de Babilônia; em ti os
da Europa, como são tantos outros estrangeiros; em ti se
vêem homens brancos, como os Tírios; em ti homens negros,
como os Etíopes; em ti homens de todas as outras cores
meãs, como são os asiáticos; e de todas estas gentes, que é
mais, não freqüentam tuas ruas os do povo, mas também
as passeiam os príncipes populorum et principum! Mas o
que sobretudo é digno de maior memória, e o que sobretudo
te faz gloriosa, ó cidade santa, é que todos estes, vindo a ti,
aprendem o que dantes ignoravam, e sabem o que dantes
não sabiam, porque conhecem a Cristo. (Fim da citação)
Este é o sentido literal das palavras scientium me; porque o mesmo Cristo
é o que falava neste Salmo por boca de David, como dizem comummente todos
os intérpretes. E se no tempo de David era tão freqüentada a cidade de
Jerusalém de todas as nações do Mundo, que seria no tempo de seu filho
Salomão, depois de edificado o templo, primeira maravilha do mesmo Mundo, se
o mesmo Salomão não fora maior maravilha! Para ver e ouvir estas duas
maravilhas, e muito mais a segunda, diz o Texto Sagrado no III Livro dos Reis,
cap. IV, que vinham de todos os povos e de todos os reis da Terra a Jerusalém
pessoas enviadas por eles (que é certo seriam os maiores sábios dos mesmos
povos e reinos) os quais, depois de
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ouvirem e admirarem em presença a sabedoria de Salomão, iam contar e ensinar
a suas terras e príncipes o que dele tinham ouvido e aprendido. Et veniebant de
cunctis populis ad audiendam sapientiam Salomonis, et ab universis regibus terræ
qui audiebant sapientiam ejus.
E quem poderá duvidar que um dos principais mistérios que Salomão
ensinava naquela cadeira universal do Mundo era o da e esperança do futuro
Messias, filho e descendente seu, e que a maior maravilha que levavam para
contar em suas terras os que tinham ouvido aquele famoso oráculo era que,
sendo tão admirável a sabedoria e grandeza de Salomão, ainda havia de ter o
mesmo Salomão um descendente que fosse mais bio e maior que ele,
plusquam Salamone! Assim o dizem expressamente neste lugar .., e se
conformam com o exemplo da Rainha de Sabá, que, depois de ouvir a Salomão,
foi a primeira que pregou nesta e esperança do Messias no seu Império de
Etiópia, e em sinal da mesma introduziu em todo ele a circuncisão, que era
uma protestação pública dos que a professavam.
Mas quando nos faltavam estes testemunhos do Testamento Velho,
bastava um do nosso para abundantíssima prova das muitas nações de
Gentios que vinham ordinariamente e residiam em Jerusalém, pois no dia de
Pentecoste, ao som daquele trovão do céu, soubemos que acudiram ao convento
e ouviram a primeira pregação de S. Pedro, quando menos, dezassete gêneros
de homens de nguas e nações diferentes Partos, Medos, Persas, Elamitas,
Mesopotamios, Judeus, Capadoces, Pontos, Asianos, Frígios, Panfílios, Egipcios,
Africanos, Cirenos, Romanos, Cretenses, Arabes e outros convertidos das
gentilidades, que chamavam com nome geral prosélitos, que quer dizer novos,
assim como hoje os judeus convertidos à Fé de Cristo se chamam cristãos-novos.
(Inicío da citação) Et quomodo nos ( diziam todos estes no
cap. II dos Actos dos Apóstolos) audivimus unusquisqe
linguam nostram in qua nati sumus? Parthi et Medi, et
AElamitæ, et qui habitant Mesopotamiam, Judaeam et
Cappadociam, Pontum et Asiam, Phrygiam et Pamphiliam, et
AEgyptum et partes Liyæ, quæ est circa Cyrenen, et advene
Romani; Judaei quoque et proselyti, Cretes et Arabes,
audivimus eos loquentes nostris linguis magnalia Dei. (Fim da
citação)
Onde se deve muito advertir que, quando isto aconteceu, a. cidade de
Jerusalém e o povo e república dos Hebreus estava quase arruinada, e não
conservava a quarta parte da grandeza a que nos tempos de sua maior opulência
tinha chegado. E se agora era tão freqüentada de nações estrangeiras, que seria
nos tempos passados?
Mas se importou muito para se estender a notícia do Messias por todo o
Mundo a comunicação que os Gentios tinham com os Judeus em suas próprias
terras, muito mais ajudou e adiantou a mesma notícia a muito maior comunicação
e frequência que os mesmos Judeus tinham e continuaram sempre nas terras dos
Gentios, desde que nasceu e começou no Mundo a nação hebreia, que foi em
Abraão, primeiro tronco e pai de toda ela. Revelou Deus por três vezes
sucessivamente a Abraão, Isaac e Jacob a vinda do Messias, prometendo-lhes
que em sua descendência seriam abençoadas todas as nações do Mundo:
(Inicío da citação)Benedicentur in semine tuo omnes gentes
terrae; (Fim da citação)
e no mesmo tempo pôs a Providência divina aqueles três Patriarcas em diferentes
nações e províncias: a Abraão em Canaan, a Isaac em Gerara, a Jacob em
Mesopotamia, para que fossem três pregadores daquele primeiro Evangelho, ou
como três evangelistas que anunciassem às gentes a boa nova da mercê grande
que Deus tinha ,prometido fazer a todas. E porque ao numero dos três
Evangelhos não faltasse o primeiro, permitiu a mesma Providência que por
extraordinários caminhos fosse José levado ao Egito, e que aí por mandado
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do rei, como diz David, pusesse escola de sua sabedoria, onde tivesse por
ouvintes todos os príncipes e sábios egiptianos:
(Inicío da citação) Ut erudiret principes ejus sicut
semetipsum, et senes ejus prudentiam doceret. Assim trouxe
Deus naquele tempo pelo Mundo estas quatro testemunhas
de suas promessas de reino em reino e de nação em nação,
como notou o mesmo Profeta: Et pertransierunt de gente in
gentem, et de regno ad populum alterum. (Fim da citação)
Ajuntou depois disto a fome em Egito os doze irmãos, filhos de Jacob e
cabeças dos tribos; entraram livres, continuaram cativos, saíram vencedores. Mas
no tempo daquele comprido cativeiro Não havia casa no Egito em que o cativo
não fosse mestre do senhor. As maravilhas que depois viram nos Egípcios é certo
que acrescentariam às esperanças dos Hebreus, porventura até aquele tempo
mal cridas, e pode ser que a crueldade de Faraó, como a de Herodes, se não
fundasse tanto no receio de sua multidão que no medo de suas profecias.
Passados, enfim, à Terra de Promissão, onde permaneceram até verem o
cumprimento delas em Cristo, concorreram e floresceram no mesmo tempo os
quatro impérios ou monarquias dos Assírios, dos Persas, dos Gregos e dos
Romanos, que senhoreavam o Mundo, e com todas elas tiveram grande
comunicação os Hebreus, e algumas vezes mais estreita do que quiseram.
Todas as histórias sagradas estão cheias de embaixadas, de
confederações, de entradas, de guerras, de pazes, de presentes e de outros
tratos e correspondências políticas, que passaram entre as quatro nações
imperantes e o reino ou povo hebreu. Com os Assírios notemos de Ezequias, de
Acáz, de Oseas, de Joaquim e do sacerdote Eliacim, gue concorreram com
Berodac, com Salmanasar, com Ful, com Nabucodonosor e com Baltasar, como
consta do IV Livro dos Reis e da história de Judite. Com os Persas, em tempo de
Jeconias, de Zorobadel, de Esdras, de Neemias, que concorreram com Ciro, com
Dario e com Assuero, como consta do I e II Livro de Esdras e da História de Ester.
Com os Gregos, em tempo do Sumo Sacerdote Jado, de Matatias, de Judas
Macabeu, de Simão e Jónatas, que concorreram com Alexandre Magno, com os
dois Antíocos, com Demétrio, Heliodoro, Ptolemeu e Trifon, como consta do I e II
Livro dos Macabeus.
Finalmente, com os Romanos, em tempo de Judas Macabeu, de Simão e
Jónatas, que concorreram com diversos cônsules de Roma, de que se nomeia na
Escritura Sagrada somente Lúcio, como consta das mesmas capitulações feitas
entre uma e outra nação, mandadas pelos Romanos à Judeia, escritas em tábuas
de bronze, como lemos nos mesmos Livros dos Macabeus.
E não com estes quatro estendidíssimos impèrios, mas com todas as
nações do Mundo, tiveram muito particular trato e comunicação os Judeus,
concorrendo Deus para este fim com disposições de mui particular providência. A
primeira foi dar-lhes muitos filhos e pouca terra. Prometeu Deus a Abraão que
multiplicaria sua descendência como o da terra e como as estrelas do céu, e
foi assim que de doze netos de Abraão se formaram os tribos e destes cresceu e
se multiplicou a mais numerosa nação que jamais houve no Mundo de um
sangue. A terra, porém, que Deus deu e repartiu aos doze tribos para sua
habitação foi a terra chamada de Promissão, cuja largura e comprimento, tomada
em sua maior extensão, não chegava a oitenta léguas da nossa medida. E a
razão desta providência foi para que, crescendo e multiplicando-se a nação
hebreia, e não cabendo nos estreitos limites da sua própria terra, se espalhasse e
estendesse por todas as nações do Mundo, e levasse a elas a primeira luz da
de Deus e da esperança de Cristo: e este é o mistério ou a energia de primeiro se
haverem de
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multiplicar como e depois como estrelas, para que o alumiassem no meio das
trevas em que todo estava.
Com o mesmo fim ordenou a sabedoria e justiça divina que os maiores e
mais gerais castigos daquela nação fossem desterros e cativeiros, com que eram
levados e transmigrados a terras e regiões estranhas cousa poucas vezes vista
em nações inteiras, para que por este meio ficassem castigados os Judeus, e
juntamente instruídos e alumiados os Gentios. Assim lemos no cap. VIII dos Actos
dos Apóstolos que se levantou uma grande perseguição na igreja de Jerusalém,
por ocasião da qual se dividiram e espalharam os Cristãos por todas as regiões e
terras de Judeia e Samaria:
(Inicío da citação) Facta est in illa die persecutio magna in
ecclesia, quae erat Jerosolymis, et omnes dispersi sunt per
regiones Judae et Samariae:. (Fim da citação)
E notam comummente os Padres e expositores que ordenou ou permitiu a
Providência divina este desterro ou dispersão geral de todos os cristãos de
Jerusalém pelas cidades e lugares daquelas províncias, para que, juntamente
com eles assim espalhados ou semeados por aquelas terras, se plantasse nelas a
e depois, por este meio tão natural e ao parecer não pretendido, ficasse tão
crescida e arreigada.
O primeiro e principal desterro e cativeiro, não falando no do Egito, de que
dissemos, foi o de Salmanasar, no tempo de El-Rei Oseas , como adiante
largamente contaremos, no qual foram levados os dez tribos desde Judeia até as
terras dos Medos e dos Assírios, que estavam bem no coração de toda a Àsia; e
posto que o maior corpo daquela gente teve o sucesso que depois se verá, é
certo, como escreve Paulo Orósio, Severo Sulpício e outros autores latinos e
hebreus, que muitos deles se dividiram por todas as terras orientais daquela
vastíssima parte do Mundo, penetrando a as províncias de que então nem
muitos anos depois houve notícia, de que é bom exemplo a China, onde em
nossos tempos depois de 2300 anos, como escreve o Padre Trigantio nas suas
Relações da China, se achavam judeus daquela transmigração com todos os
sinais dela.
O segundo foi no tempo de Nabucodonosor, em que os dois tribos que
haviam ficado foram também cativos, em tempo de El-Rei Joaquim, e levados a
Babilónia. E destes temos o testemunho da Sagrada Escritura no cap. XVI do
Livro de Ester, que, sendo aquele império dividido em 127 províncias, em todas
elas e em todas suas cidades estavam espalhados os Judeus, e com eles a do
verdadeiro Deus, que professavam, como se nas palavras do edicto de El-Rei
Assuero ou Artaxerxes, com que mandou revogar a sentença de morte, que por
malícia e vingança de um mau e soberbo privado Aman contra a mesma
nação se tinha mandado executar.
(Inicío da citação) Nos autem (diz o edicto) a pessimo
mortalium Judaeos neci destinatos, in nulla penitus culpa
reperimus, sed e contrario justis utentes legibus, et filios
altissimi et maximi semperque viventis Dei, cujus beneficio et
patribus nostris et nobis regnum est traditum, et usque hodie
custoditur. (Fim da citação)
Nas quais palavras, cheias todas de fé, conhecimento, honra e sujeição ao
verdadeiro Deus que os Judeus adoravam, se claramente quão grande fruto
faziam com sua presença nas terras onde estavam cativos e desterrados, Não
entre a gente popular mas nos maiores ministros e príncipes, e nos mesmos
imperadores supremos, qual era Assuero ou Artaxerxes que firmou aquele edicto.
E aqui se entenderá o mistério com que um dos anjos custódios da nação
hebreia, que falava com o Profeta Daniel (como se no cap. X de suas visões),
orando ele apertadamente pela liberdade do povo, lhe deu por causa da dilaçao
daquele despacho a resistência que fizera por muitos dias diante de Deus o Anjo
Custódio do reino dos Persas, onde os mesmos Hebreus estavam cativos.
Princeps autem regni Persarum restitit mihi viginti et uno diebus. E a razão desta
resistência,
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como neste lugar notam todos os expositores modernos, era o grande proveito
espiritual que os gentios persas conseguiam com a presença e comunicação dos
Judeus, pela fé e conhecimento das cousas divinas que de sua conversação e
doutrina (ainda sem particular estudo) se lhes pregavam.
Nem se deve passar em silêncio a cobiça natural dos Judeus, ou desejo de
adquirir riquezas, e o gênio indústria e inclinação tão particular que teve sempre
esta nação ao comércio e mercancia, como filhos alfim daquele pai que,
comprando e vendendo, fez sua fortuna, e com tão pouco cabedal como uma
escudela de lentilhas soube adquirir por indústria o que lhe tinha negado a
natureza, e fazer-se patrão e senhor do maior morgado do Mundo.
Desta inclinação dos Judeus se serviu a Providência divina para os levar
suavemente às terras e regiões mais remotas, e os introduzir e misturar com
todas as nações, metendo-lhes em casa, sem uns nem outros o pretenderem, as
drogas do Céu entre as mercadorias da Terra. Cuidava Benjamim que levava
trigo no seu saco, e levava nele o trigo e mais o cálix de José. Assim saíam de
Judeia os mercadores, e nos fardos de mercadoria que levavam, metia também a
sua o Salvador do Mundo, que era esse o nome de José no Egito: Vocabit eum
lingua egyptiaca Salvatorem Mundi. E pode ser (se o pensamento me não
engana) que fosse este o intento de Deus naquela lei do cap. XXIII do
Deuteronómio:
(Inicío da citação) Non fænerabis fratri tuo ad usuram [...]
sed alieno, na qual se permitia (posto que não se justificava)
(Fim da citação)
para com as nações estrangeiras, para que esta maior liberdade ou impunidade
de adquirir ou multiplicar fazenda fora de sua pátria os convidasse a sair dela e os
arrebatasse voluntàriamente às terras estranhas onde com eles se transplantasse
a verdadeira fé, que era droga naquele tempo que só nascia em Judeia.
E que seria se a este título justificasse Deus as usuras que permitia aos
Hebreus nas outras nações, como direitos ou gabelas daquela mercadoria? Não
me atreverei a o afirmar assim, mas sei que o é cousa nova em Deus, quando
quer passar a religião de um reino a outros, meter neles a às costas do
interesse. Quando os deuses de Tróia passaram a Itália, Anquises levava os
deuses na mão, e Eneias levava às costas a Anquises. Os pregadores levam a Fé
aos reinos estranhos, e o comércio leva às costas os pregadores.
E em quantas províncias achou o Evangelho fechadas as portas e, depois
que o comércio bateu a elas, as teve abertas e francas? O primeiro rei de
Portugal que se intitulou rei do comércio da Etiopia, Arábia, Pérsia e dia foi o que
introduziu a na Índia, na Pérsia, na Arábia e na Etiópia. Se não houvesse
mercadores que fossem buscar a umas e outras Índias os tesouros da terra,
quem havia de passar os pregadores que levam os do Céu? Os pregadores
levam o Evangelho, e o comércio leva os pregadores. S. Tomé, que levou do
Brasil à Índia o Evangelho, quando não havia comércio, houve de caminhar (como
é tradição) por cima das ondas, porque não teve quem o levasse; e o segundo
Apóstolo do Oriente, querendo pregar na China, traçou que o pregador entrasse
como negociante, para que a Fé tivesse lugar como mercadoria.
Assim começou Deus a espalhar o conhecimento de sua pelo Mundo, e
assim deu princípio àquele admirável comércio em que depois, tomando de nós o
que tínhamos na Terra, nos enriqueceu com o que trazia do Céu.
Naaman Siro trouxe de Damasco as suas azêmolas com carga de ricos
presentes para oferecer a Eliseu e levou-as carregadas de terra de Israel, porque
era santa aquela terra. Assim entravam os negociantes hebreus em Judeia ricos e
acrescentados com as drogas mais preciosas de todo o Mundo, e o que
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principalmente levavam de Judeia para o mesmo Mundo, se não era a terra de
Israel, era urna droga que só se dava então naquela terra, que era a Fé e
conhecimento de Deus. Isto levaram as frotas celebradas del-Rei Salomão
quando navegavam a terras de Ofir, ou fosse Ofir a Índia, ou fosse a América, ou
fosse, como muitos querem, a nossa Espanha, império famosissimo naquela
idade ,pela riqueza e opulência de suas minas Isto vinha buscar a cobiça, e aquilo
vinha trazer a Providência, sendo certo então o que depois vimos nas frotas das
nossas Indias, que muito mais ricas iam do que voltavam. Quando voltavam,
traziam ouro, prata, pérolas, diamantes, rubis; quando iam, levavam a Fé de
Cristo, a esperança do Céu, as verdades do Evangelho, os sacramentos, a graça,
a salvação.
De maneira que o comércio, os desterros e a estreiteza da terra própria
foram as três ocasiões principais por que os Judeus se saíam e Deus os
derramava por todas as terras e nações do Mundo. Josefo, no Livro XI de suas
Antiguidades, diz que a nação hebreia tinha cheia toda a redondeza da Terra:
(Inicío da citação) orbem terrarum replevit. E Filo Hebreu,
naquele memorial ou livro que intitula De Legatione ad Caium,
(Fim da citação)
diz que a maior parte de todas as ilhas e terras firmes maritimas e mediterraneas
da Asia, da África e da Europa eram habitadas de Judeus:
(Inicío da citação) Itaque si exorat mea Patria tuam
clementiam præpter ipsam, alias civitatis demereberis
plurimas, sitas in diversis orbis tractibus, Asia, Europa, Africa,
insulares, maritimas, mediterraneas. (Fim da citação)
E se estes dois autores, posto que o alegados e seguidos de todos os
que escrevem, por serem da mesma nação, parecerem a alguém suspeitosos e
dignos de menos crédito, saiba que os mesmos testemunhos se leram nas
Escrituras Sagradas ainda com palavras mais universais e de maior
encarecimento. No edicto que passou Assuero para que morressem todos os
Judeus sujeitos às terras de seu Império, diz assim a Relação ou Relatório de
suas culpas:
(Inicío da citação) In toto orbe terrarum populum esse
dispersum, qui novis uteretur legibus, et contra omnium
gentium consuetudinem faciens, regnum jussa contemneret,
et universarum concordiam natonum sua dissensione violaret.
Quod cum didicissemus, videntes unam gentem rebellem
adversus omne hominum genus perversis uti legibus,
nostrisque jussionibus contraire, et turbare subjectarum nobis
provinciarum pacem atque concordiam, jussimas etc., (Fim da
citação)
nas quais palavras se diz votada e expressamente que o povo hebreu naquele
tempo estava espalhado por todo o Mundo:
(Inicío da citação) In toto orbe terrarum populum esse
dispersum; (Fim da citação)
e que com a novidade de suas leis perturbavam a paz de todas as gentes e de
todas as nações:
(Inicío da citação) omnium gentiam et universarum nationum;
(Fim da citação)
e que desobedeciam os mandados dos reis e eram rebeldes contra todo o género
humano: adversus omne genus humanum. E estas culpas assim relatadas que
vêm a ser senão um testimunho público e autêntico de tudo o que imos
provando? Porque não só consta delas estarem os Judeus espalhados por todo o
Mundo, mas se mostra também com a mesma clareza que os efeitos dessa
dispersão era ser pública e notória a todas as nações e reis e a todo o género
humano a nova lei e nova Fé diferente de todas as outras que os mesmos Judeus
professavam.
No I capítulo dos Actos dos Apóstolos temos outro testimunho sagrado
igualmente universal e por termos, se pode ser ainda mais notáveis:
(Inicío da citação) Erant autem in Hierusalem habitantes
judaei viri religiosi ex omni natione quæ sub caelo: «Havia em
Jerusalém (diz S. Lucas) muitos judeus moradores da mesma
cidade, homens religiosos de todas as nações que cobre o
céu;» (FIM da citação)
para cuja inteligência se deve supor que todos os hebreus que viviam longe de
Judeia em diferentes nações, reinos ou cidades populosas tinham em Jerusalém
suas sinagogas particulares e distintas, as quais sinagogas não eram
pròpriamente igrejas como as nossas (porque o templo
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era um só e comum a todos, nem podia ser mais que um conforme a lei), mas
eram umas casas grandes e públicas, onde se ajuntavam principalmente aos
sábados, e ali se tinham as pregações, os conselhos, as disputas, e todas as
outras conferências das cousas espirituais ou eclesiásticas, como se conta no
capítulo XVII dos Actos o fazia ou costumava fazer S. Paulo:
(Inicío da citação) Secundum consuetudinem autem Paulus
introivit ad eos, et per sabbata tria disserebat eis de Scripturis.
(Fim da citação)
E no capítulo VI do mesmo livro se faz expressa menção das sinagogas
diferentes que dizíamos: Surrexuntur autem quidam de Synagoga, quae
appellatur libertínorum, et Cirenensium et Alexandrinorum, et eorum qui erant a
Cilicia et Asia; mas no qual texto, como advertiu S. Crisóstomo e outros Doutores,
não se há-de entender que uma sinagoga fosse dos Libertinos, Cirenenses,
Cilicianos, Asiáticos e Alexandrinos, senão que cada uma das comunidades dos
Judeus pertencentes a estas províncias tinham a sua sinagoga própria, separada
e particular. Era Jerusalém naquele tempo (e muito mais antes daquele tempo) a
corte dos rei, a universidade das letras, o assento dos tribunais, e sobretudo era a
cabeça da Igreja da Lei Velha, como hoje é Roma da Nova, à qual estavam
sujeitos todos os Judeus e professores da mesma Fé, ainda que vivessem em
outros reinos, como se das provisões de S. Paulo, as quais ele foi buscar a
Jerusalém contra os Judeus de Damasco, que era terra de gentios sujeitos a El-
Rei Arctas, e assim como todos os reinos e repúblicas da Cristandade têm seus
embaixadores, agentes requerentes e igrejas particulares em Roma, e ainda
hospitais da mesma nação, assim e muito mais se observava o mesmo uso entre
os Judeus, gente por natureza tenacíssima dos seus costumes e ritos.
E era tanto o número destas sinagogas em Jerusalém, que quando
ultimamente foi destruída aquela cega cidade por Tito e Vespasiano, se acharam
nela, como refere Lorino, quatrocentas e oitenta sinagogas. cada uma de
diferente nação, província, reino corte ou povo notáve1 onde houvesse tanto
número de Judeus que ó que deles assistiam em Jerusalém pudessem formar
corpo e comunidade distinta.
Daqui se tira o novo e eficaz argumento de quão espalhados e
multiplicados estavam os Judeus por todas as partes do Mundo. E estes eram
aqueles a quem S. Pedro, no Sermão de dia de Pentecoste, chamou judeus de
longe:
(Inicío da citação) Vobis enim est repromisio et filiis vestris et
omnibus qui longe sunt (Fim da citação)
Vivendo pois os Judeus tão misturados e travados com todas as nações
dos gentios, desta companhia se lhes pegara, como dizíamos, o conhecimento da
de Deus e esperança de Cristo, e o pelo trato, comunicação e exemplo,
senão também por indústria e estudo particular de alguns judeus mais zelosos, os
quais com desejo de aumentar a sua religião e o culto do verdadeiro Deus,
ensinavam e afeiçoavam a ela os gentios.
Desta verdade temos em prova (que não é só suspeita ou conjectura
nossa) o testemunho e autoridade do mesmo Cristo no capítulo XXIII de S.
Mateus, onde, repreendendo a hipocrisia dos escribas e fariseus, diz assim:
(Inicío da citação) circuitis mare et aridam, ut faciatis unum
proselytum: et cum fuerit factus, facitis eum filium gehennæ
duplo quam vos. «Cercais o mar e a terra para converter um
gentio à Fé, e depois que está convertido, ensinai-lhes tais
doutrinas que o fazeis mais filho do Inferno do que vós sois.»
(Fim da citação)
Na qual sentença de Cristo se principalmente como os Judeus rodeavam mar
e terra, isto é, peregrinavam e navegavam por todas as terras e mares do Mundo,
e juntamente se prova que com estas suas peregrinações e navegações levavam
pelo mesmo Mundo a Fé do verdadeiro Deus, e o davam a conhecer aos Gentios,
dos quais convertiam alguns; e finalmente que Não se fazia
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isto acaso e por ocasião do trato, se não por zelo e cuidado particular da Religião,
posto que depois a viciavam os escribas e fariseus do tempo de Cristo com a
doutrina e exemplo que lhes ensinavam; nem faltavam em diversas partes do
Mundo padrões desta mesma verdade, levantados entre as gentes mais políticas
e celebradas da Gentilidade. Tal era aquele altar que S. Paulo achou em Atenas,
consagrado ao Deus não conhecido Ignoto Deo o qual Deus não conhecido,
como logo lhes declarou o mesmo Apóstolo, era o verdadeiro Deus, criador do
Céu e da Terra.
Destes altares havia outros, como escreve o Cardeal Barónio, na Arábia,
nas Gálias, na nossa Espanha e em outras províncias nobres da Asia e da
Europa, e que estes monumentos de Religião e este conhecimento de Deus não
conhecido se tivesse derivado aos Gentios da doutrina e trato com os Judeus,
provam-no agudamente alguns autores, com o mesmo título de não conhecido.
Porque os deuses dos Gentios eram conhecidos pelos seus nomes particulares
de Júpiter, Saturno, Marte; mas o Deus dos Judeus não era conhecido de nome,
porque Ihes estava proibido tomarem na boca o nome de Deus, e por isso se
chamava Inefável, isto é, nome que se não podia falar nem dizer.
(Inicío da citação) Vere tu es Deus abconditus, Deus
absconditus et Salvator (Fim da citação)
dizia Isaías a Deus, aludindo a esta proibição:
(Inicío da citação) «Verdadeiramente, Senhor, vós seis um
Deus escondido, mas Deus que escondido e desconhecido
salvais.» (Fim da citação)
E Josefo, no Livro II de suas Antiguidades, vindo a tratar do nome de Deus,
passou-o em silêncio e disse que lhe não era lícito pronunciá-lo:
(Inicío da citação) De quo mihi dicere non est fas. (Fim da
citação)
Conheciam, porém, os Gentios, ensinados pelos Judeus, que este Deus
desconhecido a quem não sabiam o nome era o Deus que criara todas as cousas,
e este foi o mistério daquela erudita ignorância, com que, descrevendo Ovídio a
criação do Mundo, não o nomeou nem determinou o Deus que o criara, dizendo-o
só absoluta e incertamente:
(Inicío da citação) Quisquis fuit ille deorum «quem quer que
foi o Deus» que o criou. (Fim da citação)
Mas nesta mesma incerteza com que falou no Deus criador do Mundo, este
poeta declarou ser ele o Deus que adoravam os Judeus, ao qual os Gentios
chamavam Deus incerto, porque não tinha nome particular com que fosse
conhecido e se distinguisse dos outros deuses. Assim o disse Claudiano, também
poeta latino e gentio, chamando aos Judeus os adoradores de Deus incerto:
(Inicío da citação) Cultrix incerti Judæa Dei. (Fim da
citação)
E estes foram os primeiros rudimentos da que os Judeus semearam entre os
Gentios, introduzindo-se o verdadeiro Deus nas outras nações e andando nelas
como disfarçado, conhecido debaixo do nome de incógnito, e crido com o
sobrenome de incerto.
E para que concluamos este discurso com uma advertência em tal matéria
digna de muito reparo, no capítulo XXXII do Deuteronómio diz Moisés que,
quando Deus, na confusão da Torre de Babel, dividiu a todos os filhos de Adão
em diversas nações e línguas, fez aquela divisão conforme o número dos filhos
de Israel, respondendo a cada um deles uma nação:
(Inicío da citação) Quando dividebut Altissimus gentes,
quando separabat filios Adam, Constituit terminos populorum
juxta numerum filiorum Israel. (Fim da citação)
No qual número alude Moisés aos filhos de Israel, que entraram no Egito, •os
quais consta do capítulo X do mesmo livro e do capítulo XLVIII dos Génesis, que
foram setenta almas:
(Inicío da citação) Omnes animæ domus Jacob, quae
ingressæ sunt in AEgyptum, fuere septuaginta. (Fim da
citação)
Assim entendem este lugar todos os Padres e intérpretes, os quais também
concordam em que as línguas e nações em que Deus dividiu os homens (como
se colhe do capítulo X do Génesis, em que se referem as famílias dos
descendentes de Noé) foram setenta e duas. Destas, se tirarem a
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hebreia e egipcia, que estavam unidas e se comunicavam, ficam pontualmente
setenta.
Agora pergunto: E que mistério ou que intento teve a Providência Divina
em igualar o número de todas as nações ao dos primeiros hebreus e não em
outro tempo ou ocasião, senão quando a primeira vez se ajuntaram com os
Gentios? O mistério e razão desta providência foi sem dúvida porque tinha Deus
destinado aos Judeus para mestres da dos Gentios naquela primeira Igreja. E
era conveniente e necessário para este soberano fim que fossem tantos os
mestres quantas eram as nações.
Temos a confirmação deste pensamento na mesma Providência Divina,
que sempre é semelhante a si mesma em casos semelhantes. Tratou Cristo de
dispor a pregação do Evangelho e conversão do Mundo, e, depois de nomeados
os doze Apóstolos, em correspondência também dos doze filhos de Jacob e dos
doze tribos de Israel, elegeu sinaladamente setenta e dois. E dois discípulos,
como escreve S. Lucas no capítulo X, que mandou diante de si:
(Inicío da citação)...designavit Dominus et alios septuginta
duos et misit illos binos ante faciem suam, in omnem civitatem
et locum, quo erat ipse venturus. (Fim da citação)
E se buscarmos nos expositores sagrados o mistério e proporção deste número,
responde S. Jerônimo, e com ele a sentença comum dos intérpretes, que foram
setenta e dois estes novos precursores e embaixadores de Cristo, por serem
outras tantas (como dizíamos) as nações do Mundo, que o Senhor, por meio da
sua pregação e doutrina, queria trazer (como trouxe) ao conhecimento da Fé. De
maneira que, assim como Cristo, no princípio da Lei da Graça, igualou o número
dos seus discípulos ao das nações e gentes do Mundo, para que levassem por
todo ele o conhecimento de Deus e a nova de que o Messias era vindo, assim
Deus, no princípio da Lei Escrita, mediu o número dos filhos de Israel, que são os
Hebreus, com o de todas as outras nações e gentes do mesmo Mundo, porque
eles eram os que haviam de levar e semear entre todas elas o conhecimento do
verdadeiro Deus. E a nova e promessa de que o Messias havia de vir é
explicação admirável de outros setenta e dois intérpretes da divina palavra, os
quais, em lugar de juxta numerum filiorum Israel tresladaram juxta
numerum Angelorum Dei » , chamando neste lugar aos filhos de Israel anjos ou
embaixadores de Deus, porque esse era o fim e ofício para que foram destinados
a todas as nações e tomados e repartidos conforme o número delas.
O terceiro meio de providência particular com que pôde chegar facilmente e
chegou naquele tempo aos Gentios o conhecimento da e esperança de Cristo,
foram as Escrituras Sagradas. O primeiro livro que viu o Mundo foi o Pentateuco,
de Moisés, e não faltam grandes conjecturas para se crer que Moisés foi aquele
prodigioso Mercúrio a quem os Antigos celebraram com o nome de Trimegisto.
Este livro foi o que fez aos Caldeus mestres da Ásia, aos Egípcios da África e aos
Gregos da Europa. Com razão chamou Clemente Alexandrino a Platão o Moisés
de Atenas Moyses Atlicus porque de Moisés foram tirados todos aqueles
lumes que deram a Platão em suas obras nome de divino. Deste rústico, que
assim lhe chamou Aristóteles, tomou este soberbo e ingrato filósofo a sabedoria
mais sublime que o fez o maior da Grécia. Aos livros de Moisés se seguiram os
outros sagrados; os dos Profetas, que são entre todos quase os últimos, ainda
vencem em antigüidade os mais antigos filósofos e escritores gentios.
(Inicío da citação) Tempore nostrorum prophetarum (diz S.
Agostinho) philosophi gentium nondum erant. (Fim da
citação)
E como só estes livros havia no Mundo, só estes se liam em todo ele, dispondo-o
assim a Providência, que tudo governa, para que mais se estendessem por toda a
parte e fossem mais celebradas suas notícias.
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Não lhes podia suceder então às Escrituras divinas o que depois lhes
aconteceu com Jerônimo, quando as deixou pela suavidade de Túlio, porque
ainda não tinha gostado sua doçura. Elas eram o estudo dos sábios, elas o
entretenimento dos curiosos, elas o desvelo dos entendidos. Esse foi um dos
mistérios de Deus, em as fazer escuras, para que, tendo sempre que entender,
fossem uma e muitas vezes lidas.
Quem quiser saber facilmente quão estudadas eram dos Gentios as
Escrituras, leia com atenção os livros dos seus filósofos, dos seus historiadores e
ainda dos seus poetas, e verá o que delas tomaram, delas imitaram e sobre elas
fingiram; verá quanto as não largavam das mãos. «Tudo o que compôs o estilo
dos vossos escritores dizia Tertuliano aos Gentios a substância, a matéria, a
origem, a ordem, as histórias das gentes e das cidades insignes, e ainda as
mesmas cidades e algumas das gentes; as causas e memórias do que
escreveram e até a forma das letras e imagens dos caracteres, e os vossos
mesmos deuses (e não digo nisto mais senão menos) os vossos templos, os
vossos oráculos, os vossos sacrifícios, tudo vencem em muitos séculos de
antigüidade os livros de nossas profecias, e tudo foi tomado do tesouro das
escrituras judaicas, que são também as nossas:
(Inicío da citação) Omnes itaque substâncias omnesque
materias, origines, ordines, venas veterani cujusque styli
vestri, gentes etiam plurasque et urbes insignes, historiarum
causas et memoriarum , ipsas denique effigies literarum
indices custodesque rerum, et (puto adhuc minus dicimus)
ipsos, inquam, Deos vestros, ipsa templa, et oracula, et sacra
unius interim prophetae scrinium, sæculis vincit, in quo videtur
thesaurus collocatus totius Judaici Sacramenti, et inde etiam
nostri... Até aqui Tertuliano. (Fim da citação)
É certo que, se os versados nas divinas Escrituras considerassem
diligentemente a matéria delas e a traça e harmonia com que foram ditadas pelo
Espírito Santo, achariam facilmente que não foram escritas pela lei e
observância dos Hebreus, senão também para lição e estudo de todas as outras
nações; porque, sendo um o Povo de Deus, e os autores que escreveram
aqueles livros todos do mesmo Povo, a que outro fim se faz neles tão freqüente
memória de todas as outras nações do Mundo e seus sucessos? Assim temos os
Cananeus, os Amorreus, os Fereses, os Eveus, os Eteus, os Jebuseus, os
Filisteus; assim os Ismaelitas, os Amonitas, os Moabitas, os Madianitas, os
Gabaonitas, os Amalecitas; assim os Assírios, os Medos, os Caldeus, os Persas,
Sírios, os Tírios, os Sidónios, os Egípcios, os Etíopes, os Gregos, os Macedónios,
os Romanos. E não havia antes de Cristo província conhecida ou cidade de
grande nome no Mundo, de cujos sucessos se não achasse alguma memória no
Testamento Velho, assim dos passados nas histórias, como dos futuros nas
profecias.
Não falo de Daniel, que falou universalmente de todos os maiores
impérios; mas em nove capítulos de Isaías lemos sinaladamente as profecias
de onze nações diferentes, chamadas cada urna por seu nome a ouvir a sentença
e a saber da boca de Deus o que lhe estava por vir. E que nação destas haveria
que o lesse com grande atenção e cuidado os oráculos daquele famoso
profeta, onde estavam conhecendo seus nomes e lendo as fortunas? Bastava
para mover a curiosidade universal de todas as gentes à lição dos livros
Sagrados, serem eles os que revelaram e descobriram o Mundo o segredo de
seu primeiro princípio, tão ignorado entre todos os sábios, a origem das línguas, o
nascimento das nações, a divisão das terras, a ordem e cronologia dos tempos,
do que tudo houvera perpétua ignorância nos homens, se não estivera revelado
nas Escrituras.
Mas quando nenhum destes tesouros houvera depositado e encerrado
nelas, falando somente do que pertence à história, que livros se escreveram
jamais, não
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digo dos que professam verdade, mas dos fingidos e fabulosos, que igualem em
grandeza e variedade de casos admiráveis a menor parte ou sombra do que se
refere nas histórias sagradas?
(Inicío da citação) Narraverunt mihi iniqui fabulationes, sed
non ut lex tua, (Fim da citação)
dizia Daniel, e mais ainda não tinha sido o que depois dele se escreveu. Que
gigantes fabulosos filhos da terra se atreveram a edificar uma torre como a de
Babel, nem arrimaram escadas ao céu, sem pôr monte sobre monte, como a de
Jacob? Que metamorfoses ou transformações fingiram como a de
Nabucodonosor, convertido em bruto, a da mulher de Lot em estátua, a da vara
de Moisés em serpente, comendo serpentes, e depois de serpente convertida
outra vez em vara?
Descreveram as fábulas o dilúvio, mas não tiveram fantasia para meter
todo o Mundo em uma arca, nem confiança para o salvar nela. Qual poeta se
impôs ou traçou jamais uma comédia como a de Job, uma tragédia como a de
Aman, uma novela ou enredo como a de José? Em que teatro dos Gentios se
representaram aparências de tanto artifício como um paraíso terreal sumido no
meio do Mundo, um Enoc desaparecido ,de repente, um Datão e Abiron tragados
da terra, e um Elias voando pelos ares em um carro de quatro cavalos, o carro, as
rodas e os cavalos tudo de fogo? Que semelhança tiveram aquelas máquinas que
se levantaram com nome de maravilhas do Mundo com a portentosa grandeza
das que lemos nas Escrituras? Que estátua como a de Nabuco, que carroça
como a de Ezequiel, que coluna como a do Deserto, que jardins como os de
Assuero, que palácio encantado como o templo de Salomão, edificado de seus
fundamentos sem nele se ouvir o golpe de martelo? Um pavilhão que de dia
cobria do sol seiscentas mil famílias, uma tocha que de noite as alumiava,
dissemos que se chamava coluna.
Que disse a Gentilidade da cítara de Orfeu, que se iguale com a harpa de
David, de que fugira o Inferno? Que disse das respostas duvidosas do seu Apolo,
que se pareça com os oráculos sempre certos do propiciatório? Que disse das
vozes de Eudimião, também ouvidas da Lua, que não exceda uma voz de
Josué, obedecida da Lua e do mesmo Sol? O caduceu tão celebrado do seu
Mercúrio que comparação teve com os poderes da vara de Moisés, que dividia os
mares, parava os rios, fazia caminhar os montes? Onde se tal agravo de
omnipotência como no tenente daquela vara em quem foi culpa tirar fontes de um
penhasco com dois golpes, porque o podia fazer com uma palavra?
Não digo nada dos documentas da Escritura, porquanto trato do doce e
não do útil, do que leva o apetite e o do que move a razão. Que se podia
inventar de maior pasmo aos ouvidos, que ouvir falar um jumento com Balão e
uma serpente com Eva? Que se podia fingir de maior lisonja e admiração ao
gosto, que comer em uma iguaria todos os banquetes e gostar em um maná
todos os sabores? Que se podia imaginar de maior suspensão e assombro à
vista, que ver o monstro marinho engolir a Jonas, ver levá-lo consigo ao fundo e
desaparecer, e ver dali a três dias surgir a baleia, desembarcá-lo a fera vivo nas
praias de Nínive?
Como estes são os prodígios que se encontram a cada página nos Livros
Sagrados. Mas que dírei das façanhas e cavalarias que, ainda conhecidas por
falsas, deleitam e suspendem tanto a curiosidade dos homens? Que desafio
como o de David, com uma funda e um cajado contra o gigante coberto de ferro?
Que batalha como a de Gedeão, só com trombetas e luzes em cântaros de barro?
Que bateria como a dos muros de Jericó, derrubados com os instrumentos dos
músicos do templo! Que emboscada como a de Abimelec em que os bosques e
as sombras caminhavam juntamente e os soldados com eles? Que vitória como a
de Jónatas, em que um capitão com um soldado, pôs em fugida e
desbarato o exército
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inumerável dos Filisteus? Que triunfo como o da galharda Judite, quando entrou
pelas portas de Betúlia com a cabeça de Olofernes, em que degolou de um golpe
todo aquele seu exército?
Mas passando nós a encontros de maiores forças em que pelejaram os
braços e não a indústria, que Hércules Tebano como Sansão, aquele que, atado
sete vezes, de uma só rompeu as cordas e nervos como se foram teias de
aranha; aquele que, preso dentro da cidade de Gaza, quebrou com as mãos os
ferrolhos e lançou às costas as portas; aquele que, levado ao templo dos
Filistinos, lançou a mão direita e esquerda a duas colunas, dando com o templo
em terra, sepultou debaixo dele todos os idólatras; aquele que, com uma
queixada de um jumento, matou, em campo aberto, mil de seus inimigos e ainda
matara mais, se não fugiram todos?
Teve sede Sansão, cansado de matar, e, arrancando um dente da mesma
queixada, fez brotar dela uma fonte. Assim obedecem os elementos a quem
assim triunfa dos homens. Todas estas forças tinha este bizarro mancebo em sete
cabelos, porque dedicou todos a Deus, desde seu nascimento.
Segundo Sansão, foi Sangar capitão do mesmo povo depois de juiz, e juiz
depois de lavrador, mas lavrador que, fazendo montante do arado, matou com ele
em um dia seiscentos filisteus, e deixou semeando com seus corpos o campo que
andava lavrando. Fique à trombeta da fama Josué, vencedor de trinta e um reis, e
o fortíssimo Macabeu, restaurador vítima da sua pátria. Paremos no valente
Eleásaro, que, metendo-se intrepidamente com a espada debaixo de um elefante
armado, primeiro foi matador de sua sepultura, e depois ficou ali o sei se diga
morto, se mortalmente oprimido do peso de tamanha vitória.
Mas deixando a guerra, o sangue e o estrondo das armas, que história tão
admirável como a da casta Susana? Que sacrifício tão lastimoso como o da filha
de Jepta, e o venturoso como o de Isaac posto sobre o altar, e de entre a
lenha e a espada escapando vivo? Que caso tão bem tecido como o de Moisés
infante, entregue à fúria do Nilo na barquinha ou naufrágio de vimes, tomando
posto nos braços da Princesa do Egito, encomendado com maior ventura à
própria mãe para que o criassem a seus peitos? Que maravilha como a da sarça
verde e sem arder no meio das chamas, a dos meninos de Babilônia tomando
fresco na fornalha, a de Daniel comendo e não comido no lago dos leões, e a da
serpente do Deserto dando vida aos mordidos com olharem para ela? Que
prudência como a de Salomão em mandar partir o menino para conhecer a mãe
verdadeira? Que engenho como o de Jacob em meter as cores pelos olhos das
mães, para pintar os cordeiros antes de nascerem? Que indústria como a de
Daniel em semear de noite o templo de cinza, para mostrar de dia nas pegadas
dos sacerdotes e seus filhos que eles e não o ídolo eram os que comiam as
ofertas? Que subtilezas de Estado tão bem entendidas como as dos Livros dos
Reis, que como as de David com Saul e as de Cusai com Aquitofel?
Tudo nas divinas Escrituras é divino, tudo raro, tudo maravilhoso, e fora
matéria imensa de prosseguir e impossível de compreender querer levar por
diante os princípios deste não intentado discurso.
Bastem estes poucos exemplos, mais aludidos que contados, para que
deles possa entender o leitor (que é o que lhe pretendemos persuadir) quão
fraca seria a todas as nações dos Gentios a lição dos Livros Sagrados quando
chegassem a suas mãos, e como este foi o altíssimo conselho da Providência
Divina, no estilo e disposição das escrituras do Testamento Velho (tão diversas
nesta parte das do Testamento Novo) temperando a alteza e majestade de seus
mistérios com o sabor
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de tantas verdades gostosas e com a variedade de tantas maravilhas tão novas e
tão notáveis, para que, convidados com o cevo da curiosidade os que ainda não
deviam àqueles livros outros melhores respeitos, aprendessem por eles a de
Deus e juntamente as esperanças de Cristo.
E quão impossível cousa seja poderem ler os Gentios as Escrituras
Sagradas, sem beberem daquelas fontes esta esperança, -se clara e
naturalmente da matéria das mesmas Escrituras, que, como todas, foram
ordenadas à vinda de Cristo, e de Cristo em quanto Rei e Senhor do Mundo,
apenas se acha cláusula em muitas delas que não esteja anunciando esta vinda e
este Reino.
Três partes da Escritura, disse Cristo aos discípulos que falavam mais
particularmente na sua vinda ao Mundo: os Profetas, os Salmos e os livros de
Moisés:
(Inicío da citação) Necesse est impleri omnia quae scripta
sunt in lege Moysi et prophetis et psalmis de me. (Fim da
citação)
E deixando à parte os lugares mais escuros (que esses o os entendiam os
Gentios sem itérprete) como se viu no eunuco da rainha Cândaces, de Etiópia (se
bem havia muitos hebreus, como dissemos, entre os Gentios, a quem estes
podiam perguntar a interpretação quando quisessem) o cap. 2, o 9, o II, o 35, o
52, o 53, o 54, o 65 e o 66 de Isaías, e muitos outros de todos os Profetas, que
homem os podia ler com juízo e entendimento, ainda que fosse sem fé, que não
visse e conhecesse que era prometido naquelas palavras um Rei futuro, e não
Rei como os que costumava ver no Mundo, de uma só ou algumas nações, senão
de todas as gentes e reinos do Universo? E quando todas as outras profecias
tivessem alguma escuridade que eles não pudessem entender ou interpretar por
si mesmos, os dois textos de Daniel, fundamentais desta nossa História, em que o
Reino universal daquele futuro Monarca está expresso e declarado com palavras
tão vulgares e tão significativas, e com termos que Não admitem outro sentido
nem interpretação, que gentio havia de haver, por bárbaro e ignorante que fosse,
que não fizesse conceito do que diziam?
Mas basta ao nosso intento que o fizessem os doutos e os entendidos. Nos
Salmos de David, como ele era a quem tão de perto tocava aquela felicidade e a
quem particularmente estava prometida, é cousa maravilhosa a freqüência com
que está repetido, a clareza com que está apregoado e a pompa e majestade de
palavras com que está engrandecido o Reino de Cristo. O Salmo II, o Salmo IX, o
Salmo XLI, o Salmo XLV, XLVI e XLVII, o Salmo LVIII, LXVII e LXXXVIII, o Salmo
XCII, XCV, XCVI, XCVII, o Salmo CII, todos estes catorze salmos têm por
principal assunto o Império do Messias.
E porque não duvidassem os Gentios que eles, as suas terras e as suas
coroas, eram as que haviam de ser sujeitas a este grande Império, vinte nove
vezes lhes repete e inculca o mesmo Daniel esta gloriosa sujeição, falando com
eles nomeadamente, e não por termos enigmáticos ou metatífisicos, senão clara e
distintamente pelo seu próprio nome de Gentios. Que gentio podia haver tão rude,
tão alheio do lume da razão e tão gentio, que lendo no Salmo II:
(Inicío da citação) Dabo tibi gentes hæreditatem tuam et
possessionem tuam ter minos terræ; (Fim da citação)
e no Salmo XXI:
(Inicío da citação) Adorabunt in conspectu ejus universæ
familiæ gentium, quoniam Domini est regnum; (Fim da
citação)
e no Salmo XCVIII:
(Inicío da citação) Dominus in Sion magnus, et excelsus
super omnes populos; (Fim da citação)
e no Salmo XCV:
(Inicío da citação) [Dicite] in gentibus quia Dominus regnavit,
etenim correxit orbem terrae; (Fim da citação)
e no Salmo LXXI:
(Inicío da citação)Adorabunt eum omes reges terræ, omnes
gentes servient ei; (Fim da citação)
que gentio, digo, podia ler estes textos ou ouvir estes pregões tão expressos e
declarados do domínio daquele futuro Rei sobre todos os Reis e nações do
Mundo, que, se não cresse aquela Fé, ao menos não conhecesse aquela
esperança?
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Deixo de ponderar mais lugares de David, porque o faremos muitas vezes, em
toda esta História.
Finalmente, os livros de Moisés (que era a 3.a alegação de Cristo), posto
que sejam principalmente históricos e não proféticos, não têm por ocasião da
mesma história muitas profecias e promessas desta esperança, mas tão dirigidas
e encaminhadas todas as nações, nomeadamente dos mesmos Gentios, que não
podiam deixar de ser lidas deles com grande advertência e recebidos com grande
aplauso. No capítulo XII, do Gênesis, a primeira vez que Deus apareceu a Abraão
e o mandou sair da pátria, lhe prometeu que seriam abendiçoadas nele todas as
nações da terra:
(Inicío da citação) In te benedicentur universæ cognationes
terræ; (fim da citação)
e no capítulo XVIII torna a referir Deus esta mesma promessa:
(Inicío da citação) ...cum benedicendae sint in illo omnes
nationes terræ; (Fim da citação)
e no capítulo XXII, em prêmio da resolução e obediência com que Abraão não
duvidou de sacrificar seu filho, lhe promete Deus terceira vez a mesma bênção,
com declaração que não seria na sua pessoa, senão na de um seu descendente:
(Inicío da citação) Benedicentur in semine tuo omnes gentes
terrae. (Fim da citação)
A qual promessa tornou Deus a ratifica quarta e quinta vez em Isaac, filho, e em
Jacob, neto do mesmo Abraão, sempre pelas mesmas palavras. Em Isaac no
capítulo XXVI:
(Inicío da citação) Benedicertur in semsa tuo omnes gentes
terræ; (Fim da citação)
e em Jacob, no capítulo XXVIII:
(Inicío da citação) Benedicentur in semine tuo cuntae tribus
terræ; (Fim da citação)
finalmente, no capítulo XLIX do mesmo livro dos Gênesis está o famoso texto
referido um dos dois em que fundamos todo este discurso:
(Inicío da citação) Non auferetur sceptrum de Juda, donec
veniat qui mittendus est, et ipse erit expectatio gentium. (Fim
da citação)
De sorte que em um livro de Moisés tinham os Gentios seis profecias
claras e que claramente falavam com eles, nas quais se lhes prometia por boca
de Deus que seriam abendiçoadas em um homem da descendência de Abraão,
que era o esperado Rei e Messias do Mundo. Assim que, lendo os Gentios como
liam as Escrituras, e particularmente os livros de Moisés, os dos Salmos e os dos
Profetas, não podiam deixar de vir em conhecimento, e tal conhecimento de
Cristo, que todos o desejassem e esperassem todos.
O quarto e último meio e mais imediato da Providência Divina, com que as
nações gentílicas puderam conhecer, e com efeito conheceram, o prometido
Messias, foram muitas revelações particulares daquele mistério com que Deus em
diferentes tempos alumiou por si mesmo a vários homens e mulheres de toda a
Gentilidade. Seja o primeiro exemplo desta luz aquele grande varão mais
conhecido pelo testemunho da paciência que pelo lume da profecia, Job.
Era Job verdadeiramente gentio, idumeu de nação, natural da terra de Hus,
e foi insigne profeta de Cristo, a quem conheceu por universal Redentor: Et scio
quod Redemptor mous vivit; e em quem esperou ver a Deus vestido de carne: In
carne mea videbo deum meum ; e esta esperança, como ele diz, trazia sempre
guardada no seio:
(Inicío da citação) Reposita est haec spes mea in sinu meo».
Similiter et Job (Fim da citação)
diz Santo Agostinho
(Inicío da citação) eximius prophetarum, et in carne mea
videbo Deum meum , quod de illo tempore prophetavit quia
Christi deitas habitum nostrae carnis induta est. (Fim da
citação)
Os amigos de Job também eram gentios de outras províncias vizinhas, e
também alumiados da mesma fé e confirmados na mesma esperança, como
consta da mesma história e do que eles disseram nela; e como todos fossem reis
e senhores de suas terras (assim lhes chama o Texto Sagrado no capítulo I de
Tobias) com aquela suprema autoridade e com o conhecimento e sabedoria que
tinham do Céu , se vê quão ensinados teriam nela a todos seus vassalos, e
quão pública seria entre eles a esperança de Cristo
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Balão (cujo espírito profético é tão vulgar que não tem necessidade de
provas) não só foi gentio, senão mau gentio. Dele diz S. Máximo:
(Inicío da citação) Nemo [...] miretur netivitatem dominicam
agnovise Chaldaeos quam utique, si revelante Deo
praenuntiare potuit; potuit Gentilis agnoscere. (Fim da
citação)
Este Balaão, este gentio, (o qual não duvidou de se chamar a si mesmo auditor
sermonum Dei, qui novit doctrinam Altissimi et visionem Omnipotentis vidit)
profetizou claramente de Cristo e de seu império naquele texto ,tão celebrado no
capítulo XXIV dos Números:
(Inicío da citação) Videbo eum, sed non modo; intuebo, illum,
sed non prope: orietur stella ex Jacob, et consurget virga de
Israel, et percutiet duces Moab, vastabitque omnes filios Seth.
Quer dizer: «Vê-lo-ei, mas não agora; olharei para ele, mas
não de perto; nascerá a estrela de Jacob, e levantar-se-á o
ceptro de Israel; vencerá todos os capitães dos Gentios e
sujeitará todas as nações do Mundo.» (Fim da citação)
As quais palavras foram sempre entendidas, assim pelos Hebreus, como pelos
Gentios, de um Rei descendente da casa de Jacob, que em tempos futuros havia
de imperar no Mundo e havia de sujeitar a seu domínio todas as nações dele.
E digo que não só os Hebreus entendiam assim este lugar, mas também os
Gentios, por ser muito célebre entre eles a notícia deste oráculo, e muito famosa,
ou difamada (como diz S. Leão Papa), a memória desta profecia, pela qual
memória ou notícia (diz o mesmo santo) informados os Reis Magos, puderam
argüir do aparecimento da nova estrela o nascimento do novo Rei:
(Inicío da citação) ...ad intelligendam miraculum signi
potuerunt Magi etiam de antiquis Baluam praenuntiationibus
commoveri scientes alim esse praedictum et celebri memoria
diffamatam. (Fim da citação)
Notem-se bem estas últimas palavras, de que se ve facilmente quão notória era
no Mundo e quão pública entre os Gentios esta esperança.
Das Sibilas (profetizas também da Gentilidade) diz assim Xisto Betuleu,
nas Anotações que fez sobre o original grego dos oráculos sibilinos:
(Inicío da citação) Sic prarsus sentio Deum totius
universitatis opificem et administrum aeternum, suum votum et
totam illam futuram seriem praesertim ad salatem mortalium
spectantem, sicut Israeli per prophetas, ita gentibus per
Sibyllas ostendere voluisse per idem numen fatidicum. (Fim
da citação)
Quer dizer este autor (e o confirma com o que disseram das Sibilas
Lactanio Firmiano e S. Agostinho) que comunicou Deus o espírito de profecia a
estas famosas mulheres, porque, assim como os Hebreus tiveram os seus
Profetas, tivessem também os Gentios os seus, por cujo meio a uns e outros
fossem manifestos os conselhos divinos, principalmente aqueles que para a
salvação uníversal do Mundo eram necessários, conforme a ordem e disposição
eterna de sua providência.
E se alguém perguntar curiosamente a quem e por cu]a boca falou Deus
mais claramente, se aos Hebreus pelos Profetas, ou aos Gentios pelas Sibilas,
respondo que em muitas cousas particulares, principalmente das que pertencem
a Cristo, falaram com termos de maior clareza as Sibilas do que os Profetas,
como se pode ver facilmente de uns e outros livros. De muitos lugares e exemplos
que pudera trazer desta diferença, porei somente aqui dois, para que se veja
quão fácil era aos Gentios o conhecimento de Cristo pelos livros ou oráculos das
Sibilas, antes quão impossível cousa era lerem eles, como liam, aqueles livros, e
não terem notícia da Messias e da esperança e promessa de sua vinda, formando
ao menos um conceito comum, e conceito de um Rei e de um Império futuro,
debaixo do qual se havia de renovar e restaurar o Mundo. No fim do Livro II diz a
Sibila Eritrea estes versos:
(Inicío da citação) Sed postquam Roma AEgyptum reget imperioque
Fraenabit, summi tum summa potentia regni
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Regis inextincti mortalibus exorietur.
Rex etenim sanctus veniet, qui totius orbis
Omnia sceculorum per tempora sceptra tenebit. (fim da citação)
Não se podia descrever com maior clareza o tempo e circunstâncias do
nascimento de Cristo, a soberania de seu supremo poder e a Monarquia Universal
de seu Reino sobre todos os ceptros e coroas do Mundo. Diz que nasceria este
Rei e daria princípio a seu Império quando Roma dominasse e governasse o
Egito; e assim foi, porque depois da vitória de Augusto César, em que venceu a
Marco António e Cleópatra no Egito, e acabou de dominar o Império Romano, as
últimas relíquias de poder em que se conservava o Grego não passaram mais
que doze anos, até o nascimento de Cristo, como consta da... (lacuna do original)
No Livro VIII (que é o último) tem a mesma Sibila outros versos mais
notáveis do género daqueles que os Gregos chamaram acrósticos, cujo artifício é
lerem-se pelas primeiras letras, e formar-se com elas alguma sentença, nome ou
inscrição particular. Os versos, pois, são trinta e cinco e a sentença é esta:
(Inicío da citação) Jesus Christus, Dei filius, servator Crux
Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador cruz. (Fim da citação)
Estes versos estão em toda a sua propriedade no texto grego, e não se poderão
traduzir na língua latina com o motivo daquelas letras sem alguma variedade. S.
Agostinho, no Livro XVIII De Civitate Dei, cap. XXIII, diz que a primeira versão que
chegou a suas mãos deste acróstico era em versos mal latinos, e que se não
podiam ter em pé: Versibus male latinis et non stantibus; tão galante é a frase
com que o Santo declara o mal falado e mal medido daqueles versos. Depois diz
que o Procônsul Flaviano lhe mostrou outros mais conformes às leis da gramática
e da poesia, os quais copia este naquele lugar, e nós deixamos de os pôr aqui,
porque não guardam a ordem das letras iniciais, propriedade que falta em muitas
outras versões latinas. A de João Bongro, traduzida por Xisto Betuleu,
compreendeu e cumpriu felizmente com todas estas dificuldades, sem tomar outra
licença mais que a de desatar a última letra em duas, e fazer de um X, C e S. É a
seguinte:
(Inicío da citação) Judicii metuet sudans presagia tellus
Et Rex ceternus magno descendet Olympo
Sublimis carnem mundumque ut judicet, omnem.
Unum suscipient numen pravique bonique
Summum, supremo cum Sanctis tempore mundi.
Carnifer ille homines judex inquiret in omnes,
Horrida terra vias caeli spinceque tenebunt.
Rejicient simulacta viri, gazamque retostam.
Ille domus caecas et Ditis claustra refringet.
Sanctior a mortis jam nexu libera lucem
Turba hominum cernet, scelerosos flamma piabit
Ultrix bertetuum: mala quae quicumque patravit
Sontica suppressitque diu, producent in auras
Deteget et turbis Deus obsita corda tenebris;
Erumnae et stridor dentis regnabit ubique;
Ipsum deficiet solis decus astra colore
Fusco obducentur, argentea luna peribit,
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Insurgent valles, consident ardua montis,
Luxus sublimis mortales deseret oras.
Immensos colles aequabunt marmora campi.
Velivago nulli cernentur in aequore nautae.
Succendet terram fulmen, vaga lympha
Solis arescet ripis, fontesque dehiscent:
Et tuba de caelo tristis clangore sonabit
Raucisono mundi clades pereuntis acerbas;
Vastam terra chaos stygio monstrabit hiatu,
Atque Dei solio sistetur judicis omnis
Turba ducum regumque; pluet tum sulphure et igni
Omnibus extabunt ligni vexilla verendi
ALIGN="JUSTIFY">Robur et auxilium populo exoptata fidéli:
Certa pio generi vita, ast offensa malignis,
Rore bonos lustrans bisseni fontis ab unda:
Virgaque qua pecori dat ferrea jura magister
Carminis auspiciis qui crimina morte piabit
Servator Rex arternus Deus ipse patescit. (Fim da citação)
Destes mesmos versos faz menção Eusébio Cesariense na Vida de
Constantino Magno, e Marco Túlio, que morreu cinquenta anos antes do
nascimento de Cristo, no livro II De Divinatione. O sentido dos versos, em suma, é
a vinda de Cristo a julgar o ,Mundo, com todas as circunstâncias de grandeza,
majestade e horror que pertencem ao aparato e execução do juízo.
O mistério da encarnação está com tanta e maior clareza no Livro I dos
mesmos oráculos das Sibilas:
(Inicío da citação) Tunc ad mortales veniet, mortalibus ipsis
In terris similis, natus Patris omnipotentis
Corpore vestitus. (Fim da citação)
Não falou com palavras mais claras S. Paulo, quando disse:
(Inicío da citação) In similitudinem hominum factus et habitu
inventus ut homo. (Fim da citação)
E mais abaixo se a pregação do Baptista, quase pelas mesmas palavras de S.
Mateus:
(Inicío da citação) Verum cum quaedam vox per deserta locorum
Nuncia mortales veniet, quae clamet ad omnes
Ut rectos faciant calles, animosque refurgent
A vitiis et aqua lustrentur corpora cuncta,
Ut nunquam doincets peccent in jura, renati... (Fim da citação)
A embaixada do Anjo à Virgem com o mesmo nome de Gabriel descreve a Sibila
no Livro VIII por estas palavras:
(Inicío da citação) E caelo veniens mortales induit artus.
Ac primum cortpus Gabriel ostendit honestum
Nuncius, hinc tali affatur sermone puellam:
Accipe, Virgo, Deum premio intemerata pudico.
Sic ait: est illam caelestis gratia mo11i
Leniit afiatu: tum virginitatis amatrix
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Perpetuae magno subito correpta stupore
Atque metu trepida pressit formidine mentem. (Fim da citação)
E pelo mesmo estilo vai prosseguindo a história da encarnação, segundo
as leis da história. E porque não faltasse com todas estas circunstâncias, até o
presépio de Belém, alegria e pasmo dos pastores, aparecimento da estrela e
adoração dos Reis. O nome da Virgem, assim como tinha declarado o do Anjo,
diz no mesmo lugar:
(Inicío da citação) Et brevis egressus Mariae de Virginis alvo
Exorta est nova lux. (Fim da citação)
Finalmente, resumindo todas as obras de Cristo, assim da vida santíssima,
como da sua Paixão, até lhe pôr a coroa (como se esta fora o fim e assunto do
seu poema) conclui com estes versos:
(Inicío da citação) Ergo ad judicium veniet diciti memor hujus,
Persimilem formam portans in Virginis alvum,
Collustrans lympha manibus senioribus (?) omnes C
uncta jubens faciet morboque medebitur omni.
Placabit ventos dicto sternetque profundum Insanum,
placidis pedibus calcando, fideque,
Ad virosa genas praedebit sputa prudentes
Verberibusque sacrum tradet proscindere tergum
[Viriginem enim castam tradet mortalibus ipse.]
Perque feret tacitus cotaphos ne forte sciatur
Quis sit, cujus, mortalibus unde locutum
Venerit,horrentemque feret de vepre coronam. (Fim da citação)
Até aqui a Sibila, compreendendo admiravelmente em tão poucas regras o
nascimento virginal de Cristo, o sacramento do batismo, que instituiu e
administrou, depois que teve (como ele diz) maiores as mãos, o império que
exercitou sobre todas a criaturas, as enfermidades que curou milagrosamente, os
mares que pisou andando placidamente, sobre as ondas, a sujeição com que lhe
obedeceram os ventos, a paciência e humildade com que sofreu ser cuspido,
açoutado e afrontado com mãos sacrílegas em seu próprio rosto, e coroado por
escárnio com coroa de espinhos, dissimulando debaixo de tantas injúrias a
grandeza, poder e majestade de quem era e de quem o mandara ao Mundo.
Tanta como esta é a clareza com que falaram de Cristo as Sibilas, qual se
não acha maior nem ainda igual nos Profetas. Sendo a razão desta providência
(como bem notou Castálio) a rudeza e ignorância das cousas divinas em que
viviam os Gentios, aos quais era necessário se falasse com maior clareza do que
aos Hebreus, nascidos e criados entre os resplandores da e conhecimento de
Deus, tendo também estes ali tantos mestres que os pudessem alumiar e ensinar,
e carecendo aqueles de toda a luz e doutrina.
Se não foi (como considera o mesmo autor e o prova com Isaías) que a
escuridade dos Profetas, por permissão ou castigo, se acomodou à cegueira com
que os Judeus haviam de negar a Cristo, e a claridade das Sibilas à fé com que
os Gentios o haviam de crer.
(Inicío da citação) Nonne (são as palavras de Castálio) quae
de Christo gentibus praedicta sunt ea clariora esse oportuit,
quod Mose et cetera disciplina
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carebant, quae eis ad Christi lumen quasi proluceret: ut quod
hic durat, id oraculorum perspicuitate compensaretur? Accedit
eo quod (quemadmodum scitur ex Isaia) voluit Deus Judaeis
obscuriorem esse Christi adventum, ut in eum obscurarent
alque ita sua, pertinaciae poenas darent, quod idem de
gentibus dicere non licet. (Fim da citação)
Por meio destes oráculos das Sibilas, que andavam nas mãos de todos,
principalmente dos sábios, como se em Platão e Aristóteles, era tão vulgar e
famosa entre os Gentios a esperança daquele novo Rei e da idade dourada que
havia de trazer ao Mundo com seu felicíssimo Reino, quanto a lemos
elegantemente profetizada na IV Égloga de Virgilio, que morreu treze dias antes
do nascimento de Cristo, e cita nela os oráculos da Sibila Cumea:
Ultima Cumaei venit jam carminis aetas, para que entendêssemos que as
Sibilas foram as Musas Sicélides que exercitaram cousas maiores, e que destas
fontes bebeu aqueles levantados espíritos, e não nas de Aganipe ou Hipocrene.
Eusébio Cesareense, no já citado livro da Vida de Constantino Magno, é de
opinião que esta quarta Égloga de Virgílio é toda alegórica, e que debaixo da
metáfora de Asínio, filho de Polion, foi verdadeiramente escrita e dedicada a
Cristo, filho do Eterno Padre, encobrindo e envolvendo o vigilantíssimo Poeta a
verdade desta sua e pensamento com as figuras e metáforas daquele seu
Mecenas, para que o não condenasse a superstição romana como violador da
divindade dos deuses.
(Inicío da citação) Intelligimus autem (diz Eusobio) dicta haec
manifeste simul et obscure per allegorias prolata iis, qui
carminum horum sensum altius sub conspectum divinitatis Dei
scrutantur, innuere quomodo Poeta, ne quis eorum qui in regio
orbe denominabantur, culpare posset quod contra patrias
leges scriberet, et quae jam olim inde a majoribus de diis
credita fuiissent, rejiceret, veritatem occuluerit. (Fim da
citação)
Desta mesma opinião de Eusébio são outros muitos autores, os quais
constantemente se persuadem que o sujeito da IV Égloga virgiliana não foi outro
senão Cristo, conhecido pelos oráculos das Sibilas, e certo são o
extraordinariamente grandes as cousas que o príncipe dos poetas diz naquele
poema bucólico, que nem ainda do mesmo César se puderam dizer sem nota de
demasiada adulação e indigna de um tão eminente juízo como o de Virgílio,
talhado verdadeiramente para poeta de Cristo.
Quem tiver curiosidade de ver a alegoria de toda a Égloga aplicada e
explicada de Cristo, veja nos Antigos ao mesmo, e dos Modernos ao P.e Lacerda,
e sobre todos (lacuna no original)..... que de versos de Virgílio teceu e compôs
felizmente toda a vida de Cristo .
As razões mais fundamentais e sólidas com que se persuade e converte a
verdade deste império temporal de Cristo são as que imediatamente se tiram dos
mesmos títulos que acabamos de declarar. E assim a primeira e mais relevante
de todas se funda na união hipostática com que a humanidade sagrada de Cristo
está unida ao Divino Verbo, posto que esta mais se pode chamar natureza que
razão; outra é o merecimento infinito de Cristo, inseparável a todas as suas
acções, pelo qual lhe eram devidas todas as dignidades e grandezas humanas,
sem exclusão de poder, autoridade e soberania alguma, em consequência do
qual merecimento se ajuntou a ele a vontade eficaz divina, que foi o princípio
efectivo donde manou e se derivou a Cristo a comunicação liberalíssima, e como
investidora absoluta desta suprema e universal potestade; assim que as razões
fundamentais do império temporal de Cristo são três: o ser quem é, o seu
merecimento e a von tade divina, que é razão de si mesma.
Estas razões capitais se podem ajudar e revestir de várias congruências,
que fàcilmente se consideram muito convenientes todas ao decoro e majestade
de
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Cristo; o qual, como cabeça dos homens que são compostos de carne e espírito,
não era justo que tivesse sobre eles o domínio partido, senão inteiro, assim sobre
as cousas e acções concernentes ao espírito, como as que pertencem ao corpo;
antes, por Cristo ser verdadeiro e inteiro homem, composto não de espírito, se
não de carne, foi muito conveniente que não tivesse o Império espiritual que
pertence às almas, se não também o temporal que é próprio das corpos:
(Inicío da citação)...ut sicut ipse e corpore et spiritu
compositus erat, ita eum (Pater) et regem spirituum et
corporum etiam fecerit, ut tam late ipsius regnum et imperium
pateret quam ipsius Dei, como doutamente disse Stuniga,
comentando o capítulo IX, v. 9, do Profeta Zacarias. (Fim da
citação)
Se os Trajanos e outros imperadores e príncipes do Mundo deram seus
impérios e reinos inteiros aos estranhos que adoptaram por filhos, como havemos
de crer nem imaginar que desse Deus uma parte de seu império e domínio a
Cristo, que não em quanto Deus, se não ainda em quanto homem, é seu filho
natural e verdadeiro e unigénito? Se quis e não pôde (como em semelhante caso
argumentava Agostinho) foi fraqueza; se pôde e não quis, foi inveja, e um ou
outro pensamento fora blasfêmia contra o omnipotente amor de tão divino Pai.
A Adão deu Deus o império universal do Mundo com sujeição e otediência
a todas as criaturas dele, só por ser feito a sua imagem e semelhança:
(Inicío da citação) Faciamus hominem ad imaginem et
similitudinem nostram, ut praesit piscibus maris, et volatilibus
caeli, et bestiis terrae,. (Fim da citação)
Como negaria logo Deus este mesmo poder, não digo àquele segundo Adão
que veio restaurar as ruínas do primeiro, senão àquele que é imagem e retrato
perfeitíssimo de sua sustância: Ipse est enim imago Patris et figura substantiae
ejus? Haverá quem se atreva a dizer ou presumir que foi menor o poder de Cristo
no Mundo que o de Adão ou que teve Adão poder que faltasse a Cristo? A carne
de Adão que tomou Cristo não foi de Adão pecador, senão de Adão inocente,
porque, como advertiu o Apóstolo, tomou a carne e não contraiu o pecado. E se
Cristo o foi filho de Adão escravo, se não de Adão senhor, porque não reteria
ao menos o que não perdeu em seu Pai?
A geração de Cristo escrita por S. Mateus começa em David, e por S.
Lucas em Adão; e se, por filho de David, melhor que Salomão lhe foi devido o
ceptro de Israel, por filho de Adão, melhor que Caim e Abel, porque se lhe -de
negar o do Mundo?
Finalmente, é príncipio geral e recebido de todos os teólogos, que se deve
conceber e admitir na soberana pessoa de Cristo todos aqueles atributos de
poder, grandeza e majestade, que sem implicação nem indecência se podem
considerar nela, porque todos lhe são infinitamente devidos; e tão fora está deste
perigo o império e domínio temporal que admitimos em Cristo, que antes da falta
dele se podem arguir conhecidos inconvenientes, e ainda alguma consequência
indigna e de menos decoro. Porque o império espiritual de Cristo, por supremo e
universal que seja, tem poder e jurdição indirecta sobre as cousas e acções
temporais, enquanto estas se ordenam ou subordinam ao fim e conservação das
espirituais: e no caso ou suposição em que Cristo sòmente fosse Rei espiritual,
segue-se (como doutamente infere o Padre Soares) que, se Cristo quisesse
mandar a um homem ou a um anjo uma acção meramente temporal alheia (ainda
que fosse para obrar um milagre), que o não poderia fazer livre e abs olutamente
a seu arbítrio e sem licença do dono dela (se còmodamente o pudesse fazer de
outra sorte): Indignum autem videtur (conclui o grande Doutor) haec et similia de
Christi potestate sentire. Sendo logo este sentimento indigno do poder e
majestade de Cristo e da soberania de sua pessoa, necessariamente havemos de
dizer e confessar, em boa teologia, que não é sòmente espiritual o império e
domínio que Cristo tem sobre o Mundo, se não
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também temporal, e que espiritual e temporalmente lhe são todos os homens e
todas as cousas sujeitas.
E quanto ao reparo da pobreza e desprezo das cousas temporais que
Cristo veio ensinar ao Mundo, nós nos contentaremos com que os autores deste
escrúpulo, por santos e espirituais que sejam, se contentem com o que se
contentou este Monarca temporal do Mundo: imitem a pobreza de Cristo, pobre
no nascimento, pobre na vida, pobre na morte, e pobre sobretudo na eleição de
pais pobres, e não queiram mais pobreza, nem mais exemplo em Cristo. Muitos
que querem parecer pobres; alguns que o querem ser; mas quem queira ser e
parecer filho de pobres: Quis est hic et laudabimus eum ? Cristo e quem tem
muito de Cristo.
O domínio universal que Cristo tinha do Mundo era o que mais subiu de
preço os quilates de sua pobreza. Não ter uso das cousas do Mundo quem não
tem ou teve domínio delas, virtude pode ser, mas virtude que parece fortuna ou
necessidade; porém senhor absoluto de tudo quanto e pode haver no Mundo,
e ter menos uso do mesmo Mundo do que os bichinhos da terra, e poder dizer
com verdade: Vulpes foveas habent et volucres caeli nidos; filius autem hominis
non habet ubi caput reclinet, oh! que pasmo, oh! que exemplo, oh! que confusão
para os homens, ainda os mais desprezadores do Mundo!
Mas replicam a esta resposta os autores da contrária opinião, e dizem que
a pobreza evangélica, de que Cristo professou ser mestre, não consiste na
mortificação ou temperança do uso das cousas temporais, se não principalmente
na renunciação do domínio delas; logo, no desprezo e abdicação deste domínio é
que devia Cristo dar-nos o exemplo da perfeita pobreza. E pois é certo que foi
Cristo consumadíssimo exemplar de todas as virtudes, e muito particularmente
desta , segue-se que não não te ve o uso das cousas temporais, se não que
também careceu do domínio de todas.
Primeiramente digo que, para Cristo ser perfeitíssimo mestre e exemplar de
todas as virtudes, não era necessário exercitar todos os actos particulares delas,
ainda que os tivesse ensinado. Não era menos mestre nem menos exemplar
Cristo da paciência do que o foi da pobreza, e sendo uma das mais altas
proposições de sua doutrina na matéria do sofrimento, cum te percusserint in una
maxilla, praebe illi et alleram sabemos contudo que, quando deram a Cristo a
bofetada em presença do Pontífice Caifás, não ofereceu o Senhor a outra face,
antes acudiu à calunia de que falsa e sacrilegamente o arguiam.
Mas deixada esta estrada geral, porque não é nosso intento divertir o
argumento, senão desfazê-lo, digo outra vez que na pobreza de Cristo, quanto a
renunciação do domínio, havia outra razão mais forçosa e necessária, que era ser
este acto incompatível com a natureza e essência do mesmo Cristo. Porque
aquele domínio supremo e uníversal de todas as cousas fundava-se
imediatamente, como dissemos, na união hipostática, e era não propriedade
inseparável, senão parte intrínseca dela; e assim como Cristo não podia renunciar
nem abdicar de si a própria natureza, assim (diz o Padre Vasquez) não podia
renunciar nem demitir de si o direito soberano domínio. O que podia fazer
Cristo era privar-se do uso dele, e assim o fez tão perfeita e perfeitissimamente
como sabemos. Quanto mais que ainda no caso em que fora possível na pessoa
de Cristo a renunciação do domínio temporal de todas as cousas, porventura que
era mais conveniente ao mesmo exemplo do Mundo conservar o domínio sem o
uso, que renunciar o uso e mais o domínio; porque Cristo, como mestre e
exemplar da perfeição evangélica, não devia dar exemplo aos religiosos que
professam renunciar o domínio dos bens temporais senão também aos prelados e
bispos, e ao supremo bispo e supremo
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prelado, cujo estado, sendo de maior perfeição, conserva o domínio e
administração dos bens e periga ou pode perigar na imoderação ou excesso
do uso deles. Foi logo convenientíssimo que em Cristo se ajuntasse o sumo
domínio e o sumo desprezo e abstinência das cousas do Mundo, para que no
mesmo exemplar aprendessem os religiosos a mortificação do uso e os prelados
a moderação do domínio.
Finalmente, para que ponhamos o selo à confirmação desta nossa
sentença e acabemos de desfazer as razões ou admirações, como dizíamos da
parte contrária, provemos demonstrativamente a causa pelos efeitos, a potência
pelos atos, a jurdição pelo exercício, e o direito (do modo que pode ser) pela
posse. Temos neste ponto contra nós não os inimigos, senão também os
amigos. Resolvem os defensores da opinião contrária, e também muitos da
nossa, que Cristo em toda a sua vida, não teve exercício algum do império
temporal, nem em quanto Rei nem em quanto Senhor, porque nem fez acto que
fosse próprio da dignidade real, nem se serviu de cousa alguma do Mundo, como
quem teve o domínio e senhorio dele. E daqui inferem, não todos mas os
que impugnam a nossa sentença, que vinha a ser totalmente ocioso este império
temporal que consideramos em Cristo, e por conseguinte nulo, conforme aquele
princípio vulgar da filosofia: Frustra est potentia quae non reducitur ad actum
Mas começando pela forma desta consequência, ou colhe
demasiadamente ou nada. Porque tão boa consequencia é esta: Cristo não teve
exercício de rei, logo não teve poder real; como esta: Cristo não teve exercício de
juiz, logo não teve poder judicial. E nesta segunda consequência, sendo de a
premissa, é contra a a conclusão. A premissa é de Fé, porque lemos no
capítulo XII, de S. Lucas, que, pedindo dois irmãos a Cristo que julgasse certa
dúvida que tinham entre si, o Senhor lhes respondeu:
(Inicío da citação) Quis me constituit judicem super vos? E a
conclusão é contra a Fé, porque neiga contraditòriamente o
texto de S. Paulo: Pater non judicat quemquam, sed omne
judicium dedit filio, quia filius hominis est. (Fim da citação)
Antes daqui se forma novo argumento em confirmação da verdade da nossa
sentença, porque a potestade judiciária em Cristo foi consequência da dignidade
real, como expressamente ensina S. Tomás na Questão LIX, Art. IV, ad. I:
(Inicío da citação) Potestas judicis secuta est in Christo
regiam dignitatem. (Fim da citação)
E a razão desta ordem natural é, posto que o Santo Doutor a não exprima,
porque o ofício de julgar é parte da dignidade de Rei, conforme o texto de David:
(Inicío da citação) Et nunc, Reges, intelligite: erudimini qui
judicatis terram. (Fim da citação)
Por isso o mesmo Cristo, descrevendo o supremo e último ato de juízo em que
de sentenciar o Mundo, se chama nomeadamente Rei: Tunc dicet Rex his qui a
dexteris ejus erunt etc. E se é certo e de Fé que Cristo tem esta parte da
jurisdição e dignidade real, porque havemos de ser tão estreitos de coração que
lha não concedamos toda?
Os que admitem ou veneram connosco em Cristo o título e dominio de rei e
concedem contudo que não teve exercício dele, dizem muito douta e
consequentemente que, ainda que a dignidade e jurisdição real em Cristo não
tivesse ato ou exercício algum em sua vida, nem o haja de ter em outro tempo,
nem por isso se deve julgar aquele poder por baldado e ocioso, porque serve,
como falam os filósofos, de ornar e mais aperfeiçoar o sujeito. Bem assim como
na humanidade do mesmo Cristo é certo que houve alguma potência, que nunca
teve nem havia de ter ato (qual é a potência que há nos indivíduos para a
conservação da espécie); e contudo ninguém a nega nem pode negar em Cristo,
porque é perfeição natural da Humanidade.
Persistindo na mesma suposição, se pode também dizer, não indouta nem
indiscretamente, que, ainda que o domínio temporal de Cristo não teve aqueles
atos
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ou exercício positivo que costuma ter nos reis e príncipes da terra, teve porém um
ato excelentíssimo e um exercício contínuo, nunca visto até então no Mundo, a
que podemos chamar negativo, que foi o não querer usar Cristo do mesmo
domínio. E ter o domínio para poder e não querer usar dele (que é um ato heróico
de humanidade e modéstia, o qual necessariamente supõe o mesmo domínio)
não é tê-lo ocioso, se não mui gloriosamente exercitado, de maneira que neste
sentido (que nem é vulgar nem violento) podemos dizer que não careceu Cristo
do uso do domínio temporal que nele consideramos, e que o uso que teve
daquele domínio foi a privação do mesmo uso, ou não querer usar dele. E se não,
perguntemos a S. Ambrósio para que quis e mandou Cristo aos Apóstolos que
comprassem espadas, ainda que fosse a preço das mesmas túnicas com que
andavam cobertos, se lhes havia de mandar que as deixassem estar na bainha? e
responde o grande Doutor que foi para mostrar Cristo que se podia defender e
vingar de seus inimigos, mas não queria. Para este uso ou desuso quis Cristo a
procuração das espadas, porque muitas vezes o mais nobre e o mais generoso
uso do poder é não querer usar dele. E se aquelas espadas para este uso não
foram ociosas, porque o seria o domínio de Cristo, ainda que não tivesse outro
uso mais que não querer o poderosíssimo Senhor usá-lo, para maior exemplo e
doutrina nossa? Onde mais bem empregado e aplicado o domínio, que para
poder dizer, depois do maior ato de humildade: Si ergo ego dominus et magister?
Desta maneira respondem (e podem responder os que seguem que Cristo
não teve exercício algum do império e domínio temporal; porém nós, ponderando
devagar a história evangélica, temos por certo o contrário; pelo que respondemos
negando a suposição, e por última confirmação da nossa opinião mostraremos,
por atos próprios de jurisdição e domínio, como foi Cristo Rei e Senhor temporal
do Mundo, não em ato primo (como diz a frase dos Teólogos) senão em ato
segundo; e não só quanto a jurisdição e domínio, senão quanto ao uso e exercício
dela; não porque pública e continuadamente o professasse Cristo, como fazem os
reis da Terra, mas porque exercitou alguns atos particulares de império e domínio,
que eram próprios do legítimo Rei e verdadeiro Senhor do Mundo, como se
claramente em muitos lugares e exemplos do Evangelho.
O primeiro seja mandar Cristo, tanto que entrou neste Mundo, chamar os
Reis do Oriente pela estrela, para que o viessem reconhecer e adorar por Rei.
como eles mesmos disseram:
(Inicío da citação) Ubi est qui natus est Rex Judaeorum?
Vidimus enim stellam ejus in Oriente et venimus adorare eum.
(Fim da citação)
Item em receber os tributos que Ihe ofereceram os mesmos Reis em
reconhecimento da soberania suprema de sua majestade, não só em quanto
Deus, se não em quanto Rei. Nesta conformidade entendem todos os Padres o
mistério das três espécies de ouro, incenso e mirra, que os Reis ofereceram: o
incenso como a Deus, a mirra como a homem, e o ouro como a rei, e assim
cantou Arato, poeta cristão da primeira Igreja, naquele verso que tão bem pareceu
a S. Jerônimo:
(Inicío da citação) Aurum, thus, myrrham regique
hominique Deoque. (Fim da citação)
E a Igreja, no Hino da Epifania:
(Inicío da citação)Thus, myrrham etaurum regium.
(Fim da citação)
E muito antes David, no Salmo que começa:
(Inicío da citação) Deus, judicium tuum Regi da, et
justitiam tuam filio Regis. (Fim da citação)
Este Salmo se entende literalmente do Reino de Cristo, conforme a explicação de
S. Jerónimo, S. Agostinho, S. Ambrósio, e o comum consenso de todos os Padres
e da mesma Igreja; e não do Reino de Cristo absolutamente, se não do Reino
e Império temporal, como larga e eruditamente prova Alonço de Mendoça, na sua
Relatio Theologica de universali Christi Regno. E
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em comprovação deste Reino de Cristo, alega David profeticamente no mesmo
Salmo a adoração e tributos dos Reis do Oriente: Reges Tharsis et insulae
numera offerent, Reges Arabum et Saba dona adducent, et adorabunt eum omnes
Regeç terrae, omnes gentes servient ei.
Finalmente, a entrada dos mesmos reis em Jerusalém, perguntando
publicamente:
(Inicío da citação) Ubi est qui natus est Rex? (Fim da
citação)
que outra cousa foi, se não um pregão público e um Real! Real! por Cristo Rei do
Mundo, com que o mesmo Rei se mandou apregoar na praça mais universal de
todo ele, que era Jerusalém, e no meio do mesmo Mundo, que era o lugar onde
aquela cidade estava situada ?
A mesma publicação fizeram os Anjos nos montes e campos de Judeia,
quando anunciaram aos pastores:
(Inicío da citação) Quia natus est vobis hodie salvator qui est
Christus dominus, in civitate David; respondendo•toda a
milícia do Céu: Gloria in altissimis Deo ed in terra paz
huminibus! (Fim da citação)
Nas quais palavras todas não apregoaram o nascimento e chegada ao Mundo
do novo Rei, mas declararam também por to das as circunstancias de salvador,
de ungido por Deus, de descendente de David, e da paz que trazia consigo, ser
ele o Rei prometido aos Patriarcas e anunciado dos Profetas, que havia de salvar
e dominar o Mundo; da qual publicação foram os mesmos pastores os terceiros
pregoeiros, que divulgaram por toda a parte o que tinham visto, como se colhe
claramente do texto de S. Lucas:
(Inicío da citação) Et omnes qui audierunt mirati sunt, et de
his quae dicta erant a pastoribus ad ipsos. (Fim da citação)
Que ato pois mais próprio e positivo de rei, que mandar-se publicar por tal, nas
cortes e aldeias, nas cidades e nos campos, aos grandes e aos pequenos, com
quatro pregões tão públicos e tão notáveis, de estrelas, de anjos, de reis, de
pastores, e receber adorações e tributos dos mesmos reis, e ultimamente
desobrigá-los da palavra que tinham dado a El-Rei Herodes, como senhor
supremo de todos, e mandá-los como súbditos e novos embaixadores seus,
assinalando-lhes o caminho por onde haviam de ir?
Mas passemos do nascimento de Cristo aos dias mais chegados à sua
morte, para que vejamos como, entrando e saindo do Mundo, se mostrou e
publicou Rei e senhor de todo ele
CAPÍTULO VII
Conclui-se que o Reino de Cristo é espiritual e temporal juntamente
Recolhendo tudo o que tão largamente temos disputado (que foi necessário
ser tão largamente) e reduzindo a concórdia quanto pode ser as opiniões de todos
os Doutores, posto que alguns pareçam entre si contrários, diremos por última
conclusão que o Império de Cristo é juntamente espiritual e temporal, e que,
segundo estas duas jurisdições, ambas supremas, se compõem; a coroa de
Cristo, Sacerdote Supremo, e outra coroa de universal Senhor e Legislador in
temporalibus, segundo a qual se chama propriamente Supremo Rei.
Este é o Reino universal que Daniel veio dar ao Filho do Homem (que é
Cristo), e este o Reino que Nabucodonosor também tinha visto encher o Mundo,
posto que não viu nem lhe foi mostrado a quem se havia de dar. Este é o que viu
mais distintamente que todos Zacarias na sua terceira visão; porque
Nabucodonosor viu somente o Reino e sua grandeza, Daniel viu o Reino e a
pessoa que o havia de dominar, e Zacarias viu o Reino e a pessoa, e o número e
distinção das coroas.
Torno a repetir o texto e suponho a história, pois fica contada no I Livro.
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Para maior inteligência desta matéria havemos de supor que, deste tempo
da Lei da Natureza, andou sempre o morgado temporal unido com o sacerdócio, e
um e outro vinculado aos primogénitos. Estas eram aquelas bênçãos tão
celebradas e tão pleiteadas que os Patriarcas davam a seus filhos, como foi a que
Abraão deu a seu primogénito Isaac, e a que Isaac quis também dar a seu
primogénito Esaú, e por indústria de Rabeca foi dada a Jacob. Conforme a este
direito de sucessão, havia de dar também Jacob a seu primogénito Ruben a
mesma bênção, mas, em castigo da irreverência que tinha cometido contra o
tálamo de seu pai, foi privado dela, como lhe disse o mesmo Jacob:
(Inicío da citação) Ruben, primogenitus meus, tu fortitudo
mea et principum doloris mei, prior in donis major in imperio,
effusus es sicut aqua; non crescas, quia ascendisti cubile
patris tui et maculasti stratum ejus. (Fim da citação)
Desde este tempo se dividiram estas duas dignidades que haviam de estar
juntas no morgado ou maioria de um império (major in imperio) e o reino e o
sacerdócio, que havia de andar encabeçado no primogénito de Ruben, se repartiu
em dois filhos do mesmo Jacob, que foram Judá e Levi, ficando em Judá a
benção do reino, e em Levi a do sacerdócio, como depois se cumpriu, porque na
instituição do Tabernáculo, que precedeu ao Templo, foi ungido por sumo
sacerdote Arão, que era do tribo de Levi, e na instituição do reino, depois de o
perder Saul, foi ungido por rei de Israel David, que era do tribo de Judá.
Nestas duas descendências de Arão do tribo de Levi e de David do tribo de
Judá, se conservou sempre o reino e sacerdócio, até que a tiara e a coroa, ou
estas duas coroas, se uniram outra vez em Cristo, Supremo Sacerdote e
Supremo Rei, e de ambos se compõe o império (assim o natural como o
figurativo) que Ruben tinha perdido, prior in donis, rnajor in imperio. Daqui se
entende maravilhosamente o mistério da ascendência e primogenitores de Cristo,
os quais, como consta do I capítulo de S. Mateus e do III de S. Lucas, foram reis e
sacerdotes, unindo-se por verdadeira geração no sangue santíssimo de Cristo e
sua mãe o tribo real de Judá e o sacerdotal de Levi, como gravemente notou e
expressamente disse S. Agostinho no livro II de Consensu Evangelisarum,
capítulo II.
(Inicío da citação) Cum autem evidenter dicat Apostolus
Paulus: ex semine David secundum carnem Christum, ipsam
quoque Mariam de stirpe David a liquam consanguinitatem
duxisse dubitare utique non debemus. Cujus feminae quoniam
nec sacerdotale genus tacotur, insinuante Luca, quod cognata
ejus esset Elisabeth, quam dicit de filiabus Aaron. Firmissime
tenendum est carnem Christi ex utroque genere propagatam,
et regum et sacerdotum, in quibus personis apud illum
populum Hebraeorum etiam mystica unctio figurabutur... (Fim
da citação)
De manera que ordenou a Providência Divina que na generação e
ascendência de Cristo se tecesse o tribo sacerdotal de Levi com o tribo real de
Judá, e que a tela de que se havia de vestir o Verbo, quando se desposou com a
natureza humana, fosse lavada de coroas e de tiaras, para que visse o Mundo
que, ainda a título de generação natural, era ele o herdeiro legítimo do reino e do
sacerdócio, como direito descendente daqueles sacerdotes e daqueles reis que
eram feitos por Deus; o qual mistério (para maior propriedade e majestade
dele) se observou até nos escritores da mesma genealogia de Cristo, porque dos
quatro animais do carro de Ezequiel que significam os quatro evangelistas, a S.
Mateus, que escreveu a geração real, pertence o homem, que é o rei dos animais;
e a S. Lucas, que escreveu a geracão sacerdotal, pertence o boi, que é o animal
do sacrifício, como, depois de S. Jerónimo e S. Gregório Papa, notam comumente
todos os Doutores.
O nome de Cristo e de Messias, com que o mesmo Senhor foi chamado e
conhecido, antes e depois de vir ao Mundo, foram duas firmas ou assinados
públicos
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de um e outro império sacerdotal e real, temporal e espiritual, entre si unidos.
Porque Messias, que é nome hebreu, e Cristo, que é nome grego, ambos têm a
mesma significação, como diz S. João no capítulo I; e referindo as palavras de S.
André a S. Pedro:
(Inicío da citação) Invenimus Messiam (quod est
interpretatum Christus) (Fim da citação)
e esta foi uma das erudições em que a Samaritana se mostrou tão letrada:
(Inicío da citação) Scio quia Messias venit, qui dicitur
Christus. (Fim da citação)
Um e outro nome, assim o de Cristo como o de Messias, quer dizer ungido, e
chama-se Cristo ungido, porque foi ungido por Rei e Sacerdote Supremo.
Três ofícios achamos na Escritura Sagrada, que se davam com a cerimônia
da unção: o de rei, como ungido, e chama-se Cristo ungido, porque foi ungido
Arão, e o de Profeta, como foi ungido Eliseu, e com todas estas unções foi ungido
Cristo. Da unção de profeta já dissemos no capítulo VII do I Livro. A de Rei e a de
Sacerdote Supremo, que eram as duas maiores, são aquelas por que Cristo
principalmente se chama ungido, não porque fosse ungido com aquela cerimônia
exterior com que os reis e sacerdotes eram ungidos por mãos dos homens, senão
pela unção interior, com que o mesmo Deus o ungiu na união da divindade com a
humanidade, como acima dizíamos.
E agora poremos aqui as autoridades dos Padres, que para este lugar
reservamos: S. Agostinho no livro e capítulo pouco antes citado:
(Inicío da citação) Firmissime tenendum est carnem Christi
ex utroque genere propagatam et regum et sacerdotum, in
quibus personis illum populum Hebraeorum etiam mystica
unctio figurabutur, id est. chrisma, und e Christi nomen elucet
tanto ante etiam illa evidentissima significatione praenuntiatum
(Fim da citação)
Resolve-se quando começou este Império de Cristo e propõe-se acerca
dele uma grande dificuldade
PLANO DA HISTÓRIA DO FUTURO
História do futuro; Esperança de Portugal, Quinto Império do Mundo (Cópia do
Ms. da Biblioteca Nacional Maquinações de Antonio Vieira jesuita, tomo II p. 89)
LIVRO PRIMEIRO
Nome, verdade e fundamento deste Império
QUESTÃO 1.a
Se na Sagrada Escritura está revelado algum Império, que se deva chamar o V.?
Resp. afirm.
QUESTÃO 2.a
Se o dito Império é diverso e totalmente distinto do IV Império do lIundo, que foi o
Romano? Resp. afirm.
QUESTÃO 3.a
Se o Império Romano há-de durar até a vinda do Anticristo? Resp. afirm.
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QUESTÃO 4.a
Se no Capitulo I de Daniel é significado o Império do Anticristo na figura do
chamado_ Cornuparvulum? ou o do Anticristo, ou o do Turco? Resp. afirm
QUESTÃO 5.a
Se na suposição que o Império Romano -de durar até o Anticristo, pode haver
no Mundo outro Império que se chame o Quinto? Resp. afirm.
LIVRO SEGUNDO
Definição do V Império, e declaração dele
QUESTÃO 1.a
Que Império seja este, a que chamamos o Quinto? Resp.: Até o de Cristo.
QUESTÃO 2.a
Se o Império de Cristo, que dizemos ser o Quinto, é o Império do Céu ou da
Terra? Resp. que da Terra.
QUESTÃO 3.a
Se o Império de Cristo na Terra é espiritual ou temporal? Resp. que é espiritual e
temporal juntamente.
QUESTÃO 4.a
Se no dito Império espiritual e temporal de Cristo se distingue o domínio, posse,
exercício? Resp. afirm.
QUESTÃO 5.a
Qual seja o dito domínio do Império de Cristo, e quando começou? Resp., que é,
que tem sobre todo o Mundo e sobre todos os homens, e começou desde o
primeiro instante da sua encarnação.
QUESTÃO 6.a
Em que consiste a posse do dito Império? Resp. que consiste em ser conhecido
por fé e obedecido.
QUESTÃO 7.a
Quando começou, e como se continuou a dita posse? Resp. que começou desde
os primeiros que creram em Cristo , e vai continuando em todos os que têm a
mesma fé.
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QUESTÃO 8.a
Se teve Cristo exercício do dito Império em quanto espiritual? Resp. afirm.
QUESTÃO 9.a
Se teve Cristo exercício do dito império em quanto temporal? Resp. problem.
QUESTÃO 10.a
Se tem Cristo hoje exercício do dito império temporal e espiritual, e qual seja?
Resp. que tem o exercício, imediato não, mas o mediato.
QUESTÃO 11.a
Por que pessoa ou pessoas tem Cristo o exercício mediato do império espiritual?
Resp. que pelo Sumo Pontífice e mais ministros da Igreja.
QUESTÃO 12.a
Por que pessoa ou pessoas tem Cristo o exercício mediato do império temporal?
Resp. que pelos príncipes temporais cristãos.
QUESTÃO 13.a
Se há-de Cristo ainda ter alguma hora o exercício do dito império, assim espiritual
como temporal, por sua própria pessoa , ou se é possível? Resp. que é possível,
mas que nunca há-de ter o dito exercício pessoal.
LIVRO TERCEIRO
Grandeza e felicidades do dito Império
QUESTÃO 1.a
Se este Reino e Império de Cristo há-de continuar sempre no estado presente, ou
-de ter outro e mais perfeito? Resp. que -de ter outro estado mais perfeito,
completo e consumado.
QUESTÃO 2.a
Como se prova este estado mais perfeito e consumado do Império de Cristo?
Resp. que pelas Escrituras, por autoridade e por razão.
QUESTÃO 3.a
Porque a opinião do dito estado não é comum de todos os Padres e Doutores?
Resp. que por muitos fundamentos.
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QUESTÃO 4.a
Quanta haja de ser a grandeza do Império de Cristo no dito estado? Resp. que
universal, sobre todas as gentes e sobre todos os reinos.
QUESTÃO 5.a
Se a dita grandeza há-de ser simultânea e permanente ou sucessiva? Resp. que
simultânea e permanente.
QUESTÃO 6.a
Se hão-de ser todos cristãos no dito estado? Resp. afirm.
QUESTÃO 7.a
Se hão-de ser todos pela maior parte justos no dito estado? Resp. afirm.
QUESTÃO 8.a
Se há-de haver no dito estado paz universal? E em todo o Mundo? Resp. afirm.
LIVRO QUARTO
Causas, meios e instrumentos com que se -de conseguir o estado consumado
do dito Império
QUESTÃO 1.a
Se o primeiro meio da consumação do dito estado seja a conversão universal de
todos os homens à de Cristo e a extirpação de todas as heresias do Mundo?
Resp. afirm.
QUESTÃO 2.a
Como se prova em especial a conversão de todos os gentios e a extirpação da
idolatria? Resp. que pelas Escrituras e Doutores.
QUESTÃO 3.a
Como se prova em especial a conversão, a extinção do Turco, a extirpação da
seita de Mafona? Resp. que pelas Escrituras e Doutores.
QUESTÃO 4.a
Como se prova em especial a conversão de todos os hereges, e a extirpação de
todas as heresias? Resp. que pelas Escrituras e Doutores.
QUESTÃO 5.a
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Como se prova em especial a conversão dos Judeus e a extirpação do
Judaísmo? Resp. que pelas Escrituras e Doutores.
QUESTÃO 6.a
Se nesta conversão dos Judeus hão-de entrar também os Dez Tribos perdidos?
Resp. afirm.
QUESTÃO 7.a
Se convertidos universalmente os Judeus hão-de ser restituídos à sua Pátria?
Resp. afirm.
QUESTÃO 8.a
Se podem os Judeus 1icitamente esperar esta restituição mediante a Fé de
Cristo? Resp. afirm.
QUESTÃO 9.a
Se é conveniente ao bem da Igreja que a opinião da dita esperança se pratique?
Resp. afirm.
QUESTÃO 10.a
Se por meio da dita conversão universal se -de consumar a união dos dois
povos, gentílico e o judaico? Resp. afirm.
QUESTÃO 11.a
Se então se cumprirá a profecia do textoet erit unum ovile et pastor?Resp.
afirm.
QUESTÃO 12.a
Se a causa principal eficiente da dita conversão universal será o Eterno Padre?
Resp. afirm.
QUESTÃO 13.a
Se concorrerá para a dita conversão o Espírito Santo com especial e nova unção
da divina graça? Resp. afirm.
QUESTÃO 14.a
Que parte terá nesta obra a autoridade e intercessão de Cristo e da Virgem
Santíssima? Resp. que muito grande.
Página 67
QUESTÃO 15.a
Se o instrumento principal humano da dita conversão será o sumo pontífice santo
e muitos pregadores evangélicos? Resp. afirm.
QUESTÃO 16.a
Se concorrerá para a dita conversão algum príncipe temporal, com a sua
autoridade, o seu poder e as suas armas? Resp. afirm.
QUESTÃO 17.a
Se este príncipe temporal será imperador e monarca universal do Mundo? Resp.
afirm.
QUESTÃO 18.a
Se o dito imperador universal se poderá chamar Vigário de Cristo no temporal?
Resp. afirm.
LIVRO QUINTO
Tempo, duração e ordem do dito Império
QUESTÃO 1.a
Se o estado consumado do Quinto Império há-de ser antes ou depois do
Anticristo? Resp. que antes.
QUESTÃO 2.a
Qual dos dois povos se há-de converter primeiro universalmente, para a
consumação do dito Império, se o gentílico, se o judaico? Resp. que o gentílico.
QUESTÃO 3.a
Quanta seja a duração do dito Império, depois de consumado? Resp. que até o
fim do Mundo.
QUESTÃO 4.a
Quando há-de começar a dita consumação do Império de Cristo? Resp. que na
extinção do Império turco.
QUESTÃO 5.a
Se do tempo presente até o da vinda do Anticristo pode e há-de correr um grande
número de séculos? Resp. afirm.
Página 68
LIVRO SEXTO
Terra em que se há-de fundar o dito Império em quanto temporal, e qual há-de ser
a cabeça dele
QUESTÃO 1.a
Se o dito Império temporal há-de ser na Europa ou em alguma das outras quatro
partes do Mundo? Resp. que há-de ser na Europa.
QUESTÃO 2.a
Em que província da Europa se -de fundar o dito Império temporal de Cristo ?
Resp. que em Espanha.
QUESTÃO 3.a
Em que reino de Espanha se há-de fundar o dito Império? Resp. que em Lisboa.
LIVRO SÉTIMO
Pessoa que será o primeiro Imperador instrumento temporal do dito Império
QUESTÃO 1.a
Se a dita pessoa que seja imperador será o imperador de Alemanha? Resp.
negativ.
QUESTÃO 2.a
Se a dita pessoa há-de ser El-Rei Cristianíssimo de França? Resp. negativ.
QUESTÃO 3.a
Se a dita pessoa há-de ser El-Rei Católico de Espanha? Resp. negativ.
QUESTÃO 4.a
Se a dita pessoa há-de ser o Sereníssimo Rei de Portugal? Resp. afirm .
QUESTÃO 5.a
Se o Rei de Portugal há-de ser El-Rei D. Sebastião? Resp. negativ.
QUESTÃO 6.a
Se o dito Rei de Portugal há-de ser El-Rei D. João IV? Resp. problem.
QUESTÃO 7.a
Se o dito Rei de Portugal -de ser El-Rei D. Afonso ou o Infante D. Pedro?
Responde-se:
Página 69
Vejo subir um Infante
No alto de todo o lenho.
Bandarra
Estes são os livros e questões de que consta o livro intitulado Clavis Prophetarum
Apêndice
CLAVIS PROPHETARUM
Tradução feita por Francisco Sabino Alvares da Rocha Vieira, estudante baiano,
do Resumo que dela escreveu o P.e Carlos António Casnedi, S. J.
NOTA DO EDITOR
O ms. do Fundo Geral da Biblioteca Nacional n.° I74I, de que foi copiada a
presente tradução, tem o seguinte título: Resumo do Clavis Prophetarum feito
pelo Padre Carlos António Casnedi, da Companhia de Jesus. de ordem do
Eminentíssimo Cardeal da Cunha, Inquisidor Geral dos Reinos de Portugal. Autor
o incomparável Padre António Vieira, da Companhia de Jesus.
Tradu-lo do latim em português Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira,
estudante baiense, que dedica o seu trabalho a D. Marcos de Noronha e Brito,
Conde dos Arcos, etc., etc., que era então governador no Brasil.
No Prólogo, o tradutor afirma que as proposições que se contêm na obra
foram censuradas pelo Tribunal da Inquisição de Coimbra, «quando a emulação e
rivalidade levou aos seus cárceres ao nosso Autor, o incomparável (e até o
presente não imitado) Padre António Vieira, pelos anos de I666 e I667».
Lembra a defesa de Vieira, no papel que ofereceu ao Santo Ofício, e em
que mostrou que esta opinião não era sua e sim de gravíssimos autores, dos
quais citou pelos seus nomes trinta, em cujo número se compreendem muitos
santos canonizados e todos sábios.
A Alexandre VII, que tinha aprovado as censuras. sucede Clemente X, que,
informado do que se tinha praticado com o Padre Vieira na Inquisição de
Coimbra, expediu logo o Breve Dilecte Fili, que o isenta de qualquer jurisdição
que não seja a da Sé Apostólica. E acrescenta:
(Inicío da citação)«...por sua morte se lhe acharam 33
cadernos que ele tinha escrito« De Regno Christi in terris
consummato», (Fim da citação)
e, por outro nome, «Clavis Prophetarum» Correu a noticia, e por ordem régia
foram remetidos todos os seus manuscritos para Lisboa e entregues ao
Eminentíssimo Cardeal da Cunha, Inquisidor-Geral dos Reinos de Portugal, o qual
escolheu ao Padre Carlos António Casnedi, bem conhecido em Itália, Espanha e
Portugal, e por seus escritos em todo o Mundo, para o informar da qualidade e
merecimento da obra, e a informação é a que se segue, resumindo nela os pontos
da mesma obra, declarando o seu merecimento e até algumas suas proposições.
Foi mandada a dita obra a Roma, onde foi examinada pelo Padre Mestre Fr.
Jacinto de Santa Romana, doutor na sagrada Teologia, examinador sinodal da
Nunciatura de Espanha, da Ordem dos Pregadores, pelos P.P. M.M. Frei Mário
Diana e Fr. Pedro Platamone, da mesma Ordem, e pelo P. André Semiri, jesuíta,
que Ihe fizeram grandes elogios e declararam que se podia imprimir, o que
aconteceu no mês de Agosto de I7I5, e por
Página 70
extenso se podem ver as censuras dos ditos Padres, no «Livro da vida do nosso
Vieira», dito Livro V, p. 628 até p. 631 nos números 212, 213, 215 e 216»
Lembra o autor que nas censuras a esta última obra foi unanime o elogio, e
cita do Padre Mestre D. Jo Barbosa, cronista da Casa de Bragança,
examinador das Três Ordens Militares e sinodal do Patriarcado, académico-
censor da Academia Real, o seguinte juízo crítico:
(Inicío da citação) «Maior dano experimentarão os sábios em
ficar imperfeita a grande obra «CIavis Prophaetarum», (Fim
da citação)
porque é certo que ninguém terá o atrevimento de a pretender concluir, porque
para esse fim é necessário outro António Vieira, e Deus sabe quando lhe dará
semelhante, para se fazer senhor da grande e imensa ideia daquela obra, que,
para ser admirável, basta que fosse concebida na vastíssima compreensão, nos
dilatados estudos e na profundíssima erudição sagrada daquele homem
verdadeiramente incomparável»
E: conclui o tradutor com esta nota, que faz do seu entusiasmo de
panegirista um caso vulgar na época: tendo solicitado havia perto de três anos a
obra em Portugal, soube que a possuía o convento dos Capuchos. Pediu uma
cópia, mas «tem sido tal o concurso de pretendentes ao mesmo fim, e a copiar
pedaços dela, que, tendo-se principiado a nossa cópia em Abril de 1813, ainda
até o presente Março de 1818 se não pôde concluir...»
Segue-se a este Prólogo do tradutor o Prefácio do P.e Casnedi ao seu
resumo. Dele extraímos, por mais significativo, o seguinte: Vieira, pela memória
que tudo fielmente conservava, pela eficácia persuasiva com que alegava os
textos, pela óptima maneira como sabia exemplificar, era um Herói Superior a
todo o louvor e aplauso humano. Aquilo que os outros Heróis de primeira
grandeza desprezavam como estéril e inútil, e o que não entenderam como
envolto nas trevas da obscuridade , tudo o Padre Vieira tem mostrado abundante
de mistérios, de modo que parecem sempre novas as suas opiniões e que diz
cousas que não vem nas Sagradas Páginas, não sendo contudo senão cousas
antigas, ocultas no mesmo Texto Sagrado e de que os outros não fizeram caso ou
não entenderam [...]. Por esta razão é que o incomparável Autor, assim como se
deveria pôr inferior a todos os intérpretes, se dissesse cousas que senão
contivessem no Sagrado Texto, assim se deveria elevar acima de todos, por ter
descoberto com a perspicácia do seu engenho e ter publicado cousas que
estavam ocultas no Tesoiro da Sagrada Escritura.
O juízo do P.e Casnedi sobre a eficácia da exegese que Vieira fez dos
Profetas, revelando o que neles se ocultava, é esta perfeita adesão ao seu
pensamento: «Parece, pois, justo que o Reino de Cristo, Senhor nosso, na terra,
seja perfeitamente consumado antes da vinda do mesmo Senhor como Juiz. De
sorte que disto se segue que, fundado nas profecias que ainda se não
completaram e expondo-as literalmente, prognostique muitas cousas que hão-de
acontecer na Igreja Militante, e conceba o Reino de Cristo, Senhor nosso, na terra
tal qual pode convir ao mesmo Senhor, que -de vir não como Redentor, mas
como Juiz.
De novo no prefácio se louva a luz, a erudição, a enfática e energia de
razões, a harmônica consonância, a extensão do espírito com que expõe literal e
não misticamente o que as profecias anunciam sobre o futuro estado da Igreja, e
termina com estes informes sobre o livro:
Divide-se este estupendo volume do Reino de Cristo Senhor nosso,
consumado sobre a terra. em três livros, como o declara o seu mesmo Autor no
princípio da sua obra: No 1.° trata da natureza e qualidade do Reino de Cristo,
Senhor nosso; no 2.° da consumação do mesmo Reino sobre a terra; no 3.° do
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tempo em que se -de consumar e o tempo que deve durar depois da
consumação.
Segue-se o texto integral da tradução:
Da imperfeição física da obra
Não falo da imperfeição moral da obra, porque demonstrarei depois que
nenhuma pode haver; falo, sim, da sua imperfeição física, como a tenho na minha
mão, porque se não sabe se ela é fisicamente imperfeita, como a têm os outros.
Da mesma sorte ignora-se se o Autor a deixou imperfeita; assim mo certificam
algumas pessoas que viveram nos últimos meses antes da sua morte e nos
primeiros depois.
Falarei portanto da sua imperfeição física como está na minha mão e como
me foi confiada pelo Eminentíssimo Cardeal da Cunha, da Santa Igreja Romana,
Inquisidor Geral de todos os Reinos sujeitos ao Rei de Portugal. Quanto a mim,
depois de a ter lido terceira vez, acho que é sumamente desordenada e muito
confusa, mutilada e imperfeita.
Ora ainda que se possam facilmente pôr em ordem os primeiros cadernos,
porque não os capítulos como os parágrafos estão distintamente numerados,
contudo não se pode fazer o mesmo aos outros cadernos pertencentes ao 2.° e
3.° livros.
Da primeira imperfeição moral ou teológica da obra tirada do pecado
filosófico
Duas imperfeições teológicas ouço que se imputam a este grande varão:
uma sobre o pecado filosófico e outra a respeito dos sacrifícios da Lei antiga, que
se hão-de restabelecer antes do fim do Mundo. Uma e outra explicarei em poucas
palavras,a primeira neste parágrafo e a segunda explicarei nos seguintes.
No tratado da pregação universal do Evangelho, no segundo caderno do
Autor, pág. 2, leio na margem as seguintes palavras:
(Inicío da citação) «Estas opiniões acerca do pecado
filosófico em outro exemplar foram riscadas por causa do
Decreto de Alexandre VIII, que as condenou muito depois que
elas foram escritas pelo Autor.» (Fim da citação)
Com permissão, ,porém, do que notou a dita margem, digo que este tal
imprudentemente se alucina, querendo inferir que a opinião do Padre Vieira, na
qual defende o pecado puramente filosófico entre os bárbaros americanos,
vulgarmente chamados Tapuias, dos quais a maior parte passam todo o decurso
da sua vida em uma invencível ignorância de Deus, querendo inferir, digo, que
esta opinião do Autor tem semelhança com a que foi condenada por Alexandre
VIII, no, ano de I690.
Eis aqui, pois, a opinião condenada: o pecado filosófico ou moral é um acto
que desconvém à natureza racional; o teológico, porém, e o mortal é a
transgressão livre da divina Lei O filosófico, ainda que grave, naquele que tem
ignorância de Deus, ou não cogita atualmente do mesmo Deus, é pecado grave,
na verdade, mas não é ofensa feita a Deus, nem pecado mortal que faça apartar
a sua amizade, nem digno de pena eterna. Esta, portanto, foi a opinião
condenada.
Se bem se examinar, ver-se-á que Alexandre VIII condena a opinião que
defende não ser ofensa feita a Deus, nem remover a sua amizade, nem digno de
pena eterna o pecado, ainda que grave, cometido contra a razão por aquele que
não tem conhecimento de Deus (não diz conhecimento invencível) ou que nada
cogita atualmente do mesmo Deus.
E pelo contrário, defende o Padre Vieira que o pecado, ainda que grave,
cometido contra a razão ,por aquele que tem ignorância invencível de Deus, não é
ofensa a Deus.
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Ora quanto dista a asserção daquele que diz que o pecado feito por
ignorância invencível de Deus, não é pecado grave contra Deus, nem desfaz a
sua amizade, nem é digno de pena eterna, da do que afirma que não é pecado
grave contra Deus, nem tira a sua amizade, nem é digno de pena eterna o delito
feito por ignorância (não invencível) de Deus; quanto dista, digo, a asserção de
um da do outro, tanto dista a proposição do Padre António Vieira da condenada
por Alexandre VIII.
Vejamos agora a diferença destas duas opiniões, para do mesmo modo
podermos inferir a discordância que tem entre si a opinião do Padre Vieira da que
foi condenada.
1.°É pecado grave contra Deus e ofensa do mesmo Deus e faz apartar a sua
amizade e é digno de pena eterna, quando qualquer delito é cometido por aquele
que, não cogitando atualmente de Deus contudo implícita e virtualmente o
reconhece ,pela mesma razão natural, que proíbe qualquer maldade.
2.°Não é ofensa feita a Deus o pecado cometido por aquele que nunca teve
conhecimento de Deus, antes do mesmo Deus sempre teve uma ignorância
invencível.
A mesma repugnância que entre estas proposições também entre a
opinião do Padre António Vieira e a que foi condenada. Logo, sem motivo no
exemplar que foi para Roma se riscou a proposição do Padre António Vieira,
como coincidente com a condenada, quando dela dista sumamente. Confirmo
portanto, a opinião antecedente com esta outra que .tem entre si uma paridade
irrefragável. E digo que imerecidamente se chamaria herética esta proposição:
Não peca contra a lei quem, ignorando-a invencivelmente, a quebranta. Não peca
contra a lei quem, ignorando-a, a viola. Logo, sem razão nenhuma se chama
condenada esta proposição do Autor:Não peca contra Deus quem do mesmo
Deus tem uma ignorância invencível porque foi condenada esta outra: Não
peca contra Deus quem o ignora. Pois pode muito bem ser que tenha de Deus
uma ignorância vencível, que o não livra certamente do pecado.
Acresce ainda mais que, sendo assim, todo o II livro do Autor, que se funda
na asserção do pecado filosófico cometido por aquele que tem ignorância
invencível de Deus, deveria ser anulado. Logo que não foi, segue-se portanto que
inconseqüentemente se reprova a proposição e não todo o livro, ou
inconseqüentemente se admite o livro segundo, e não a proposição.
Ninguém poderá portanto duvidar da discordância que tem a proposição do
Autor com a que foi condenada, mas sim o somente escrupulizar se é
verdadeira a proposição em que ele quer admitir entre muitos dos Americanos,
por todo o decurso das suas vidas, uma invencível ignorância de Deus.
Que é verdadeira , prova ele consolidíssimas razões, e tão somente o
poderá negar aquele, que dos Americanos quiser julgar da mesma sorte que julga
dos Europeus, entre os quais de algum modo se dá a conhecer o verdadeiro Deus
no mesmo ídolo que invocam, veneram, a quem sacrificam e em cuja presença
suplicam vênia dos seus delitos. Quando, contudo, quisermos falar dos Tapuias
americanos como verdadeira e realmente o, devemos afastar deles toda a
espécie de deus e de Ídolos que os teólogos reconhecem em todos os homens
geralmente, e substituir em seu lugar outras espécies muito diversas, como
próprias e acomodadas à incomparável estupidez de que são possuídos. Porque
muitos que não não conhecem o verdadeiro Deus, porém também não se
ocupam com religião alguma, nem ainda falsa, como seja cultivando ídolos,
invocando-os, sacrificando-lhes e pedindo-lhes vênia. Além do que, depois de um
grande trabalho
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que tiveram os missionários em os catequizar, apenas escassamente entendem
os mistérios da santa. São tão estúpidos, que apenas muitos podem contar
até 3 e tudo o mais que excede a este número chamam eles muitos. E assim
vivem sem saber nem poder dizer quantos anos têm, nem quantos dedos contêm
suas ,mãos, nem quantos os seus pés, e para poderem comunicar aos nossos
confessores o número dos seus pecados, trazem um cordel, no qual dando tantos
nós quantos são os pecados, o entregam deste modo ao confessor.
Além disto, observa o Autor em muitos destes Tapuias, entre os quais por
muito tempo viveu, não só uma ignorância invencível de Deus, por todo o decurso
das suas vidas, mas também ignorância de todo o Direito Natural. Pois a
educação que dão os pais aos filhos, ainda na mais tenra idade, é induzi-los para
os furtos, homicídios e tomarem vingança, e se nutrirem de carne humana, e a se
exercitarem em tudo quanto é obscenidade.
E tão longe estão de serem punidos por estas suas maldades, que antes o
são, se as deixam de cometer. Se, porém, algum, pelo mesmo lume da razão,
vem no conhecimento que estes crimes são dissonantes ao Direito Natural e
contudo os puser em execução. então assevera o Autor que neste caso o delito
deste bárbaro cometido contra a sua razão natural, tendo ele ignorância
invencível de Deus, é pecado puramente filosófico, e não deve ser punido com
pena eterna, nem é ofensa de Deus, não tendo ele conhecimento algum do
mesmo Deus verdadeiro, nem ; ídolos, pois que está bem patente que, não
poderá também ter religião alguma; e o mesmo acontecerá a qualquer europeu ou
idólatra, que sem dúvida venera a alguma divindade.
tenho assaz provado quanto julgo ser bastante, para justificar o Autor e
escusá-lo da opinião condenada que se lhe imputa, nem me devo mais demorar.
E com isto finalmente concluo que a opinião condenada fala do pecado filosófico
cometido por aquele que tem conhecimento de Deus e da sua Graça, o que
impede que seja puramente filosófico, e é pois teológico, porque o mesmo Deus
verdadeiro sempre de algum modo brilha no mesmo lume da razão daqueles que
algum tanto o reconhecem, ainda que implicitamente, de donde se segue que
nestes repugna o pecado puramente filosófico, e não nos Tapuias, que: nada
absolutamente cultivam, e por este mesmo título se que a proposição
condenada não vem ao caso. Porém, a esse respeito, falarei mais a baixo.
Da segunda imperfeição teológica da obra, que trata dos sacrifícios da Lei
antiga, que se hão-de restabelecer
O parecer do Autor a este respeito é que na consumação da Igreja, ou no
seu 3.° estado, quando todos abraçarem a Lei de Cristo, Senhor nosso, se hão-de
restabelecer os sacrifícios da Lei antiga. É, pois, este parecer tão mal entendido
por alguns, que por isto julgam indigna de ser publicada aquela admirável obra do
Autor, que trata do Reino de Cristo, nosso Senhor, consumado na Terra.
Eu, porém, lendo-a uma e outra vez e certamente antes com o ânimo de
reprovar do que aprovar, no tratado De templo Ezechielis, no qual copiosamente
disputa a respeito dos sacrifícios que se hão-de restabelecer, nada absolutamente
acho digno de censura, mas antes a moderação e limitação com que fala o Autor.
A este respeito a entender que estas mesmas cousas de que fala são dignas
de admiração e louvor, como constará mais plenamente na minha Sinopse
pertencente a este trabalho.
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O que para provar com suma eficácia supõe o Autor, com autoridade de
todos os teólogos, primeiramente, que os sacrifícios, sacramentos da Lei antiga,
se revogaram; em segundo lugar, que estes se instituíram por multiplicados fins,
os quais são o culto de Deus, e para que os Hebreus se afastassem da idolatria;
para prefigurarem os Sacramentos da Lei nova o sacrifício cruento da Redenção
e o incruento da Eucaristia, e para que por meio desses sacrifícios de ovelhas e
novilhos aprendessem os Hebreus a consagrar a Deus as paixões das suas
almas, em terceiro lugar, supõe que estes fins são de tal sorte separáveis, que um
possa existir sem outro.
Estabelecidos estes fins, assevera o Autor que, por dispensação de Deus
ou da Igreja, se hão-de restabelecer na consumação da mesma Igreja os
sacrifícios da Lei antiga, não como prefigurativos dos sacramentos e sacrifícios da
nova Lei, pois que estes estão presentes, porém retido o outro fim, ou como
demonstrativos do sacrifício e Sacramentos da mesma nova Lei, ou como
moralmente significativos da imolação interior da nossa alma, e tudo isto para que
os Hebreus (dos quais dez tribos estão dispersas por todo o Mundo, e ainda se
ignora aonde estejam) sendo tenacíssimos aos seus ritos, mais facilmente se
reduzam à Fé de Cristo na consumação da sua Igreja.
E prova este restabelecimento de tantos modos com textos da Sagrada
Escritura, com excepcionais autoridades dos Santos Padres, e com tão
poderosas razões, que apenas se pode negar, e de nenhuma sorte censurar,
exceto se houver de censurar também a dispensação da Igreja nascente.
Certamente consta que a Lei mosaica que proibia a comida sanguinolenta
e sufocada, se conservou na maior, parte das províncias da Cristandade por
dispensa da Igreja, nos primeiros três séculos do seu estado. Consta mais que a
lei da circuncisão foi revogada por S. Pedro e outros Apóstolos, e que S. Paulo,
apesar de seguir a mesma doutrina e ter impugnado em Antioquia a sua
necessidade a favor dos Gentios, contudo, por causas urgentes, circuncidara a S.
Timóteo, nascido de pai ,gentio. E além disto, consta também que na Igreja grega,
e entre os Abissínios, ainda se conserva no seu vigor a permissão de receber-se
a circuncisão depois do batismo, não como necessária para a salvação, porém
sim como carácter de antiquíssima nobreza, derivada de Abraão e Salomão.
Depois, o uso destas cerimônias legais tirado pelos Apóstolos, como
desnecessário, assim mesmo conservou o seu vigor em muitas províncias
convertidas à Fé, e agora mesmo está em uso na Igreja grega; por que razão na
perfeitíssima consumação da Igreja, quando não só todas as gentes, porém
também todos os Hebreus dispersos por toda a Terra houverem de abraçar a
de Cristo, Senhor nosso, não poderá a Igreja, ao menos no Templo
hierosolomitano que se -de reedificar, permitir o uso destes sacrifícios? não
como necessários ou prefigurativos, porém como moralmente significativos da
imolação interior da nossa alma, significada por meio das vítimas exteriormente
imoladas, ou como demonstrativos dos Sacramentos da nova Lei que
prefiguravam, e certamente por este altíssimo fim, para que os Hebreus mais
facilmente se convertam à de Cristo, e deles e de todas as gentes, tanto as
convertidas, como as que se houverem de converter, se venha a fazer um
rebanho e um só pastor.
Na verdade, é tanta a moderação com que o Autor fala neste uso dos
legais, que, podendo os estender a várias províncias e reinos, fundado na
claríssima e excelentíssima exposição dos Santos Padres e nas muitas razões
tiradas da dispensa da Igreja, contudo ele põe limites no seu dizer e só afirma que
este uso se há-de restabelecer unicamente no Templo jerosolomitano.
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Ora, quem fala desta sorte, sem ser por defeito dos divinos Textos, porque
alega muitos que clarissimamente mostram que este uso se -de restabelecer;
quem assim restringe o seu dizer, sem para isto ser obrigado pela contrariedade
dos Santos Padres, porque, não tendo nenhum contra si, refere em seu favor
muitos e claríssimos textos tirados deles; quem desta sorte modera a sua
proposição, sem ser por falta de razões, porque alega inumeráveis, fundado nas
histórias eclesiásticas, que referem quanto os Sumos Pontífices têm dispensado
com muitas nações acerca dos ritos dos Hebreus; quem, digo, assim patenteia o
seu parecer, a sua sentença, ignoro eu que seja digno de censura ou que possa
haver cousa alguma repreensível que se possa objetar contra semelhante
sentença.
É verdade que pode parecer nova a alguém esta sentença, e portanto ser
digna de censura; porém prova-se, pelo contrário, primeiramente que não pode
parecer novo um parecer fundado nas Sagradas Escrituras e nos Santos Padres,
senão, para aqueles a quem do mesmo modo estas mesmas cousas parecem
novas; em segundo lugar, se toda a novidade se deve desterrar, devem também
ser desterrados todos os antiquíssimos pareceres, exceptuando-se os primeiros a
quem eles se opuseram; em terceiro lugar, ouçamos a S. Antonino, 3 p. História,
n.0 33, § 2, que diz de S. Tomás o seguinte: «No ler era inventor de novos artigos,
e de tal sorte produzia nas determinações as suas razões, que ninguém, ouvindo-
o, poderia duvidar de o ter Deus ilustrado com raios de nova luz.»
Eis aqui pois quantas novidades traz S. Antonino de S. Tomás: era
inventor, de novos artigos e de novas conclusões; produzia novas razões, parecia
ilustrado com raios de nova luz; tinha novo modo de definir. E não podemos
duvidar que muitos determinando-se a cavar nos tesouros da Sagrada Escritura e
dos Santos Padres, passam em silêncio cousas que outros com mais
profundidade e meditando-as deram à luz.
LIVRO I
Este livro, que está perfeitíssimo, consta de II cadernos divididos em I2
capítulos e trata do poder de Cristo, Senhor nosso, como Rei.
SINOPSE
No I capítulo prova com muitas razões a existência do Reino de Cristo,
Senhor nosso: 1.°) porque desde o principio do Mundo foi figurado; 2.°) porque
foi prenunciado nos Salmos; 3.°) porque foi vaticinado pelos Profetas; 4.°) porque
foi declarado no Novo Testamento.
No II, prova que Cristo, Senhor nosso, como homem não tem um reino
no Céu, coimo também na Terra. e explica aquelas palavras do Senhor:«Que
o seu reino não é deste Mundo»,dizendo que Cristo, Senhor nosso, disse que
não era Rei deste Mundo, porque não viera com aquela ostentação e majestade
dos reis do Mundo.
No III, afirma que, suposto que o Reino de Cristo, Senhor nosso, seja no
tempo posterior às quatro monarquias, pois que começou no dia em que nasceu;
portanto pela ordem sucessiva do tempo seja o 5.° Império do Mundo, contudo,
na ordem da dignidade, é superior a todos os reis e reinos da Terra.
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No IV, defende que o Reino de Cristo, Senhor nosso, é não espiritual,
mas também temporal; e o pensava assim pelas Escrituras e Santos Padres,
como, também, pela razão da união apostólica; e porque seria grande absurdo o
julgar que Cristo, Senhor nosso, não teve tanto domínio quanto teve Adão. E
passando depois a desfazer o argumento tirado do Papa, como vigário de Jesus
Cristo, ter direito de propriedade em todos os reinos do Mundo, se acaso Cristo,
Senhor nosso, tivesse semelhante reino temporal, diz que, assim como Cristo,
Senhor nosso, não deu ao seu Vigário todo o poder espiritual que ele tinha, pois
que o Pontífice não pode instituir sacramentos, nem santificar almas sem
sacramentos, assim muito menos lhe devia confiar todo o poder temporal que ele
tinha, pois que o Pontífice não pode instituir sacramentos, nem santificar almas
sem sacramentos, assim muito menos lhe devia confiar todo o poder temporal
que ele tinha, servindo este muito de embaraço ao poder espiritual. Finalmente,
conclui o mesmo capítulo IV, dizendo que o Reino de Cristo, Senhor nosso, não é
só espiritual, mas também temporal.
No V, examina os títulos pelos quais Cristo, Senhor nosso, tomou para si o
Reino espiritual e temporal. Diz que pela razão da união apostólica, pelo tulo de
Redentor e dos seus merecimentos, pelo título de aquisição ou herança, como
herdeiro de Adão inocente e não pecador, pelo título de eleição, quando antes da
sua vinda foi eleito pelos povos e desejado por Rei, o que tudo prova com
admirável engenho.
No VI, examina quando começará o Reino de Cristo, Senhor nosso; e,
expondo os pareceres dos que dizem ter começado no dia em que foi concebido
ou no dia em que foi crucificado, decide admiravelmente que o Reino de Cristo,
Senhor nosso, pelo título da união ,apostólica, de direito hereditário e de doação e
por ser filho de Adão inocente e de eleição por todas as gentes, teve princípio no
dia em que foi concebido; com os títulos, porém, de redenção de merecimentos,
de aquisição e de vitória, do dia em que foi crucificado.
No VIII, examina se Cristo, Senhor nosso, foi legítimo e próprio Rei dos
Judeus. Parece, pois, que não, pela razão de que a Virgem Santíssima não gozou
de direito algum de rainha, e portanto Cristo, Senhor nosso, em quanto seu Filho,
não teve direito algum para ser Rei dos Judeus. Ao que responde com suma
agudeza que, tendo Deus prometido a David e a sua Família não o reino de
Israel, como que o Messias nasceria da sua família, segue-se que, descendendo
a Virgem Santíssima da família de David, e nascendo dela o mesmo Messias, o
reino de Israel pertencia a Cristo, Senhor nosso, tanto pela natural descendência
de David, como pela eleição divina, que prometera ao Messias o reino de Israel.
No VIII, discute excelentemente as qualidades do Reino temporal e
espiritual de Cristo, Senhor nosso. Decide admiravelmente que as qualidades do
Reino espiritual consistem na suprema dignidade sacerdotal, porquanto não só se
ofereceu a si mesmo, por si mesmo, como por nós, fundando um Reino espiritual,
e instituindo leis e meios próprios ao culto divino e à salvação da alma.
Acrescenta de mais que este poder espiritual de Cristo, Senhor nosso,
chama-se real, porque, como todo o poder temporal que excede a todos os mais
se chama real, do mesmo modo como o poder espiritual de Cristo, Senhor nosso,
excede, sem comparação, a todos os outros poderes, por isso se chama real,
porque não é poder de dar, sacrificar e santificar algum povo, o que tudo
compete a qualquer sacerdote, mas também é poder de instituir república
espiritual, sacramentos, leis, prêmio para remunerar o bem que se obra, e pena
para castigar os delitos ou maldades, pelos quais se poderá corromper a mesma
república espiritual. Diz ao depois que as qualidades do Reino temporal consistem
em ter
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Cristo, Senhor nosso, um direito e absoluto domínio sobre todos os reinos da
Terra, determinando-os e livrando-os como e quando quer, e que o domínio de
Cristo, Senhor nosso, sendo somente inferior ao do Padre Eterno, excede sempre
a todos os mais.
No IX, examina se Cristo, Senhor nosso, exerceu no Mundo um e outro
poder espiritual e temporal. É de que Ele exerceu o espiritual, porque, diz,
santificou ao Baptista, chamou aos magos e aos pastores, repeliu os demônios e
ofereceu-se em sacrifício a seu eterno Pai. Do temporal diz que, ainda que não o
exerceu com aquele fasto com que o costumam exercer os reis do Mundo, porque
quis ensinar a humildade e misturá-la com o poder régio, contudo exerceu-o sem
este fasto, usando do juramento como seu, secando a figueira, lançando do
templo os mercadores, destruindo as mesas dos banqueiros , permitindo que os
reis o adorassem e que os povos o aclamassem Rei. Acrescenta que muitas
vezes Cristo, Senhor nosso, exercera um e outro poder, espiritual e temporal,
como se do caso da adúltera, a qual absolvendo, mostra o poder espiritual e,
perdoando-lhe a pena de ser apedrejada, estabelecida por Moisés, mostra o
poder temporal.
No X, pergunta se Cristo, Senhor nosso, exerce no Céu o poder espiritual.
Diz que sim, porque exerce o ofício sacerdotal, oferecendo-se a si mesmo a seu
Pai por mãos de qualquer sacerdote, porque, pela boca do sacerdote, diz que
oferece o seu corpo. Torna a rogar por nós e assiste a todos os pastores das
almas. Demonstra, além disso, excelentemente, que Cristo, Senhor nosso, exerce
no Céu o seu poder espiritual, não só sobre todos os infiéis, iluminando-os,
ajudando-os, substituindo-lhes ministros espirituais, mas também sobre todos os
homens em geral, tanto fiéis como infiéis, reina e exerce o seu poder espiritual.
Acrescenta, além disto, que Ele o exerce também sobre todos os condenados
como juiz espiritual. Conclui, dizendo que Cristo, Senhor nosso, exerce o seu
poder espiritual sobre os condenados como membros podres, sobre os infiéis
como membros mortificados, e sobre os justos como membros reunidos.
Na XI, pergunta se Cristo, Senhor nosso, exerce no Céu o poder de Rei
temporal. Diz que sim, porque Cristo governa o Mundo, tanto pelo que toca às
cousas espirituais, como temporais, do mesmo modo que o Verbo Divino, com a
diferença somente de que o poder de governar do Verbo Divino é inato a si
mesmo, o de Cristo, porém, como homem, é um poder participativo.
Por isto diz a Escritura que o Pai deu todo o juízo ao Filho, tanto de julgar
como de governar o Mundo, e portanto Cristo, Senhor nosso, muda reis e
repúblicas, e por meio dos anjos e dos homens exerce no Céu o poder do Reino
temporal.
No XII, pergunta curiosamente se Cristo, Senhor nosso, -de governar
visivelmente por espaço de I.000 anos e que há-de haver duas ressurreições; que
na primeira ressuscitarão todos os justos, que cheios de bens temporais reinarão
com Cristo, Senhor nosso. Mas O P.e Vieira o refuta optimamente, porque seria
cousa indecente que Cristo, Senhor nosso, deixasse o u para reinar na Terra
com abundância de bens temporais, e que nem é necessário que para fazer
guerra ao Anticristo e destruí-lo, que Ele desça à Terra a reinar e a pelejar com
ele.
Eis o que se contém no I Livro, que é admirável, erudito e razoável.
Da perfeita consumação do Reino de Cristo, Senhor nosso, na Terra
Este II Livro é sumamente imperfeito, porquanto não tem senão o primeiro
capítulo, e dos sete cadernos falta o segundo. Se os mais tratados que não estão
ordenados por capítulos pertencem ao II ou III Livros, pelo contexto da matéria
se poderá reconhecer.
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SINOPSE
Nesta Sinopse julguei não dever proceder pelos capítulos, porque, exceto o
I, faltam todos os mais; porque, se bem todos os tratados tenham seu título,
contudo faltam todos os capítulos. Mas devemo-nos regular pelos cadernos do
mesmo, suposto falta o II.
Diz, portanto, no I.° caderno que, tendo explicado no I Livro o poder e
domínio de Cristo, Senhor nosso, como Rei, é justo que neste II Livro exponha as
pessoas acerca das quais Cristo, Senhor nosso, exerce na Terra este poder. Ora,
tendo a Igreja Militante o Império e o Reino espiritual de Cristo, Senhor nosso,
na Terra, porque a Igreja Triunfante não é o seu Reino na Terra, mas sim no Céu,
e consistindo a sua perfeitíssima consumação não na Fé, porém na união de
Deus, não na Esperança, porque nesta nada resta que esperar, porém no amor
beatífico, segue-se que ele fala tão somente da Igreja Militante, que é o Reino de
Cristo, Senhor nosso, na Terra.
Suposto, portanto, que o Reino espiritual de Cristo, Senhor nosso, seja na
Terra não a comunidade dos Fiéis, que se chama Igreja Militante perfeita,
formada, atual, enquanto fundada na , esperança e caridade, como também a
comunidade de todos os homens que estão fora da Igreja que se chama Igreja
Militante, informe, potencial e imperfeita; pergunta em que consiste a consumação
e perfeição do Reino de Cristo, Senhor nosso, na Terra, ou da Igreja Militante ou
imperfeita, prometida por Deus nas Sagradas Páginas, para que com toda a
certeza se faça um só rebanho e um só pastor?
É incrível quanto este admirável Autor excede a si mesmo, para assim
dizer, a fim de provar a sua conclusão:que o Reino de Cristo, Senhor nosso,
então será consumado e perfeito, quando todos os homens, ou judeus ou infiéis,
abraçarem a Fé de Cristo, Senhor nosso, e segundo a Lei antiga e nova se formar
um só rebanho e um só pastor.
Do segundo caderno nada me corre dizer, porque falta. Contudo, pelo que
pude coligir do 3.°, 4.°, 5.°, 6.° 7.°, parece-me que a intenção do Autor é provar,
fundado em muitos Doutores, Santos Padres, figuras e textos, que ainda que haja
hoje na Terra muitos infiéis que são como uma parte informe da Igreja Militante,
contudo todos absolutamente se hão-de converter e passar para a parte da Igreja
Militante, formada e aperfeiçoada pela Fé, pela Lei de Cristo, Senhor nosso, e que
nesta conversão geral de todos os homens consiste a perfeita consumação do
Reino de Cristo, Senhor nosso, sobre a Terra ou da Igreja Militante. Não me
posso demorar em referir as engenhosíssimas e muito especiais reflexões que ele
forma sobre os sagrados textos, profecias e figuras, para provar o seu intento e
como para pôr à vista a veracidade da sua proposição.
Tratado da santidade do último estado da Igreja e de que todos os homens
neste tempo hão de ser justos e se hão-de salvar.
SINOPSE
Este tratado consta de 3 cadernos. Primeiramente diz que ele dividirá este
tratado em 3 pontos, que vêm a ser: se neste tempo haverá pecados, se todos
serão justos, e se todos se salvarão.
No I caderno prova que no último estado da Igreja ou na perfeitíssima
consumação do Reino de Cristo, Senhor nosso, não haverá pecado algum,
segundo
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o que diz Isaías, não se ouvirá falar na Terra de iniquidade alguma, o que não se
tendo ainda completado em algum estado da Igreja, se há-de completar no
terceiro estado dela. Depois, prova também pela profecia do Arcanjo Gabriel feita
a Daniel que o pecado achará fim e que a maldade será riscada do Mundo. Logo,
não se tendo ainda completado esta profecia, -de-se completar no último
estado da Igreja, e por isso acrescenta ainda o Arcanjo Gabriel para se cumprir
a profecia e se ungir o Santo dos Santossobre as quais palavras, diz o Autor,
será ungido o Santo dos Santos com a terceira e última unção , a qual como
representada nas três unções de David, nós distinguimos no cap. 2.° deste
livro, tratando do Reino de Cristo sobre a Terra.
Confirma o seu dito com o Salmo XCV, que é todo a respeito das
conversões dos povos: Toda a Terra se comove na sua presença, porque o
Senhor reinou, porque estabeleceu o orbe da Terra de sorte que se não moverá.
Eis aqui, diz o Autor, que Cristo, Senhor nosso, reinará então perfeitissimamente
sobre a Terra, quando o Mundo ficar livre de todo o pecado. Traz também todo o
texto do Apocalipse, que ele interpreta com admirável engenho.
Depois disto, pergunta de que modo se extinguirão todos os pecados?
Responde: primeiro pela conversão de todos os infiéis; segundo, pela morte
antecipada de todos os pecadores que se não quiseram converter .
No II caderno, pergunta se no Reino de Cristo perfeitissimamente
consumado na Terra, serão todos justos? Responde que sim, porque, tirada a
culpa de necessidade, há-de reinar a graça. Expõe depois o capítulo LX de
Isaías, no qual, depois destas palavras: se não ouvirá falar de violência na
tua terra acrescenta imediatamente estas:Todo o teu povo será um povo de
justosas quais palavras, se concordarmos com o texto de Isaías e outras
profecias, devem aplicar-se à Igreja Militante.
O Autor continua no mesmo assunto no II caderno, em que ele pergunta se
então todos se salvarão? Deixou contudo este ponto por acabar, suposto que do
definido pelo Autor no I.° e 2.° ponto se siga evidentemente que todos se
salvarão.
Tratado da Paz do Messias.
SINOPSE
Contém este tratado três cadernos, no I dos quais, antes de decidir se as
profecias a respeito do estado do Messias estão completas, diz que, se
estivermos pela experiência da guerra que tem havido por todo o século, parecem
não estar ainda completas; e, depois de mostrar o erro dos Anabaptistas, em que
caiu antes destes o mesmo Tertuliano, os quais negam ser lícita a guerra, o que é
contra o Direito Natural, que manda cada um defender-se como pode, traz
diversas interpretações. Primeira é que as profecias falam da paz que reina entre
os Bem-aventurados, a qual ele não admite.. A outra é que falam de paz
espiritual, que também não admite. A 3.a é que falam da paz da Igreja e que
neste tempo se completarão as profecias, o que destrói com muitos argumentos.
A 4.a é que falam da paz que houve no Império Romano tão somente no tempo
de Augusto, a qual ele refuta, tanto porque não foi de modo algum uma paz
segura, como porque foi limitada a este império; e a paz prometida não foi
antes do Messias e da sua vinda, como foi a de Augusto. A 5.a é que, depois da
vinda de Cristo, Senhor nosso, a paz é muito maior, porque as guerras são
menores do que dantes, a qual ele também reprova, tanto porque é muito
duvidoso se as guerras foram maiores antes
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do que depois da vinda de Jesus Cristo, como porque, se as guerras e os
instrumentos bélicos de que usamos, se compararem com aqueles de que
usaram os Antigos, facilmente se pode supor que são mais sanguinolentas as
guerras de hoje do que as anteriores a Cristo, Senhor nosso. A 6.a é que, se os
Cristãos observarem a Lei de Cristo, haverá maior paz entre eles. Refuta esta
interpretação, porque não concorda com os textos que afirmam que as nações
não tomarão armas contra nações, que a Terra seisenta de guerras. A 7.a é
que, quando Cristo, Senhor nosso, promulgou a sua Lei, que toda é de paz, deu
paz; reprova, porque se não promete lei de paz, porém sim paz perfeitíssima.
Finalmente, ,no II caderno, pág. 6, diz que a paz perfeitíssima prometida
pelos Profetas ainda se não completou, porém, que se há-de completar no último
estado da Igreja, isto é, no Reino de Cristo, Senhor nosso, consumado na Terra.
Prova pelo que diz S.to Agostinho ainda não vimos o texto completo
Levando as guerras até os fins do Mundo. E suposto seja verdade que a vinda de
Cristo, Senhor nosso, aumentará a paz, porque entre os príncipes cristãos se
guardarão com mais fidelidade os tratados de paz firmados com juramentos, do
que entre os Infiéis, e ainda que muitos infiéis convertendo-se à Fé, tenham
deposto o bárbaro costume de se comerem e pelejarem uns com os outros
contudo ainda se não completou a paz geral de todo o Mundo, que -de ser tão
segura, que qualquer poderá descansar sem susto e temor de guerra.
Primeiramente, porque esta paz, como diz Isaías, está prometida à
pregação do Evangelho; logo, que se o Evangelho ainda não está espalhado por
todo o Mundo, não está também ainda completa a paz prometida. Segundo,
porque não se -de consumar o Reino de Cristo, Senhor nosso, na Terra, senão
quando todo o Mundo se converter à e se unir perfeitissimamente a Cristo,
Senhor nosso; logo, não havendo ainda a paz prometida, -de ser muito mais
viva a mesma, com a sua luz infundirá um veemente desejo, e sem esta
perfeitíssima sujeição, fé e obediência para com Cristo, Senhor nosso, não se -
de ainda conceder a paz prometida, e se completará quando todo o Mundo se
resolver a seguir inteiramente a Cristo, Senhor nosso. Refere a este assunto
muitos textos, expostos literalmente e com admirável engenho.
No III caderno, desfazendo este argumentoque parece incrível que a
seja capaz de conseguir esta perfeita pazresponde mostrando ele neste II
Livro que a deste 3.° estado da Igreja é amor à paz. Além de que diz Isaías
que o Espírito Santo fará todos os seus filhos instruídos pelo Senhor, e depois
conduzirá uma grande abundância de paz e porque finalmente então haverá um
só coração e uma só alma e todos viverão na graça do Senhor.
No mesmo III caderno suscita esta objeção: A paz é um dos principais
sinais da vinda do Messias; logo que esta não está ainda completa, ainda não
chegou também o Messias. Responde engenhosamente que os sinais da vinda
do Messias, uns o antecedentes, e estes se haviam de cumprir antes da sua
vinda, conforme o texto que diz que o Messias não viria até que se o tirasse o
ceptro de Judáo que na verdade aconteceu, porque então apareceu ele,
quando o ceptro de Judá tinha passado ao poder de Herodes; outros são
concomitantes, como a sua santidade, pobreza, sua paixão e pregação; outros
subsequentes, que se o haviam de verificar e completar senão depois da sua
ascensão ao Céu, como a pregação evangélica por todo o Mundo e a paz geral.
Por isso diz David que Cristo, Senhor nosso, depois que se assentasse à direita
de Deus Padre, poria a seus pés todos os seus inimigos.
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Continua a mostrar a paz prometida por Deus e diz que assim como na
arca de Noé, que foi a figura da Igreja, os leões e os lobos formaram aliança e
paz com os cordeiros e ovelhas, assim no 3.° estado da Igreja ou na última
consumação do Reino de Cristo, Senhor nosso, sobre a Terra, os homens que
forem opostos entre si em leis, ritos e costumes, gozarão de uma paz seguríssima
e firmíssima.
Tratado da pregação universal do Evangelho
Último estado da Igreja e consumação do Reino de Cristo, Senhor nosso.
Deste tratado não capítulo algum, exceto um que não está enumerado,
pelo que, para maior inteligência e clareza, disporei a Sinopse pela série
dos dez cadernos.
SINOPSE
No I e II cadernos examina se o Evangelho tem sido pregado por todo o
Mundo. Pela parte afirmativa traz para prova o Apóstolo, dizendo aos Romanos: A
vossa será levada por todo o Mundo e o mesmo afirma aos Colossenses; e
pela parte negativa, que ele segue, traz muitos argumentos e com curiosa
erudição discorre excelentemente pelos I7 séculos da Igreja, citando os templos
em que o Evangelho foi recebido em vários reinos do Mundo, o que prova que ele
não foi publicado por todo o Mundo no tempo dos Apóstolos. Eis aqui a razão por
que os intérpretes de S. Paulo explicaram o texto de todo o Mundo
entendendo o mundo romano e outros o mundo então habitado e conhecido.
Depois disto, o Autor demora-se muito em expor o texto: Para toda a Terra
saiu o som das suas vozes e com admirável e engenhosa agudeza de espírito
diz que uma cousa é sair e outra chegar. Concede que a voz dos Apóstolos tenha
saído para todo o Mundo, porém, nega o ter chegado a todas as terras. Do
mesmo modo que (diz) se saírem do porto de Lisboa duas naus, uma para o
Brasil, outra para Goa, que é verdade terem ambas saído do porto ao mesmo
tempo, mas que é falso o terem chegado ambas ao mesmo tempo, porque a que
foi para o Brasil chegou primeiro.
Persuade, porém, que o Evangelho se há-de pregar por todo o Mundo por
muitos textos da Sagrada Escritura, que dizem claramente que o Evangelho se há
de pregar por todo o Mundo. Logo, se em todo o Mundo se -de pregar, a voz
dos Apóstolos, apesar de ter saído para todo o Mundo, ainda não chegou a todo o
Mundo.
Finalmente, na 5.a questão do II caderno expõe, com a mesma agudeza de
engenho, os diversos modos da pregação evangélica. A um chama mudo, que
vêm a ser as mesmas criaturas irracionais, as quais, se considerarem, são
bastantes para que os Gentios entendam a unidade de Deus; seriam além disto
bastantes para também perceberem a Trindade das, Pessoas e a Encarnação do
Verbo, se não estivessem cegos pelos seus pecados e pelos seus doutores, os
quais como que prendem no cárcere a verdade, segundo a expressão do
Apóstolo aos Romanos: Prendem a verdade de Deus na injustiça.
Outro modo de pregação evangélica são as vozes e a fama. Tudo isto trata
o Autor com esquisita erudição no I e II cadernos do tratado.
No III caderno examina o Autor com grande esforço esta muito árdua
questão: Se aqueles que não crêem no Evangelho, porque não o ouviram, devem
ser condenados? Porque, sendo certo que tanto aqueles que ouviram o
Evangelho se hão-de salvar, como os que o ouviram e não obedeceram se hão-
de perder, deve-se
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determinar, diz ele, se aqueles que não obedeceram, porque não o ouviram, se
condenarão ao Inferno para sempre.
Defende o Autor: primeiro, que em muitos bárbaros americanos se o
pecado puramente filosófico e não o teológico, enquanto ele parece precisamente
contra a razão natural, e o contra Deus, pois que padecem uma invencível
ignorância de Deus. Segundo, afirma que se ,dá também em muitos bárbaros
invencível ignorância do Direito Natural, porque muitos têm o furto como uma
cousa sumamente gloriosa, e por isso se aplicam a ele desde meninos, nutrem-se
da carne dos seus inimigos, e de mais, comem os seus ,próprios filhos e cometem
outras obscenidades, sem que se lhes ensine o contrário, antes pela sua omissão
são repreendidos e castigados.
Um e outro assunto prova o Autor com a autoridade dos historiadores os
mais fiéis que estiveram entre os Tapuias, e que foram encarregados de os
civilizar; os quais têm tão rombo entendimento, que muitos não são capazes de
aprender mais que três números. Por esta razão diz o Autor: se os teólogos da
Europa (que negam ser possível a ignorância de Deus e do Direito Natural
totalmente invencível) praticassem com estes bárbaros, cederiam da sua opinião.
Suposto, portanto, pelo Autor, naqueles bárbaros, o pecado paramente
filosófico, porque padecem invencível ignorância de Deus, examina se, porque
cometem ou cometeram o pecado mortal puramente filosófico, deverão ser
castigados com a pena eterna.
Nega. E, continuando largamente a mesma matéria no 3.° caderno, na I.a e
2.a página. do 4.° o prova desta maneira: Todo o motivo por que se impõe a pena
eterna ao pecado mortal, é porque ele é ofensa de um Deus infinito; dando-se,
porém, muitos bárbaros que não ofendem este Deus infinito, porque ignoram
invencivelmente a sua existência, segue-se que não são dignos da pena eterna,
mas só sim devem ser castigados com uma pena temporal e arbitrária.
Pelo que deve haver algum lugar onde se devem punir aqueles que
cometem o pecado puramente filosófico. E porque não admire a novidade da
opinião, pergunta em que lugar se -de punir aquele bárbaro que morreu sem
batismo, só com o pecado venial?
Não deve ser no Purgatório, porque este lugar é só para aqueles que
morreram em graça e que hão-de gozar da presença de Deus. Não no Inferno,
porque este lugar é destinado aos que morreram em atual pecado mortal
teológico; não no Limbo, porque este estado é para aqueles que morrem com
o pecado original, sem pecado venial. Portanto, assim como para aqueles que
morreram sem batismo com um pecado venial, está determinado o lugar próprio
em que devem ser punidos com a pena dos sentidos, assim para aqueles que
morrem com o pecado mortal puramente filosófico, deve-se destinar um lugar
próprio, que não seja nem o Limbo nem o Purgatório, nem o Inferno, onde devem
ser punidos.
Considerando estas cousas , nunca acabo de admirar como alguém se
atreva a riscar deste tratado a opinião do pecado puramente filosófico, como
condenado por Alexandre VIII. Primeiramente, pergunto eu se são equivalentes
estas duas proposições: o pecado filosófico, por mais grave que seja naquele que
ignora invencivelmente a existência de Deus, não é ofensa de Deus nem merece
uma pena eterna; o pecado filosófico, por mais grave que seja naquele que ignora
Deus, não é ofensa de Deus nem digno de pena eterna? Por certo que não. Logo,
sem razão alguma foi riscada do tratado do Autor a doutrina do pecado filosófico
naquele que ignora invencivelmente a existência de Deus.
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Demais, se extinguir a doutrina do pecado filosófico, dever-se-ia também
extinguir quase todo este tratado da universal pregação do Evangelho, visto estar
fundado no pecado filosófico. Porque é cousa muito singular neste Autor, ver a
coerência que têm as cousas que diz com as que -de dizer, de modo que as
derradeiras estão fundadas sobre as primeiras e se ligam umas às outras. Nada
portanto se pode tirar deste, que se não perca todo o tratado. Logo, para que
nada se destrua do que ele tem feito por muitos cadernos cheios de erudição e
engenho, fundado unicamente no pecado filosófico, nada se deve tirar dele.
Da mesma sorte digo que, de negar nos Cristãos e nos Idólatras o pecado
filosófico, não se segue que se deva também negar nos Bárbaros americanos. E
a razão é porque, nos Cristãos e nos Idólatras, não invencível ignorância de
Deus, porque adoram alguma cousa. E ainda que os Idólatras errem no seu culto,
contudo na mesma luz natural da razão que lhes proíbe alguma cousa, sempre
resplandece, ao menos implicitamente, um Deus a quem adoram, no Bárbaro
americano, porém, que nada absolutamente adora, não existe na sua mesma
razão Deus algum pois que: padece uma ignorância invencível da existência de
um Deus, qualquer que seja; logo, o pecado dos Cristãos e dos Idólatras contra a
razão natural não é puramente filosófico, mas é também teológico; e, pelo
contrário, o pecado dos Bárbaros, que não adoram divindade alguma, cometido
contra a razão natural, é puramente filosófico; dos quais e nos quais o Autor
defende o pecado puramente filosófico.
No IV caderno pergunta o Autor se Deus ministra a todos os bárbaros
adultos os meios suficientes para a sua salvação? Afirma com S. Tomás, a quem
de boamente concede que os exemplos referidos por ele de S. Pedro enviado
a Cornélio, S. Paulo aos Macedónios , provam que Deus manda pregadores
àquele que faz o que está na sua parte; contudo, querendo mostrar que estes
exemplos não vêm ao caso, diz que de dois casos raríssimos não se pode inferir
universalmente que Deus conceda a graça da pregação àqueles que fazem o que
está na sua parte.
Depois suscita esta grande dúvida e pergunta que meios tiveram os
Americanos em 1.300 anos depois da pregação do Apóstolo S. Tomé (pois que
este foi o tempo que mediou entre a pregação do Apóstolo e a entrada dos
Europeus na América) que meios, digo, tiveram para conseguirem a sua
salvação? Porque eles não tiveram nem um nem outro meio, isto é, sem a
agudeza do engenho pela qual pudessem . conhecer a Deus naturalmente, pelas
cousas criadas, e nem pregadores que os tirassem da sua estupidez; logo, não
tiveram meio algum de salvação eterna.
Dizer, porém, diz o Padre Vieira, que Deus deu o seu conhecimento a
todos os adultos antes da morte, para que, pecando mortalmente, pudesse
condená-los, é cousa duríssima e contrária à piedade de Deus, que Ele
condenasse a uns homens tão estúpidos e que não tiveram pregadores por
espaço de 1.300 anos. Eis aqui os apertos em que se viram aqueles que negam o
pecado puramente filosófico; porque condenam a todos estes. Pelo contrário,
admitindo-se o pecado puramente filosófico e outro lugar além do Céu e do
Inferno em que padeçam a pena temporal aqueles bárbaros que têm invencível
ignorância de Deus e que pecam gravemente contra a razão natural, nada se diz
nem se segue que pareça cruel, nem contra a piedade de Deus.
Para, portanto, desfazer esta dúvida, que ao Autor causa suma admiração,
diz que Deus, não providenciando, providenciou àqueles bárbaros. E para provar
isto, supõe que em Deus, além da ciência absoluta, se dá também a
condicionada, pela qual Ele o que fariam aqueles rbaros, se lhes desse um
entendimento agudo ou se lhes mandassem pregadores. Conhecendo, porém,
que eles haviam de
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abusar tanto de um como de outro meio, cometendo o pecado mortal teológico, e
que seriam condenados à pena eterna; e que, negando-lhes um e outro meio, não
seriam punidos com a pena eterna, porém com a temporal, tão somente depois
da sua morte, Deus, que é tão cheio de piedade, negando-lhes primeiro outro
meio de salvação, não os providenciando, providenciou-os.
Medite, portanto, o leitor que, abolindo-se a doutrina do pecado filosófico,
se deverá também abolir quase todo o tratado, pois tudo o que se afirma no IV
caderno, se funda no pecado filosófico.
Acrescenta o Autor das utilidades que daí se tiram, que vêm a ser: que
Deus, não providenciando, providenciou os dois meios de salvação àqueles
bárbaros, isto é, não lhes dando nem agudeza de engenho, nem pregadores por
onde conhecessem a Deus.
Diz que daí se seguem duas utilidades: Primeira, que, ignorando
invencivelmente a Deus, nunca poderão cometer o pecado mortal teológico;
segunda, que, cometendo o pecado mortal filosófico, estão livres da pena
eterna.
Confirma primeiramente com S. Paulo e S. Timóteo, os quais, como diz S.
Lucas, querendo pregar a de Deus na Ásia, foram proibidos pelo Espírito
Santo; porque, como explica Beda, sabia que os Asiáticos haviam de desprezar a
palavra de Deus, a qual cousa, não sendo providência, é providência de Deus,
enquanto ela livrará da pena eterna dos sentidos a todos aqueles que
invencivelmente O ignoram, o que certamente não sucederia, se acaso O
conhecessem. E sabendo Ele que os Asiáticos haviam de resistir à sua Lei, se
acaso a conhecessem, e a Ele mesmo, não providenciando, os providenciou,
proibindo que se lhes fosse pregar.
Prova, em segundo lugar, com o Salmo XVII, que fala do Padre Eterno,
onde se das salvações de Seu Filho Jesus Cristo. Não diz da salvação, mas
sim das salvações; porque são dois os modos de salvação: o primeiro é perfeito,
providenciando a Fé e bons costumes com que se adquira a vida eterna; e outro é
imperfeito, admitindo que vivam numa infidelidade inculpável, e salve ou livre da
pena eterna dos sentidos aqueles que morrem em invencível ignorância de Deus.
Acrescenta mais do Salmo XXXV estas palavras: Salvarás, Senhor, os
homens e os jumentos. Chama homens aos fiéis que crêem e obram bem e que
se salvam pelas boas obras, e jumentos aos infiéis, que estão entre os homens e
os brutos, porque, vivendo na sua invencível ignorância de Deus, se salvam da
pena eterna dos sentidos.
Confirma, em terceiro lugar, pelo preceito que impôs Cristo, Senhor nosso,
a S. Paulo, logo depois da sua conversão: Apressa-tedisse e sai já de
Jerusalém, porque não receberão o testemunho das minhas palavras. Eis aqui
Cristo, Senhor nosso, prevendo que os Judeus não se haviam de converter; por
isso mandou a S. Paulo que saísse de entre eles e os deixasse na sua ignorância,
para que fossem menos maus, não ouvindo a S. Paulo, e não se fizessem dignos
da pena eterna.
No mesmo caderno, junto do fim, pág. 8 até pág. 9, examina os meios
pelos quais se pode alcançar a conversão de todo o Mundo à de Cristo:
primeiro, pela eficácia da pregação, isto é, dando o grande eficácia às palavras
dos pregadores, que os Infiéis não lhes poderão resistir; segundo, pelos milagres;
terceiro, pelas inspirações interiores, sem auxílio dos homens, e isto o prova
elegantissimamente por causa da impossibilidade moral de irem os pregadores a
todas as regiões dos Infiéis.
Depois, continua a declarar os instrumentos de que Deus -de usar para a
conversão de todo o Mundo. Primeiramente, diz que o melhor instrumento seo
mesmo Cristo, do qual se lêem no Salmo II estas palavras: Eu, porém, fui
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estabelecido por Ele Rei, a fim de intimar os seus preceitos. Não diz diz o
Autor Rei pregador, porém sim Rei que prega; porque Cristo, Senhor nosso,
nunca se absteve de pregar. Em segundo lugar, diz que serão os homens santos,
porque, se Cristo, Senhor nosso, fundou o seu Reinado por meio de homens
santos, com muito mais razão se servirá deles para aperfeiçoá-lo. Em terceiro
lugar, diz que será o socorro dos príncipes seculares. Porque diz o Autor
assim como as almas não serão governadas pelos bispos, estando separadas do
corpo, mas sim unidas a ele, assim também entre os príncipes seculares e os
eclesiásticos deve haver esta união, e por isso Deus, no Velho Testamento,
dividiu entre os dois irmãos, isto é, Moisés e Aarão, o poder secular e sacerdotal,
para que entendêssemos que se deviam unir entre si no amor fraternal. Traz para
este fim muitas histórias, e o que diz Isaías no cap. XLIX, falando sobre a Igreja:
Serão os reis os teus curadores, e as rainhas as tuas amas.
No V caderno, pergunta se antes do fim do Mundo todos serão cristãos e,
refutando o que diz o Padre Soares,que, ainda que a Igreja se dilatapor todo
o Mundo, nega contudo que todos se converterão o Autor afirma que
totalmente hão-de ser cristãos, porque a Sagrada Escritura diz que todas as
gentes, pátrias e famílias de nações o adorarãoisto é, a Jesus Cristo,
acrescentando a mesma Escritura que até cada um dos indivíduos o -de
adorar. Logo, por conseqüência, deve vir tempo em que se convertam não as
nações, pátrias e famílias, mas ainda mesmo cada um dos homens.
No VI caderno, trata do tempo em que de uma vez ou dos tempos em que
por partes se há-de completar a conversão de todo o Mundo à Fé, e diz que todos
os intérpretes querem que esta conversão de todo o Mundo à não se
completará senão depois da morte do Anticristo por Elias, que converterá os
Judeus, e por Henoc, que converterá aos Gentios, segundo o que disse Cristo,
Senhor nosso, ,por S. Marcos, cap. IX: Quando vier Elias restituirá todas as
cousas. O Autor, porém, segue outro parecer, ensinando que não -de haver
uma só conversão, porém que são duas as conversões gerais de todo o Mundo: a
primeira, pelos sucessores dos Apóstolos, antes da morte e destruição do
Anticristo, e o prova: primeiro, porque o fim por que Cristo, Senhor nosso mandou
aos Apóstolos, foi a conversão de todo o Mundo, porque diz: Pregai o Evangelho
a todas as criaturas; logo, não se tendo ainda alcançado este fim, algum dia se
alcançará. Segundo, porque, sendo certíssimo tanto que antes do dia de juízo
todo o Mundo se deve converter à Fé, como que, desde a morte do Anticristo até
o dia de juízo, não se o-de passar mais que 45 dias, é impossível que em tão
breve tempo todos os homens geralmente se possam converter à Fé de Cristo por
meio de dois homens, Henoc e Elias logo, deve preceder a vinda do Anticristo
outra conversão geral de todo o Mundo. Terceiro, porque, se antes da vinda do
Anticristo todo o Mundo não fosse cristão, o Articristo não seria o Anticristo
porque Anticristo é aquele que se opõe aos Cristãos, logo, antes da vinda do
Anticristo, todo o Mundo deve ser cristão. Confirma, além disto, o seu dito pelas
referidas palavras de Cristo, que não diz: Elias, quando vier, converterá tudo,
porém, sim,restituirá tudoque quer dizer que aqueles que por causa de
tormentos e enganos do Anticristo se tiverem afastado da Fé, serão restituídos a
ela; logo, se os restituir à Fé, segue-se que já tinham sido antes cristãos.
Ajunta muitas dificuldades desta conversões. As principais são: que a
conversão precedente à vinda do Anticristo se feita pelos sucessores dos
Apóstolos sem mudança de hábito, que terá por fim a conversão de todos aqueles
que, ou por malícia ou por erro invencível, não tiverem abraçado a Fé de Cristo,
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Senhor nosso; que esta conversão, antecedente à vinda do Anticristo, começou
no nascimento de Cristo, Senhor nosso, e, pelo contrário, a subsequente à vinda
do Anticristo principiará por Henoc na Lei da Natureza e por Elias na Lei Escrita, e
começará outra vez por eles e durará tão somente 45 dias; que o fim desta
conversão é reduzir à o somente aqueles que pelos enganos e tormentos do
Anticristo tiverem apostatado da de Cristo, Senhor nosso; que Henoc e Elias
hão-de pregar, vestidos de saco. Depois disto examina se neste tempo tão
somente se completa o oráculo de Cristo, Senhor nosso:Haverá um
rebanho e um pastor. Afirma, porém, contra a opinião de quase todos os
intérpretes: porque Cristo, Senhor nosso, diz:Tenho outras ovelhas e é justo
que eu as guie, e ouvirão a minha voz e se fará (não dize se fez um só rebanho
e um pastor, porém, se -de fazer) um rebanho... Segue-se que ainda não
está completo este oráculo de Jesus Cristo.
Daí, passando o Autor ao tempo e à ordem por que se de formar este
rebanho ou congregação de ovelhas, diz que os Hebreus se hão-de unir com os
Hebreus e os Gentios com os Gentios, e ambos se unirão com os mais. Prova,
além disto, a geral conversão de todos os homens a Cristo, Senhor nosso, e à
sua Fé, tanto pelo cap. XXXI de Jeremias, que diz: todos me conhecerão, desde o
mais pequeno até , ao maior, como pelo cap. XI, de Isaías: Secheia a Terra do
conhecimento do Senhor, assim como as águas do mar cobrirão a mesma Terra,
ou como outros: Bem assim como as águas cobrem o mar. E segundo diz o
profeta Habacuc: A terra se encherá, assim como as águas cobrem o mar, para
que todos conheçam a glória do Senhor. Sobre as quais palavras diz o Autor
engenhosamente que, assim como as águas podem cobrir o mar, o conhecimento
do Senhor há-de ser tão grande, que inundará o Mundo, do mesmo modo que o
dilúvio inundou a Terra.
Depois disto, nota a diferença que entre o dilúvio de Noé e este, cuja
figura foi a de Noé; porque, assim como o dilúvio de Noé inundou a Terra, assim
também a inundará o conhecimento do Senhor, com a diferença somente de que
aquele a inundou para destruí-la, este porém é para vivificá-la com o dilúvio do
batismo.
No IX caderno, supõe ser tradição antiga, derivada de Adão e tida por certa
entre os mesmos Antigos, que o Mundo o há-de exceder do espaço de 6.ooo
anos; porque dizem que, se todo o Mundo se completou em seis dias, os dias
porém na presença de Deus são 1.000 anos; por conseqüência não -de durar
mais de 6.ooo anos; de sorte que os dois primeiros 1.000 anos são da Lei da
Natureza, os dois intermédios são da Lei Escrita e os dois últimos da Lei da
Graça. Todavia o Autor deixou por acabar todo o IX cadernoo do tempo em que
se há-de acabar o Mundo.
No I, examina se os homens viverão mais tempo naquele em que se
consumar na Terra o Reino de Cristo, Senhor nosso. Afirma que sim, fundado na
profecia de Isaías, cap. LXV, onde se lêem as seguintes palavras: «Não se verá
mais ali menino que viva poucos dias, nem velho que não cumpra o tempo da sua
vida; porquanto aquele que for menino morrerá de 100 anos e o pecador de 100
anos será maldito.» Da mesma sorte diz Isaías: «Edificarão casas e as habitarão;
plantarão vinhas e comerão o seu fruto.»
Sendo portanto, certo por todos os intérpretes que estas palavras se
devem entender a respeito da Lei da Graça, sendo também certo que, desde que
Cristo, Senhor nosso, subiu ao Céu, ninguém viu menino nem velho que
cumprisse os seus dias e anos, e acontecendo, de ordinário, que aquele que
fabrica não habita a casa que construiu nem come o fruto das árvores que
plantou, segue-se necessariamente
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que esta profecia se completará um dia. quando o Reino de Cristo, Senhor nosso,
se consumar sobre a Terra, e tanto mais pelo que se no Apocalipse a respeito
de Cristo, Senhor nosso: Eis aqui faço tudo novo, isto é, renovando as idades
passadas.
Será, porém, perfeitamente consumado o Reino de Cristo, Senhor nosso?
Com a última evidência, diz o Autor, e acrescenta que tem tudo provado, quando
todo o Mundo abraçar a de Cristo, Senhor nosso, e quando houver um
rebanho e um só pastor.
Diz também que este Reino durará perfeitamente completo por espaço de
1.000 anos, porque está escrito: Viverão e reinarão com Cristo pelo espaço, de
1.000 anos; e no Reino de Cristo, Senhor nosso perfeitamente consumado, ou
quando todos forem cristãos, os homens viverão muitos anos, ainda que todos
não vivam os mesmos, porque alguns morrerão de 100 anos, e nesta idade se
chamarão ainda meninos, outros de duzentos, outros de muitos séculos, outros
finalmente, que tiveram uma vida mais santa, viverão 1.000 anos, para
combaterem com o Anticristo e triunfarem dele.
Dificuldades dos sacrifícios e cerimônias legais.
Objeta o Autor que, sendo sentença constante ser a Lei antiga não
morta, mas ainda mortificada, e que jamais deve ser de novo suscitada, segue-se
portanto que a visão de Ezequiel a respeito dos sacrifícios legais não pode ser
literalmente exposta sem o perigo da Fé.
Para desfazer, porém, a sua objeção, supõe, em primeiro lugar, que o
antigo sacerdócio e as cerimônias do antigo sacrifício foram revogadas. Em
segundo lugar, que os antigos sacrifícios foram instituídos, não para o culto de
Deus e para que os Hebreus fossem retraídos da idolatria, como também para
significar o futuro sacrifício de Cristo, Senhor nosso; o que suposto diz o Autor
não sendo os sacrifícios legais intrínsecamente maus, porque, sendo-o, nunca
seriam lícitos pela dispensação de Deus ou da Igreja, bem poderão segunda vez
ser restituídos.
Prova o Autor a primeira parte da sua proposição por meio da dispensação
de Deus e servindo-se do Salmo L, em que se distinguem três tempos e três
gêneros de sacrifícios: O primeiro tempo é o da antiga Sinagoga; o segundo é o
da Igreja presente; e o terceiro é o da Igreja futura, quando a Sinagoga se unir à
Igreja e entregar-se totalmente à mesma Fé, pois por meio destas palavras:
Livrai-me dos sangues, ó Deus, ó Deus da minha salvação! se indica o tempo da
Igreja passada ou da Sinagoga, e os sacrifícios cruentos desta mesma Igreja, dos
quais David se desejava livrar como de sacrifícios que não conferiam graças.
E por meio destas outras palavras: Porque, se tu tivesses desejado um
sacrifício, eu não teria faltado a to oferecer, mas tu não terás por agradável os
holocaustos, se indica o tempo e a Igreja presente, no qual cessarão os antigos
sacrifícios da Sinagoga. E ultimamente por meio destas: Então é que tu receberás
com agrado os sacrifícios de Justiça, as oblações e os holocaustos, então é que
te oferecerão os novilhos sobre o teu altar, se indica o tempo e a Igreja futura, no
qual se -de reedificar o templo de Jerusalém e se hão-de restabelecer as
oblações, etc., não como significativas do sacrifício incruento ou da eucaristia
como futura, porém sim do sacrifício eucarístico como presente. Portanto, diz o
Autor, entendendo literalmente a expressão de David, segue-se que o Templo se
-de restabelecer no tempo da Igreja futura, em que os Judeus e todas as
gentes se hão-de reduzir à Fé de Cristo, Senhor nosso.
Prova a segunda parte por meio da dispensação da Igreja , dizendo
primeiramente que todo o legislador pode ser também dispensador nas suas
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mesmas leis e que, portanto, não sendo o uso das cerimônias legais da antiga Lei
proibidas por lei divina, mas meramente pela Igreja, poderá dispensar e permitir
que se restabeleçam as mesmas cerimônias no seu 3.o, estado.
Depois disto, passa a expor as causas mais graves por que a Igreja há-de
dispensar estes ritos no seu 3.o estado. A principal é a inata tenacidade dos
Judeus para com os seus votos; porque, diz ele, se os Apóstolos, por causa desta
tenacide dos Judeus, dispensaram às duas tribos, no tempo da primitiva Igreja, o
poderem conservar alguns dos seus ritos, como é constante (disse duas tribos,
porque se ignora por onde se espalharam as demais), segue-se portanto que
poderá a Igreja ainda com maior razão dispensar os Judeus que se houverem de
converter no fim do Mundo, o poderem usar os seus ritos, ao menos no templo de
Jerusalém, não para alcançarem por meio deles a salvação, como diz Beda,
porém para preencherem as profecias daqueles sacramentos.
Logo, satisfazendo aos argumentos do Padre Soares, mostra,
primeiramente, que a necessidade, utilidade, piedade e outras cousas que o
mesmo Padre Soares julga suficientes para a dispensa da lei, estas mesmas
podem concorrer para que a Igreja conceda aos Judeus que se hão-de converter
o uso dos seus ritos no templo de Jerusalém.
Em segundo lugar, traz aquele memorável exemplo dos ritos mistos-
arábicos, permitidos na Espanha, em alguns templos, pelo Pontífice, por cuja
permissão os Árabes abraçaram a Igreja Romana, como se nas catedrais
toletana e granatense, que têm capelas públicas, nas quais se celebram as
missas com o rito chamado moçarábico ou misto-arábico.
Em terceiro lugar, ajunta com esquisita erudição todos os ritos permitidos
pela Apostólica aos Gregos, Rutenos e aos outros cismáticos, para que deste
modo pudéssemos unir as Igrejas Orientais à Romana. Permite, diz ele, aos seus
sacerdotes o sacramento do matrimônio, o poderem consagrar em pão
fermentado e comungar em ambas as espécies, o uso da carne aos sábados,
ainda na Quaresma, e a observância dos mesmos sábados juntamente com os
domingos. E todas estas cousas lhes concede, não para conformá-las com a
observância judaica, porém para que se confundissem os hereges simoníacos
nascidos no Oriente, que diziam não ter Deus criado o Mundo, porque
descansava ao bado, como adverte o Padre Turriano (Livro VII) nos Cánones
dos Apóstolos. Além disto a circuncisão, que é o principal sacramento dos
Judeus, se permite aos Cristãos, não como culto religioso, porém como caráter
ou sinal e brasão da antiga nobreza derivada de Abraão e Salomão, do mesmo
modo com que se esculpem nos sepulcros os brasões das famílias iguais da sua
nobreza, como notou Guilherme Reginaldo no seu livro contra Calvino, Livro II,
cap. 9, dizendo que os Abexins cristãos batizam os infantes e logo os
circuncidam, em sinal da sua antiga nobreza, sem respeito algum ao merecimento
e confiança judaica. Logo, diz o Autor, se por benignidade da Apostólica se
uniram em alguns reinos os domingos com os sábados e o batismo com a
circuncisão, por fim honesto e ainda político, por que razão não será então licito à
Igreja Nova o permitir que se una o sacrifício da Eucaristia com as cerimônias
naturalmente legais?
Outras muitas provas refere o autor, as quais passo em silêncio.
Termina aqui a trução manuscrita do Códice da Biblioteca Nacional adiante
inserto. Damos a seguir a tradução por nós próprios tentada, da parte que o
tradutor baiano omitiu:
Prossegue, ,ponderando a utilidade máxima de tal permissão e em sua
confirmação aduz o recente testemunho do que em 1594 se passou com a
Lituânia.
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Com efeito, quando, por ordem de Clemente VIII, reuniu o sínodo para trazer os
Rutenos à Católica, foram nele apresentados os pedidos dos seus bispos
respeitantes tanto à como aos ritos, em cuja observância o tenazes.
Respondeu-lhes o Núncio antes que os pedidos fossem levados a Roma, que,
assim como a Igreja Romana é inexorável em tudo o que respeita à integridade
da Fé, assim tem tolerado dispensas naquilo que é determinado pelo direito
humano e eclesiástico. Portanto, poderá a Igreja permitir alguns ritos aos Judeus,
que tão dificilmente consentem em abandonar os ritos dos seus maiores.
Em segundo lugar, afirma poder dizer-se que Ezequiel pretende que os
sacrifícios legais se hão-de restabelecer, como significativos não de Cristo futuro
senão de Cristo presente, do mesmo modo que á Igreja diz de S. João Batista
que não profetizou Cristo, Senhor nosso, como havendo de nascer, senão que o
mostrou existente. Consequentemente, os sacrifícios que então puderam ser
permitidos, não serão prefigurativos de futuro sacrifício eucarístico, mas
indicativos da presença do mesmo sacrifício que primeiro eles tinham prefigurado.
Estabelece a este propósito uma comparação com uma representação
teatral a que na nossa Casa professa assistiu em Roma, no entrudo de 1650: Em
baixo, o templo de Salomão, com os seus sacerdotes sacrificando no rito
nacional; em cima, o pão eucarístico, a que era dirigida a adoração dos Fiéis.
Eis que nada melhor ilustra diz o Autor a concepção do templo de
Ezequiel e seus sacrifícios legais; tal como no teatro romano estavam presentes a
figura e o figurado, a Eucaristia e os muitos sacrifícios que figuravam, assim no
templo de Ezequiel serão simultâneos os sacrifícios legais que prefiguram a
Eucaristia, a par do que a mostra. Também das Sagradas Páginas aduz, ao
propósito, texto engenhosamente apropriado.
Diz, em terceiro lugar, que os sacrifícios legais indicados por Ezequiel,
rejeitado todo o significado figurativo, poderão ser admitidos como
demonstrativos. Tiveram eles, na verdade, segundo Santo Agostinho, além da
significação figurativa, um sentido moral, porquanto pela imolação das vítimas
aprendiam os Hebreus a imolar a Deus o corpo e a alma (como ensina o
Apóstolo); e com agudeza diz Orígenes: «Temos dentro de nós várias vítimas que
imolamos: se vences a soberba do corpo, imolas a Deus um vitelo; se a ira, um
carneiro, se a libididez, um bode; se lúbricos arrebatamentos dos pensamentos,
uma pomba ou uma rola.»
Que, em verdade, não foi o sacrifício material a principal finalidade dos
sacrifícios, admiravelmente o prova com o Salmo L.:
(Inicío da citação)«Porque, se tivesses querido um sacrifício,
de qualquer modo eu o teria oferecido; não te deleitarás com
holocaustos; o sacrifício a Deus é o espírito atribulado; não
desprezarás, meu Deus, o coração contrito e humilhado»
(Fim da citação)
Eis em Deusdiz o Autorduas vontades que parecem opostas: não quer
a carne do animal que se sacrifica, quer o coração do homem, que é o que no
sacrifício do animal é sacrificado. O mesmo se exprime no Salmo XLIX:
(Inicío da citação) «Porventura hei-de comer carne de touros
e beber sangue de bodes? Imola a Deus o sacrifício do
louvor»(Fim da citação)
O mesmo se em Isaías: «Não ofereças mais sacrifícios vãos; abomino o
incenso .... Lavai-vos, sede limpos ... deixai de cometer perversidades; aprendei a
bem-fazer» Eis pois que Deus não quer o sacrifício puramente material, senão o
moral por ele significado. Consequentemente, com toda a probabilidade se pode
afirmar que, no templo de Ezequiel, haverá os sacrifícios materiais significativos
do sacrifício moral que Deus ordena.
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Desenvolve isto eloquentemente, advertindo que Deus ensina os homens
por meio de simbolos exteriores; assim mandou a Oseas que tomasse como
mulher uma meretriz infame que lhe desse filhos, para deste simbolo
compreenderem os Hebreus a injúria feita a Deus; e mandou a Isaias que
caminhasse nu pelas pracas, para que por sua nudez fosse entendida a nudez
espiritual do Egito e da Etiópia; e isto desenvolve em outros exemplos, como o
das parábolas evangélicas de que Cristo se serviu para ensinar o povo. É pois
muito provável que os antigos sacrifícios e cerimônias, que foram como parábolas
por que se exprimia a vontade divina, muitos dos quais os Judeus não
entenderam, de novo se hão-de estabelecer, não para que os Judeus, que se
hão-de converter, atinjam a sua significação, como também para que se
convertam.
É, na verdade, vulgar, diz o insigne Autor, instruir o militar ou o nauta por
instrumentos apropriados a um e a outro; assim também, para que, na derradeira
conversão do Mundo, os Hebreus se instruam na Cristã, nada mais adequado
do que o uso dos sacrifícios legais, a par do uso do sacrifício evangélico que
moralmente indicaram.
Confirma São Gregório com um bem claro dito e feito, como se no Livro
IX, Registri Epistolarum: perguntado por Augustino, primeiro bispo dos Ingleses,
como Ihe cumpriria proceder com eles para dos ritos profanos os chamar a Deus,
escreve o santo: Esforça-te por que não destruam os templos, mas somente os
idolos, a fim de que mais facilmente concorram aos lugares costumados,
adorando a Deus, para que não mais imolem animais ao Diabo; mantém-nos
segundo o seu uso em louvor de Deus , e ao Dador de tudo refiram as graças em
sociedade, de modo que, enquanto se manifestem os prazeres próprios da vida
exterior, na vida íntima outros possam ser permitidos. Assim Deus se deu a
conhecer uo povo israelita no Egito, mas aqueles sacrifícios que costumava
prestar ao Diabo reservou-os para Si próprio, mandando-lhes imolar animais em
seu sacrifício; até certo ponto o alterando, dele abandonavam e retinham alguma
coisa, e posto que fossem os mesmos animais que costumvam oferecer, contudo,
imolando-os a Deus e não a Idolos, já não eram os mesmos sacrifícios.»
Isto escreveu São Gregório, o qual, aproveitando o próprio exemplo de
Deus, inventou um modo pelo qual os povos, tenazmente aferrados aos seus
ritos, em parte os conservassem, em parte os perdessem e, mudando o uso e o
culto dos sacrifícios, não fosse defraudada a alegria que deles recebiam.
Assim também, diz o Autor, mudando o culto dos sacrifícios antigos e a
judaica, o povo que deve ser afastado do uso das suas cerimônias legais, não
será privado da alegria que delas recebia, ingênitas e inveteradas como eram.
Tratado sobre se é lícito perscrutar os tempos das coisas futuras e delas
assentar alguma coisa.
Este caderno parece ser único e nada tem que pertença ao Livro III, porque
apresenta o titulo do I Capitulo. Como. portanto, o livro primeiro e segundo têm
seu primeiro capitulo, deve este pertencer ao III Livro. Isto ainda porque, além
disso, o Autor diz no I Capítulo: «Parece-me ver no limiar deste livro...» Portanto,
como o Livro I e II tenham seus princípios, segue-se que é neste capítulo que
começa o
LIVRO III
Toda a dificuldade consiste em saber se os tratados Da Conversão do
Mundo, Da paz do Messias Do templo de Ezequiel, pertencem ao Livro III,
porque, no final
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deste caderno, diz o Autor: tudo isto cumprirá demonstrar no seu Iugar... Não
diz está demonstrado. Consequentemente, se tudo depois deste caderno deve
ser demonstrado, devem aqueles tratados ser colocados depois dele.
Quis notar isto e daqui se deve concluir que, por mais que quem quer que
seja aplique seu engenho, é muito difícil saber se os ditos tratados pertencem ao
II ou ao III Livro.
SINOPSE
Examina o Autor no Capítulo I, além do qual outro não há, se é lícito
procurar saber em que tempo se realizarão as coisas profetizadas e assentar
qualquer coisa sobre tais questões, e nega-o com razões persuasivas: I) Porque
Cristo, Senhor nosso, diz: «Não vos pertence conhecer o tempo nem o momento
que o Pai estabeleceu em seu poder» texto que ilustra com a autoridade dos
Santos Padres. 2) Porque, se a cronologia dos tempos pretéritos é tão incerta
entre os Autores, que dificilmente um concorda com o outro, pois que da criação
do Mundo à Incarnação do Verbo afirmam uns terem decorrido cinco mil anos,
outros seis, outros sete mil, muito mais incerta é a cronologia do tempo futuro. 3,
Porque, se os Autores discordam acerca do tempo do Dilúvio, do fim das
Monarquias c da duração do Templo, que acordo se pode esperar na
determinação do tempo futuro? 4) Porque se na História Sagrada os meses e os
anos são referidos pelas suas próprias designações, não sucede assim nas
profecias, nas quais apenas encontramos figuras e enigmas, como se lê no
Génesis, em que sete bois gordos e sete espigas cheias, depois de sete bois
magros e sete espigas secas, significam sete anos de fertilidade e sete anos de
esterilidade. E quem, na verdade, se Deus o não houvesse revelado, teria
entendido que os sete bois e as sete espigas queriam dizer anos? Portanto,
muito tènuemente das profecias se pode precisar o tempo futuro. 5) Porque nada
mais óbvio na Sagrada Escritura do que o tempo representado por horas, dias,
semanas, anos e séculos, e com tudo isto nada mais obscuro, pois
frequentemente a hora o significa hora, nem o dia. nem os anos, como o Autor
o mostra com textos dela extraídos. Portanto, é grande temeridade procurar nos
textos Sagrados e precisar mais ou menos quando será consumado na terra, com
a máxima perfeição, o Reino de Cristo, Senhor nosso.
Para o Autor poder tudo isto resolver sem qualquer dúvida, expõe pouco a
pouco o seu pensamento, dizendo I) Que, quando Deus faz qualquer revelação e
revela ao mesmo tempo quando ela se há-de cumprir, então com certeza pode
ser prognosticado tanto o acontecimento futuro como o tempo em que se
realizará, como se deixa ver na própria ressurreição de Cristo, Senhor nosso,
revelada como devendo dar-se ao terceiro dia. 2) Que, se Deus alguma coisa
revela e simultaneamente o tempo, não por dias e anos, mas por circunstancias e
sinais, então sobre sinais e circunstâncias se pode prognosticar o tempo futuro da
coisa revelada, como acontece no advento do Messias, que só devia surgir depois
que o ceptro da Judeia houvesse sido transferido a outra nação, ou seja a
Herodes, que não era hebreu. 3) Que, se Deus revela alguma coisa futura em
tempo o determinado, é louvável investigar em que tempo ela se realizará.
Prova-o com o louvor que S. Pedro dá aos Profetas: «que fizeram profecias sobre
a graça em vós, perscrutando em que tempo e qual tempo ela se manifestaria»,
(I, IO-II); de maneira que, assim como entre os homens é digno de louvor resolver
os seus enigmas, assim também o é, tratando-se dos enigmas de Deus: 4) Que
também é louvável
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investigação o tempo do acontecimento futuro" mesmo quando Deus declara que
se não pode saber; na verdade, postoque isso determinadamente se não pode
saber, quanto ao dia e ano, pode contudo moralmente prognosticar-se, com maior
ou menor aproximação. Aduz geralmente o Autor o dito de Cristo, Senhor nosso:
«Quanto ao dia e à hora ninguém os sabe, nem os Anjos do Céu.»
Ora Cristo, Senhor nosso,diz o Autorúnicamente nega poder saber-se
o determinado dia do Juízo Final; não nega, porém, que, sem precisar dia nem
hora, se possa moralmente indicar com probabilidade, dentro de maior ou menor
espaço de tempo. E prova este seu asserto, em primeiro lugar, com a resposta
dada por Cristo, Senhor nosso, aos Apóstolos que o interrogavam sobre o Dia de
Juízo: «Dizei-nos quando acontecerão essas coisas e qual o sinal da vossa vinda
e da consumação do século»; neste caso Cristo, Senhor nosso, calou o tempo
determinado, mas deu contudo os sinais qua mostravam que tal tempo não era
distante. portanto, se bem ninguém possa saber em que tempo preciso se deva
consumar na terra o Reino de Cristo, Senhor nosso, ou aquele em que o Mundo
se acabará é contudo possível concluir-se de sinais o tempo aproximado, tal
como o médico, sem prognosticar o dia certo da morte, pode com frequência
predizê-lo com probabilidade, com maior ou menor aproximação. Prova o mesmo
asserto, em segundo lugar, com copiosos textos dos Santos Padres, que
conjecturando próximos o Dia de Juízo e o fim do Mundo, uns os concebem
anunciados por pestes, outros por guerras, outros por sedições, outros por outros
sinais. Todos eles, se bem tenham errado nos prognósticos, contudo mostraram
com seu exemplo digno de louvor a conjectura. Portanto, se a eles isso foi lícito,
posto que tanto distassem do fim do Mundo, muito mais a si próprio, diz o Autor, o
pode ser, visto que não é a tão grande distância de tal fim.
Resolve os argumentos opostos, dizendo que aquilo que algum tempo é
inútil, pode não o ser noutra ocasião. Quando Cristo disse aos Apóstolos: Não nos
pertence saber o tempo, então era-lhes inútil, até mesmo pernicioso saber o que
havia decretado acerca do reino israelítico; se dissesse que nunca mais seria
restabelecido, ou que o não seria senão depois da última conversão dos Hebreus
à Cristã teriam ficado imensamente tristes; e por isso assim como Cristo,
Senhor nosso, aos dois filhos de Zebedeu, que Ihe pediam participação no
reinado, respondeu: «Não me pertence o dar-vos», assim aos discípulos: «Não
vos pertence conhecer o tempo»
Admiravelmente responde ao argumento da paridade da cronologia dos
tempos pretéritos com a que ele deduz. Afirma, na verdade: Os Autores são nela
discordes, porque são em discordância quanto à computação dos anos desde o
começo do Mundo até o Dilúvio, do Dilúvio a Moisés, de Moisés à edificação do
Templo; portanto, não é de admirar conclui que seja muito incerta a
cronologia do tempo passado.
Pelo contrário, não o é a do tempo futuro, porque ele não começa desde a
criação do Mundo, para deste saber o fim, antes procede retrogradando, ou seja,
desde o fim do Mundo até o advento do Anticristo, e à propagação do Evangelho
a todos os povos e conversão dos Hebreus à Cristã, e deste modo algum tanto
se pode prognosticar com muita probalidade e maior segurança a respeito do fim
do Mundo. Eis, por suas mesmas palavras, a admirável cogitação do autor: “Nós,
pelo contrário, encontrando caminho novo procedendo do fim do Mundo até o
Anticristo, do Anticristo até a Universal pregação e aceitação do Evangelho,
regressando até a nossa idade e em tríplice meta estabelecida ao longo dos
tempos futuros, sem fazer tropeçar o leitor, vamos para Cristo, ao mesmo tempo
que tudo iremos
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demonstrando em seu lugar. Baste por agora tudo apontar com o dedo para que a
força da argumentação não detenha suspenso o leitor.>> Note-se; tudo iremos
demonstrando, não tudo é demonstrado. Assim, pois, os tratados da pas do
Messias, da Conversão Universal do Mundo, do templo de Ezequiel, ou não
pertencem ao II Livro, pois escreveria tudo é demonstrado ou cumprirá dizer
que o autor, para conjecturar sobre o fim do Mundo, regressa a tratados já
expostos no mesmo Livro II.
FIM